1. As pesquisas erraram feio mais uma vez. Foram só pouco mais de dois meses entre as primárias de 13 de agosto passado, e a eleição de 22 de outubro, mas a surpresa foi grande. Sergio Massa se posicionou em primeiro lugar contra Milei para o segundo turno, que ocorrerá no dia 19 de novembro, com uma vantagem de 6%, quando a expectativa era inversa. Mas a disputa permanece, totalmente, indefinida, e o primeiro turno permitiu somente ganhar tempo, mas o perigo permanece enorme.
(a) a impressionante virada da votação de Massa, ultrapassando Milei, e chegando a 36,68% ou 3,2 milhões de votos a mais, repousou, essencialmente, no temor do que representará a ascensão de Milei ao poder.
(b) Milei alcançou 29,98%, a mesma votação, essencialmente, que tinha conquistado nas primárias das PASO de agosto, 29,86% consolidando sua corrente como a nova liderança do campo reacionário.
(c) a derrota de Patrícia Bullrich, candidata favorita até o terremoto das primárias, que não foi além de 23,8%, menos que os 28% somados de sua votação à de Horácio Larreta, da Frente Juntos por el Cambio, que une a UCR dos radicais aos Republicanos de Macri em agosto, deve precipitar uma divisão pública e, irremediável da Frente.
(d) A FIT-Unidad liderada por Myriam Bregman obteve uma vitória política-eleitoral, cresceu um pouco mais de 70.000 votos em relação às primárias e, apesar da pressão pelo voto útil no peronismo de Massa, cravou 2,7% e elegeu Cristian Castillo elevando a bancada para cinco deputados federais, ao lado da própria Myriam, de Romina del Plá, Nicolas del Caño, e Alejandro Vilca (Jujuy).
2. Este giro nas condições da disputa se explica por variados fatores, mas o principal parece ter sido a repulsa e medo diante do que representa Milei. Foi um giro, porque a linha do peronismo antes das PASO era polarizar com Patrícia Bullrich, identificada, erradamente, como a favorita e principal inimiga eleitoral. O principal argumento da campanha passou a ser a arma das denúncias contra Milei, como o fim de subsídios e políticas de distribuição de renda, a defesa da gratuidade da educação pública, e a defesa da nação, entre outros. Podem ter pesado muitas outras razões como:
(a) a mobilização do aparato peronista nas províncias do interior e, sobretudo, na Grande Buenos Aires;
(b) a apresentação de Massa como uma liderança equilibrada diante dos achaques loucoides de Milei;
(c) a iniciativa de Massa, batizado pela mídia, desdenhosamente, de plano “patita” ou dinheirinho, uma eliminação de impostos sobre salários. Mas o mais importante, e deverá ser decisivo na luta pela vitória em novembro, é a construção da rejeição a Milei.
3. Quais são as semelhanças entre estas eleições de 2023 na Argentina e a eleição de 2018 no Brasil que Bolsonaro venceu? As semelhanças na dimensão da estrutura social são:
(a) um contexto de estagnação, e até retrocesso econômico-social, que bloqueia a mobilidade social, e provoca empobrecimento abrupto;
(b) um contexto de desgaste do regime e das duas forças políticas fundamentais que se alternaram no governo nos vinte anos anteriores, ou seja, o macrismo associado ao radicalismo e o peronismo na Argentina, e o PT e o PSDB no Brasil;
(c) o contexto de um deslocamento reacionário na sociedade, expressão de uma mudança desfavorável da relação social de forças, com o deslocamento da maioria das camadas médias à direita, e até para a extrema-direita, e de uma divisão nas classes populares.
4. Quais são as diferenças? Ainda que se possa estabelecer paralelismos dos ciclos políticos, eleição de Alfonsín e posse de Sarney, nos anos oitenta, eleição de Menem e de FHC, nos noventa, eleição dos Kirchner e de Lula, na primeira década dos anos dois mil, a situação na Argentina é um pouco distinta da brasileira. Tampouco, a história se repete. Ou melhor, nem sempre. Essas diferenças são de dupla natureza, conjunturais e estruturais. As conjunturais são pelo menos cinco: |
(a) uma situação emergencial desesperadora em função da superinflação na Argentina, que não era um tema central em 2018 no Brasil, embora a denúncia da esquerda como corrupta esteja presente, assim como a insegurança pública, o que alimenta uma tensão imediata mais intensa, o que, potencialmente, favorece Milei;
(b) no Brasil, em 2018, Lula não podia concorrer porque estava preso e, apesar do desgaste do mandato do governo Dilma Rousseff, era favorito se pudesse, enquanto na Argentina foi Cristina Kirchner quem decidiu não se candidatar, porque a previsão de derrota parecia incontornável, mas o peronismo errou o cálculo, e a maioria da esquerda, também, ao subestimar Milei, e identificar Bullrich como favorita;
(c) Milei se construiu em apenas dois anos, assim como Bolsonaro entre 2026/18, como porta-voz de um projeto de extrema-direita de inspiração neofascista, sem um partido nacionalmente, implantado, mas não tem um apoio institucional nas Forças Armadas, ou uma rede capilarizada nas camadas médias, como foi a maçonaria, ou das igrejas pentecostais nas populares, e não deve conseguir apoio da maioria dos radicais que coligaram com Bullrich; (d) a representação político-eleitoral reacionária da direita da burguesia, através de Bullrich, muito pressionada pela violência ideológica do discurso de Javier Milei, não desmoronou, catastroficamente, como aconteceu, no Brasil, com o MDB/PSDB, e a votação humilhante de Alckmin, abaixo de 5%, e não parece que haverá “fuga em massa” para apoio a Milei;
(e) o peronismo não é o PT da Argentina. A semelhança do discurso de “centro-esquerda” ou de perfil na imagem pública entre Sergio Massa e Fernando Haddad não autoriza concluir que as forças sociais que os sustentam sejam iguais. Não são. O peronismo é um partido burguês, ou seja, uma das expressões históricas de um movimento nacionalista que tem raízes em frações capitalistas. E Sergio Massa é, simultaneamente, candidato e Ministro da economia do governo peronista de Alberto Fernandez, ou seja, está no poder, enquanto em 2018, no Brasil, no palanque da candidatura de Fernando Haddad não subiu nenhum burguês.
5. Não podemos, tampouco, diminuir as diferenças mais estruturais que se explicam por, pelo menos, quatro grandes fatores:
(a) o primeiro é a longa decadência do capitalismo periférico argentino, com uma dramática desindustrialização, que mergulhou 40% da população abaixo da linha pobreza, empobreceu aquela que já foi a mais robusta classe média do continente, e se manifesta hoje em uma superinflação superior a 140% ao ano, e numa impagável dívida externa com o FMI, ou seja, comparativamente, embora a renda per capita argentina ainda seja 30% mais elevada que a brasileira, vem caindo ininterruptamente;
(b) o segundo é uma relação social de forças estrutural que impõe um impasse estratégico sobre os destinos da nação, que se traduziu na colossal rebelião popular do final de 2001 e início de 2002, que derrubou de forma fulminante o governo De La Rua, um ano depois de eleito; a desconcertante sucessão de outros quatro presidentes em uma semana e, sobretudo, na força social de choque do movimento operário e sindical, com taxas de filiação próximas a 40% (enquanto no Brasil está em 11%), de realizar quarenta greves gerais nos últimos quarenta anos, entre as mais disciplinadas e impactantes, contra todos os governos, inclusive os peronistas de Menem e dos Kirchner, além da potência do mais organizado movimento de trabalhadores desempregados do mundo, as várias organizações populares de piqueteiros, um arrebatador movimento de mulheres que levou às ruas gigantescas mobilizações feministas em defesa da legalização do direito ao aborto, um dinâmico movimento dos povos originários, como ficou provado na recente explosão de protestos de massas em Jujuy, por exemplo;
(c) o terceiro é que o crescimento da extrema-direita, embora, ideologicamente, assustador e, politicamente, vertiginoso tem um teto eleitoral mais baixo, qualitativamente, que aquele alcançado pelo bolsonarismo no Brasil, porque se mantém viva a memória e o repúdio dos crimes da ditadura militar que se expressa, todos os anos, no dia 24 de março, na realização, em todo o país, de manifestações colossais, na escala de centenas de milhares, que se explicam porque, na sequência da desmoralização das Forças Armadas na derrota da guerra nas Malvinas, a Argentina viveu um processo de ruptura democrática que passou pela condenação à prisão, em 1985, dos chefes das Juntas que estiveram à frente dos governos da ditadura militar e, ainda que durante o governo Alfonsin tivesse sido votadas as leis de Punto final e Obediência devida, depois da semi-insurreição do ano 2001/02 ocorreu a revogação destas leis.
(d) o quarto é a permanência tardia, porém, vigorosa do peronismo, um nacionalismo burguês progressista, contemporâneo do falecido getulismo no Brasil que foi deslocado pelo PT e pelo lulismo, unindo diversas e, aparentemente, incompatíveis correntes desde reacionários, neoliberais, social-democratas e até socialistas, como o movimento político que mantém maior influência nas camadas populares e recolhe, eleitoralmente, a maioria dos votos da classe trabalhadora;
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