Pular para o conteúdo
MUNDO

Genocídio em Gaza: Não em nosso nome

Rebeca Moore, do Semear o Futuro (Portugal)

“Do rio [Jordão] ao mar [Mediterrâneo], Palestina será livre”, dia o cartaz da ativista pró-palestina

Em primeiro lugar, toda a nossa solidariedade ao povo palestiniano, em todos os territórios ocupados e pelo mundo. Levantamos-nos para ecoar as vossas vozes, para manifestar o nosso apoio à resistência e à vida palestiniana e para condenar Israel a comunidade internacional que, ainda hoje, após múltiplos bombardeamentos, massacres e assassinatos, continua a estender a mão a Israel e dá carta branca aos crimes de guerra.

Enquanto os EUA, a UE e António Costa apoiam o direito de Israel se defender, com palavras, mas também com estrutura militar, milhares de pessoas se manifestam em solidariedade com o povo palestiniano, exigindo o cessar-fogo, abertura de corredores de ajuda humanitária, a condenação de Israel por crimes de guerra – os atuais e os anteriores, infligidos ao povo palestiniano há 75 anos – e a desocupação da Palestina. Dizemos – não em nosso nome. Trago das ruas o canto “in our hundreds, in our millions, we are all Palestinians” (às centenas e aos milhões, somos todes Palestinianos, tradução nossa).

A resistência palestiniana é antirracista e anticolonial

Ensinaram-nos que o povo palestiniano, lá longe, é menos povo, é menos vida e que, então, as suas mortes são menos dolorosas e justificadas. São números que se somam diariamente, mas que pouco importam, lá longe. Tal como nos ensinaram que quando a polícia agride ou assassina uma pessoa racializada, essa pessoa com certeza cometeu algum crime e merece o castigo. Ou que o colonialismo foi importante para “desenvolver” África, e que sem nós, “eles” estariam a viver na penumbra civilizacional.

Afinal, ensinam-nos que algumas vidas valem mais do que outras. O policiamento e encarceramento (na Faixa de Gaza a céu aberto) bebe da mesma fonte que o racismo de Estado presente nos EUA, no Brasil e também em Portugal. A ocupação colonialista que Israel leva a cabo é filha do pensamento colonial que invadiu o continente africano e americano. Por isso, como diz Angela Davis, há uma relação umbilical e interseccional entre a solidariedade com o povo palestiniano e as lutas abolicionistas, anticoloniais, antirracistas. A resistência estende-se da Palestina a Ferguson, às ruas da periferia de Lisboa e aos mares que separam a África da Europa.

Aqui vemos, novamente, a reação das pessoas oprimidas entendida como violenta e exagerada, porque afinal de contas, o opressor tem o direito de oprimir. É para combater o terrorismo, para manter a paz, para que a sociedade seja mais segura. Morram sem espernear, se faz favor. Aceitem a vossa sentença, que vocês próprios incitaram. Fiquem calmos.

Na verdade, a resistência do oprimido é produto da violência do opressor. Diz-nos isso Malcom X, Bertolt Bretch e muitas outras pessoas. Ao povo palestiniano devemos reconhecimento e apoio ao seu direito a resistir, sem ressalvas, tal como reconhecemos a total legitimidade das lutas de libertação africanas que tiveram um papel essencial na  Revolução de Abril e as lutas dos povos originários do Brasil.

A resistência palestiniana é uma questão feminista

O projeto colonial de Israel também se baseia na desigualdade de género e na violência contra as mulheres, desde a sua concepção até ao modus operandi do Estado e das forças de segurança israelitas. Sobre as mulheres palestinianas recai, como é comum em situações de colonização, a instrumentalização da violência de género, sobretudo nas detenções e nas prisões.

A libertação palestiniana é uma questão feminista porque não é possível garantir nem sequer direitos básicos sob um regime de apartheid, quer seja o acesso à saúde (reprodutiva também, pensemos nas mulheres grávidas na Faixa de Gaza a quem é dito que devem parir nas ruas, sob perigo de bombardeamento), quer seja a própria agência sobre as suas vidas e os seus corpos.

Por isso, na resistência do povo palestiniano, como em muitas outras lutas pelo direito à vida, vemos na linha da frente as mulheres, lutadoras pela libertação, há várias gerações. Mulheres que veem as suas famílias destruídas, os seus lares ocupados e as suas vidas policiadas diariamente. A luta das mulheres palestinianas é também uma luta em várias frentes. Resistem, por um lado, à opressão colonial sexista de Israel e, por outro, ao sistema patriarcal vigente.

Nós, feministas interseccionais e internacionalistas, temos o dever de nos posicionar do lado das mulheres palestinianas e do lado da luta de libertação da Palestina, compreendendo que o colonialismo israelita se constrói também com base nas questões de género, para atacar ainda mais um povo e os setores mais vulneráveis. Compreendemos a intersecção de sistemas de opressão enraizados e entendemos que não é possível lutar pelo fim a ocupação israelita sem partir do feminismo antirracista e anti-colonial.

A resistência palestiniana é uma questão de justiça climática

Israel impede que o povo palestiniano tenha acesso a um dos recursos mais básicos para a sua sobrevivência – a terra. Desde a sua fundação que o Estado sionista expropriou terrenos, casas e recursos naturais aos palestinianos – 78% do seu território. Entendemos que o acesso à terra, ao cultivo, à água (nos últimos dias poços e pontos de água foram preenchidos com cimento) e à energia são todas questões de justiça social e climática. A soberania alimentar também é uma questão climática importante no caso da Palestina – os agricultores são obrigados a praticar a monocultura, recorrendo a sementes comercializadas, dependentes de fertilizantes químicos, de forma a aumentar a produtividade, destruindo no processo a biodiversidade da região. Tal como os povos originários no Brasil lutam pela demarcação do seu território e pelo direito à terra,, também o povo palestiniano o faz. Por isso gritámos que do rio ao mar, a Palestina será livre.

Sobre os apelos à paz, trago-vos Kwame Ture e as suas palavras sobre a diferença entre a paz e a libertação. Segundo Ture, é possível que a injustiça e a paz convivam, é possível que haja paz e escravatura e, por isso, a paz não é a solução – a libertação é a solução. Não é possível alcançar a paz sem que todes sejam livres. Quando se exige a paz o que se está realmente a pedir? Que baixem as armas, os braços e as vozes e que a normalidade da colonização seja retomada? Ou que ao povo palestiniano sejam devolvidas as suas terras, as suas vidas, a sua liberdade.

Por tudo isto precisamos de ser intransigentes na defesa do povo palestiniano e no seu direito à libertação. A neutralidade não existe, esta questão não é só “humanitária”, é profundamente política. Não podemos ficar em cima do muro. É a defesa do direito de um povo à existência e à autodeterminação. É também uma luta profundamente anticapitalista, por se opor ao colonialismo, ao extrativismo, à violência racial e de género e por opor a brutalidade do Estado de Israel ao direito à vida justa para o povo palestiniano. A questão palestiniana exige de nós firmeza para enfrentar quem nos representa, exigindo que condenem a chacina levada a cabo por Israel, que exijam a suspensão imediata dos bombardeamentos, que se abram corredores humanitários e que terminem todas as relações com um Estado que não tem dúvidas sobre o seu projeto genocida.

Referências
Palestine is a Feminist Issue
PALESTINE IS A FEMINIST ISSUE: Statement of solidarity with Palestine-
Why Feminism? Why Now?
Kwame Ture on peace and liberation