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MUNDO

Derrotar Milei na Argentina e fortalecer a luta contra a extrema-direita no mundo

Concluída a apuração do 1° turno na Argentina, na madrugada deste domingo, confirmou-se que o peronismo (frente União pela Pátria) abriu uma importante vantagem para a centro-esquerda com Sérgio Massa, liderando a vitória no 1° turno.

David Cavalcante, da redação
Instagram/Javier Milei

O fenômeno político internacional de longo prazo mais relevante nos últimos anos é o ressurgimento da extrema-direita com influência de massas como não se via desde os anos 1920/1930. Neste Século XXI, expressões neofascistas ou protofascistas reemergiram do mais profundo esgoto social, impulsionados pela crise do capitalismo global que se aprofundou desde a crise financeira de 2008. A experiência do Século XX demonstra que o sistema do capital é a causa central e estrutural para a emergência de partidos e movimentos que, ante a impossibilidade de manutenção da ordem sob regimes democrático-liberais, o próprio capital recorre à adoção de regimes políticos assentados na violência extrema para perpetuar seu domínio.

Além dos regimes autocráticos já em dominação em vários países, resultantes de eleições sob climas coercitivos a exemplo da Turquia, Hungria, Polônia, Ucrânia e Rússia, temos no Ocidente governos locais e bancadas parlamentares de inspiração extremista com peso social neofascista: o exemplo da Itália (já controlando o poder central com a Primeira-Ministra, Meloni), Espanha (Vox), França (Frente Nacional), Portugal (Chega), Grécia (Aurora Dourada) e Alemanha (AfD). No caso dos Estados Unidos, a extrema-direita supremacista branca tem se organizado por dentro do Partido Republicano, com o movimento Tea Party, entre outros grupos, inclusive neonazistas.

O discurso e o programa dessas agremiações são similares, variando de país e país e continente, mas com uma identidade comum, buscar transferir para os setores mais vulneráveis das classes trabalhadoras a ira e o ódio gerados das crises sociais e econômicas, que tem origem na incapacidade do sistema capitalista garantir a sobrevivência da maioria da população, pela sua lógica intrínseca de cada vez mais acumular riqueza nas mãos de poucos indivíduos bilionários. Ódio e perseguição aos imigrantes principalmente latinos, negros e árabes, racismo, violência contra pessoas LGBTQIA+, ataques aos direitos das mulheres, negacionismo climático e vacinal, xenofobias, além da tentativa de criminalização das expressões políticas das esquerdas e dos direitos humanos e ataques às liberdades democráticas.

Na América Latina, destaca-se o bolsonarismo no Brasil, que felizmente foi derrotado eleitoralmente em 2022, mas ainda assim tentou um golpe de Estado, no fatídico 8 de Janeiro deste ano. Demonstrando que essa facção política ainda tem lastro social e que a democracia liberal é meramente instrumental para eles e seus asseclas mais fiéis, e que se faz necessário medidas mais ofensivas do Governo Lula contra a cúpula do bolsonarismo.

Como parte do mesmo fenômeno global e continental, no nosso país vizinho, cresceu um movimento protofascista que se utiliza da palavra “liberdade” em sua denominação partidária, “A Liberdade Avança”, para agitar medidas de choque a favor das grandes empresas, contra a soberania nacional e os direitos sociais e trabalhistas. Além de prometer a prisão do movimento dos piqueteiros, movimento social argentino relacionado aos segmentos mais precarizados da classe trabalhadora.

Javier Milei, cujo apelo ao misticismo exótico no típico padrão de lideranças e movimentos fascistas, afirma que recebeu uma missão divina de ser presidente, apelando até para declarações de que já viu por três vezes a ressurreição de Cristo e que teve conversas com seu cachorro morto que o teria também ajudado a conversas amigáveis com… Deus… isso mesmo!

Além disso, a semelhança de seus pares do fascismo histórico e contemporâneo, criou um lema de combate à “casta política” para atribuir à crise histórica do país vizinho aos partidos tradicionais, sem questionar o aprofundamento da Argentina no lamaçal neoliberal a que vem sendo submetida, inclusive mais recentemente com o governo de Macri e os limites do peronismo em combate-lo.

Seu símbolo de campanha é uma motosserra, muito próximo do que seria uma “arminha” como solução mágica e demagógica para todos os problemas e, por outro lado, simboliza violência como método político. Sua candidata à Vice-Presidente se chama Victoria Villarruel, uma mulher filha e neta de militares que faz a ligação com a caserna e negacionista da ditadura, e que promete revogar a conquista recente do aborto legal.

Alguns jornalistas brasileiros da mídia empresarial, com baixa formação sociológica, política e histórica, ou por pura má fé, para desgraça das correntes e líderes históricos do anarquismo, o chamam de “anarco-capitalista”, ou simplesmente “anarquista” ou ainda “libertário”, um atentado contra a memória de muitos anarquistas que tombaram nas lutas contra o capitalismo em vários países.

A emergência dessa figura distópica messiânica, que nos meios jornalísticos é conhecido como “o louco” (sem que estes mereçam esse apelido) é o candidato que se destacou nas Primárias de agosto ficando em 1º lugar, com 30 % dos votos. Em segundo lugar, ficou o candidato progressista, da ala peronista mais “moderada”, e atual Ministro da Economia, Sérgio Massa, com 21,4%, tendo este último concorrido com seu adversário interno a indicação para o 1º turno, representante da ala esquerda peronista, o Juan Gabrois que arrancou ainda 5,9% nas prévias de 13 de agosto. Tal resultado acalorou toda a extrema-direita na América Latina e, como não poderia deixar se ser, alentou as fileiras bolsonaristas no Brasil.

A importância do voto em Sérgio Massa

A classe trabalhadora reagiu! A falta de vergonha em defender o fim da moeda nacional argentina e o fechamento do Banco Central, a privatização das estatais e inclusive de ruas, a mercantilização de órgãos humanos, a extinção de ministérios vinculados às políticas sociais, a ruptura de relações comercial com Brasil e China (por serem comunistas), a prisão dos piqueteiros, o corte dos direitos sociais e trabalhistas, a privatização da educação através da destinação dos vouchers individuais, entre outras aberrações, teve seus efeitos.

Milei nada tem de anarquista, e como disse Myriam Bregman, candidata da Frente de Esquerda num debate, na verdade não tem nada de leão (um dos seus símbolos), trata-se de um gatinho manso a serviço das grandes corporações. A extrema-direita que impor na verdade um profundo choque neoliberal associado à transformação autocrática do Estado argentino, convertendo numa agência de repressão e choque permanente contra as organizações sociais e políticas da classe trabalhadora e movimentos sociais, e de subserviência na geopolítica.

Por isso foi alentadora a votação no 1º Turno. Milei teve sua votação congelada no mesmo patamar das prévias e Sérgio Massa cresceu para 36,68% , aumentando cerca de 15,28%, revelando uma reação dos movimentos dos trabalhadores e segmentos populares, que mesmo diante do desgaste do governo atual do qual Massa é Ministro, acendeu-se a luz vermelha quanto a ameaça real que bate às portas da Casa Rosada que significaria um golpe histórico no país que tem uma das classes trabalhadoras mais combativas e organizadas do continente.

A votação de Liberdade Avança também foi qualitativa para escolha dos parlamentares que renovou uma parcela dos seus senadores (24) e deputados (130), além de 4 governadores (Província de Buenos Aires, Catamarca, Entre Rios e Santa Cruz). Eles elegeram novos 36 representantes (só tinham 4), totalizando 40, e 8 senadores (não tinham nenhum), alcançando como agrupamento de extrema-direita o maior feito registrado na Argentina. O Congresso Argentino é composto por 72 Senadores e Senadoras, e 257 Deputados e Deputadas. O Bloco peronista ficou com o total de 108 cadeiras.


No próximo 19 de novembro será o decisivo 2º turno. Mesmo partindo da crítica ao atual ministro da economia e seu acordo dom o FMI, é importante a definição de voto contra Millei, no âmbito da luta contra a extrema-direita global e no continente. Votar em Massa e ajudar na derrota eleitoral de Milei fortalece a defesa dos direitos sociais e trabalhistas e das liberdades democráticas já conquistadas na Argentina contemporânea.

Apoiar o voto em Massa e com independência frente ao governo de Fernandes pode converter-se num estímulo à defesa da organização sindical e do direito de protestos dos movimentos sociais, garantias da seguridade social, o direito ao aborto conquistado recentemente pelos movimentos feministas, a defesa da moeda nacional e do Banco Central, além da soberania nacional e das estatais, entre outros.

Derrotar Milei por fim tem toda uma importância no Cone Sul e para a América Latina. A Argentina possui mais de 46 milhões de habitantes e próximo de 36 milhões de eleitores. É um importante país no continente com peso econômico e simbólico. Tem uma forte classe trabalhadora e movimentos sociais poderosos como o movimento feminista. Tem uma das mais fortes tradições anti-imperialistas da região. Derrotar Milei, significa derrotar a extrema-direita global e o bolsonarismo numa importante batalha de tantas que ainda virão.