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MUNDO

A violência de Israel jamais trará “segurança” às pessoas, incluindo os judeus

Sarah Lazare. Tradução de Carolina Freitas

Originalmente publicado em 18 de outubro de 2023 no site Truthout

O horror e o drama em Gaza atingem novas proporções por minuto: o cerco de Israel matou pelo menos 3.400 pessoas, ferindo mais de 12 mil na última semana e meia, enquanto uma possível invasão terrestre ameaça uma nova escalada indescritível de violência. Os colonos e as forças israelenses também mataram 61 pessoas e feriram 1.250 na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. O número de mortos aumenta mesmo quando os palestinos e seus apoiadores marcham e se mobilizam por todo o mundo em protestos efervescentes.

Para nós, jornalistas judeus anti-sionistas, a última semana e meia foi uma enxurrada de incontáveis tristezas.

Lamentamos e lutamos contra a violência contínua – e agora intensificada de forma catastrófica – da colonização, da ocupação, do apartheid e da campanha genocida contra os palestinos, levada a cabo por um governo que invoca com cinismo o nome dos judeus para intensificar seu investimento em políticas opressoras.

Assistimos também, com crescente horror, a forma como o governo israelense instrumentaliza a dor do povo judeu que perdeu entes queridos nos ataques do Hamas, que mataram 1.400 pessoas e feriram 3.400. O governo israelense está transformando esta dor em uma arma, explorando-a para justificar a aniquilação de Gaza (mesmo que alguns israelenses que perderam entes queridos nos ataques insistam em não se vingar dos palestinos).

Na verdade, é em nome da “segurança judaica” e do sofrimento judaico que, não só Israel, mas quase toda a Europa e com certeza os Estados Unidos marcham lado a lado por trás da nova guerra unificada, já responsável por matar milhares e leva adiante uma segunda Nakba, forçando cerca de 1,1 milhão de pessoas a abandonarem as suas casas. A “segurança judaica” é a razão para lançar fósforo branco, causador de queimaduras tóxicas severas, em Gaza e no Líbano, enquanto o Ministro da Defesa de Israel declara: “estamos lutando contra animais humanos”. O presidente Joe Biden, o secretário de Estado Antony Blinken, quase todos os membros do Congresso e pessoas como Lindsay Graham, notório seguidor do pastor antissemita John Hagee, estão todos invocando a “segurança judaica” para apoiar de forma incondicional um evidente massacre.

Mas um número crescente de judeus – incluindo muitos descendentes de sobreviventes do Holocausto e dos pogroms – rejeitam a ideia de que a violência colonial em algum momento trouxe “segurança” para as pessoas. Isto implica, para alguns, reconhecer que a ideologia política do sionismo moderno, e o aparelho militar que se desenvolveu ao lado dele, é um perigo para todos, incluindo os judeus.

As ações do Estado de Israel, cuja história de 75 anos foi forjada a partir do colonialismo britânico, mergulhada no sangue e no deslocamento étnico dos palestinos – com apoio político e financeiro dos EUA –, são uma ilustração trágica desta realidade. Os acontecimentos da última semana e meia esclarecem isso ainda mais. Os sistemas de ocupação e apartheid israelense, baseados em uma infraestrutura militar de subjugação cada vez maior dos palestinos, são um poço profundo de violência. As raízes das mortes trágicas que vimos acontecer em 7 de outubro são, como salientou o grupo Vozes Judaicas pela Paz, o apartheid e a opressão colonial sistêmica. E a aparente falta de preocupação de Israel até mesmo com o seu próprio povo, ao atacar Gaza de forma indiscriminada enquanto 199 israelenses estão supostamente mantidos lá como reféns, nos lembra que as vidas humanas (incluindo as vidas dos judeus) não são sua prioridade.

Este desrespeito pela vida humana, incluindo a vida judaica, está enraizado numa história específica. Theodor Herzl, fundador do sionismo moderno, disse em seu panfleto de 1896, O Estado Judeu, que Israel seria “neutro” e necessitaria apenas de um “exército profissional”. No entanto, o conceito de “neutralidade” nas terras colonizadas é uma contradição em termos e, como previsto, Israel foi se estabelecendo como uma sociedade fortemente militarizada na qual, desde o início, o serviço militar foi obrigatório para os judeus. Em O Estado Judeu, Herzl apelou à criação de uma empresa que executasse os interesses comerciais dos judeus que partiam dos seus países de origem e organizasse o comércio no novo país. Para levantar capital para esta empresa, ele escreveu: “Não apenas os judeus pobres, mas também os cristãos que quisessem se livrar deles, contribuiriam com uma pequena quantia para este fundo”. O primeiro-ministro britânico, Arthur Balfour, que emitiu a declaração anunciando o apoio da Grã-Bretanha a um Estado judeu na Palestina, foi motivado pelo seu medo do que chamou de “males inquestionáveis” da migração judaica da Europa Oriental para a Grã-Bretanha.

Para os colonizadores que pressionaram pela criação de Israel, a segurança dos judeus nunca foi o verdadeiro objetivo. Em vez disso, Israel apresentou uma alternativa conveniente ao acolhimento de grandes números de refugiados judeus dos seus próprios países. Os EUA rejeitou e perseguiu milhares de refugiados judeus, incluindo aqueles que procuravam asilo da Alemanha nazista. O “Estado Judeu”, que com frequência é retratado como tendo emergido como uma resposta pacífica à violência antissemita, foi em parte forjado para servir aos interesses de atores antissemitas ou insensíveis ao sofrimento dos judeus. Ao apoiar Israel, os EUA e outros colonizadores procuravam o poder geopolítico em um contexto colonial, uma realidade que continua até hoje, às custas, em particular, dos palestinos, na medida em que a desumanização racista sustenta o sionismo moderno.

“Não existe segurança em uma sociedade baseada no militarismo etnonacionalista. A segurança só pode vir por meio da libertação coletiva”.

Embora a maioria dos judeus nos EUA afirmem ver Israel como uma parte importante do seu judaísmo, um número relevante não o faz e, de fato, rejeita com vigor a ideologia política que reforça o estado etnonacionalista. Vale lembrar que desde que o sionismo moderno existe, ele é criticado – inclusive pela esquerda judaica. Hoje, muitos desses críticos estão envolvidos em cooperações com militantes palestinos para denunciar o etnonacionalismo e a colonização; em oposição a isso, trabalham para a construção de uma sociedade baseada na justiça e na igualdade, na qual os palestinos não sejam sitiados, expropriados, exilados, ou tratados como cidadãos de segunda classe, e assim todos poderão viver em segurança.

Nas décadas que antecederam a Segunda Guerra Mundial, muitos judeus de esquerda não quiseram aderir ao imperialismo britânico, com o qual o sionismo político mantinha ligações inextricáveis. Alguns também reconheceram o antissemitismo que impulsionou as potências coloniais a apoiarem a criação de Israel, enquanto outros compreenderam que a imposição de um Estado judeu exclusivista contrariava princípios democráticos.

Esta história é capturada em um artigo de 2020 para a revista American Quarterly intitulado “Quando o antissionismo era judeu”. Seu autor, Benjamin Balthaser, professor associado de literatura multiétnica na Universidade de Indiana em South Bend, escreve: “A crítica ao sionismo era comum na esquerda judaica nas décadas de 1930 e 1940, tão comum que um historiador da literatura cultural sionista encontraria apenas um autor judeu de esquerda, Meyer Levin, que abordou temas pró-sionistas (e, de fato, seus romances foram amplamente criticados)”.

Em alguns setores da esquerda judaica, esse sentimento permaneceu após o Holocausto, uma realidade que é frequentemente ignorada. Como Balthaser explica em entrevista em 2020 publicada na revista These Times:

É inegavelmente correto dizer que sem o Holocausto é provável que Israel inexistiria, pelo simples fato do pesado fluxo de refugiados judeus após a guerra que, de outra forma, teriam com certeza permanecido na Europa. Sem esse êxodo de judeus que lutaram na guerra de 1948 e povoaram Israel logo a seguir, é improvável que um Estado independente de Israel pudesse ter tido sucesso.

No entanto, algo que achei muito surpreendente ao ler a imprensa de esquerda judaica na década de 1940 – publicações dos trotskistas do Partido Socialista dos Trabalhadores, do Partido Comunista e escritos de Hannah Arendt – é que, mesmo após uma compreensão mais ampla do Holocausto, a posição oficial ainda era antissionista. Eles podem ter exigido que os judeus fossem reassentados nas terras de onde foram expulsos ou massacrados, com plenos direitos e plena cidadania, que fossem autorizados a imigrar para os Estados Unidos, ou mesmo que fossem autorizados a emigrar para a Palestina se não houvesse outro lugar para ir (o caso mais frequente). Mas eles ainda eram totalmente contra a divisão e a criação de um Estado exclusivo para os judeus.

Tais críticas, é claro, foram feitas para além da esquerda judaica, forjadas com urgência pelos palestinos que foram forçados pelas potências coloniais, em primeira mão, a confrontarem a violência do sionismo moderno. O intelectual palestino Edward Said escreveu em seu trabalho de 1979, “Sionismo do Ponto de Vista de Suas Vítimas”:

Instituições foram construídas com a exclusão deliberada dos nativos, leis foram elaboradas quando Israel surgiu para garantir que os nativos permanecessem em seu “não-lugar”, os judeus no deles, e assim por diante…. Não é de se admirar que hoje a única questão que eletrize Israel como sociedade seja o problema dos Palestinos, cuja negação é o fio condutor mais consistente que atravessa o sionismo. Talvez este seja o aspecto infeliz do sionismo que o liga, de forma inelutável, ao imperialismo – pelo menos no que diz respeito aos palestinos.

Os judeus antissionistas reconhecem que devemos fazer o oposto: rejeitar a negação dos palestinos, em todas as suas formas.

Embora o antissionismo judaico não seja uma posição majoritária, é hoje uma força inegável na política dos EUA. A Vozes Judaicas pela Paz, uma organização dos EUA, divulgou uma declaração em 2019 explicando por que assume uma posição antissionista.

“O sionismo significou um trauma profundo durante gerações, separando sistematicamente os palestinos das suas casas, terras e uns dos outros”, afirma. “O sionismo, na prática, resultou em massacres do povo palestino, na destruição de antigas aldeias e olivais, e na separação, por postos de controle e muros, de famílias que vivem a apenas um quilômetro e meio de distância umas das outras, com crianças que se apegam às chaves das casas de onde partiram os seus avós em exilio forçado”.

A declaração continua: “Ao partilharmos as nossas histórias uns com os outros, vemos as formas como o sionismo também prejudicou o povo judeu. Muitos de nós aprendemos com o sionismo a tratar nossos vizinhos com suspeita, a esquecer as formas como os judeus construíram o lar e a comunidade onde quer que nos encontrássemos”. Deve ser dito que o número de judeus dos EUA que estão dispostos a criticar e questionar abertamente a ocupação de Israel, mesmo sem se considerarem antissionistas, aumentou desde o governo Trump.

Nos EUA, os antissionistas, ao lado dos críticos das ações do governo israelense, também apontam para o enorme complexo militar que sustenta Israel – que gastou 23,4 bilhões de dólares nas suas forças armadas em 2022, segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo — e a cumplicidade do nosso próprio país: Israel recebe anualmente cerca de 3,3 bilhões de dólares em ajuda militar dos EUA.

Hoje, membros da Vozes Judaicas pela PazIf Not Now, e outros judeus e apoiadores estão atuando em Washington, D.C., exigindo que o Presidente Biden use sua influência para forçar Israel a cessar seu ataque aos palestinos em Gaza. Dizem: “Não ao genocídio em nosso nome”, com muitos detidos por atos de desobediência civil (ver vídeo abaixo).


Alguns críticos das políticas e ações militares israelenses vêm de Israel. Os reservistas do exército que recusaram o combate na guerra do Líbano formaram o grupo Yesh Gvul, [“Há um limite”], em 1982. Em 2002, cinco jovens que recusaram o recrutamento para o serviço militar israelense por razões éticas foram condenados a dois anos de prisão. Nos últimos anos, estes objetores de consciência se ​​autodenominaram Shministim, palavra hebraica para “alunos do 12º ano” – a idade em que os israelenses são recrutados para o serviço militar, uma idade em que ninguém deveria se tornar o braço de um colonizador (não que haja alguma boa idade para isso). Em um exército onde é difícil obter dispensa com base no estatuto de objeção de consciência, muitos destes jovens enfrentaram penas de prisão contínuas.

O jornalista Haggai Matar, em 2002, foi um dos israelenses que escolheu a prisão em vez de contribuir à ocupação. Em 7 de outubro, escreveu uma comovente declaração publicada na Revista +972, afirmando: “O pavor que os israelenses estão sentindo depois do ataque de hoje, inclusive eu, tem sido a experiência diária de milhões de palestinos há muito tempo”.

“A única solução”, escreveu, “desde sempre, é encerrar ao apartheid, à ocupação e ao cerco, construindo um futuro baseado na justiça e na igualdade para todos nós. Não é apesar do horror que temos que mudar de rumo – é exatamente por causa dele”.

O israelense Noy Katzman, falando de seu irmão Chaim, morto pelo Hamas no recente ataque, declarou a Jake Tapper na CNN que “a coisa mais importante para mim e também para meu irmão é que sua morte não seja usada para matar pessoas inocentes. E, infelizmente, o meu governo está usando com cinismo a morte de pessoas apenas para matar”.

Alguns membros do sistema político de Israel estão operando para reprimir os israelenses que se opõem ao cerco a Gaza. O Haaretz relatou em 15 de outubro que “o ministro das Comunicações, Shlomo Karhi, está editando portarias para poder ordenar a polícia a prender civis, removê-los de suas casas ou apreender suas propriedades, caso acreditem que o suspeito tenha espalhado informações prejudiciais à moral nacional ou úteis à propaganda inimiga”.

E há alguns relatos que os israelenses que se opõem ao assassinato de civis palestinos enfrentam ameaças de violência física e e ataque a tiros. Estes não são sinais de um Estado de fato comprometido com a segurança de todos os judeus, muito menos dos 18% de cidadãos israelenses que são palestinos.

Entretanto, há um déficit de cobertura nos EUA sobre o que os palestinos enfrentam neste momento. A maioria dos meios de comunicação norte-americanos contam histórias de civis israelenses mortos, mas, de forma chocante, ainda dão muito pouco tempo de transmissão aos civis palestinos, mesmo quando Israel dita a guerra em uma escala que nunca vimos em nossas vidas.

Os palestinos em Gaza, na Cisjordânia e em todo o mundo têm denunciado amplamente esta atrocidade, por vezes colocando em enorme risco às suas próprias vidas.

Tareq S. Hajjaj, jornalista palestino e correspondente na Faixa de Gaza do site de notícias sem fins lucrativos com sede nos EUA, Mondoweiss, publicou uma reportagem da faixa em 13 de outubro, depois de ser forçado a abandonar sua casa quando os militares israelenses ordenaram a evacuação do norte de Gaza.

“Escrevi muitas histórias sobre a Nakba de 1948 e entrevistei pessoas que deixaram suas casas e terras”, escreveu Hajjaj. “Ouvi suas histórias e vi as lágrimas que derramavam sobre o que vivenciaram. Desta vez, testemunhei todas essas cenas. O que vi no meu trajeto só pode ser descrito como uma nova Nakba”.

É o “período mais mortal para jornalistas em Gaza”, com pelo menos 12 jornalistas mortos, segundo o Comitê de Proteção dos Jornalistas.

Com horror crescente, testemunhamos o que os palestinos enfrentam – a ameaça imediata de aniquilação. Portanto, devemos reconhecer que, mesmo quando falamos sobre como a realidade do projeto sionista moderno, liderado por um governo de direita, prejudica os judeus ao oferecer uma falsa promessa de segurança e paz, nunca devemos ocultar que o grupo de pessoas mais visado ​​por este sistema político são os palestinos. Foram eles que foram colonizados, deslocados e sitiados mesmo antes de Israel lançar a sua implacável campanha de bombardeamentos e cortar a eletricidade, a alimentação e a água numa faixa onde vivem 2 milhões de pessoas, a maioria das quais crianças.

São os palestinos que vivem sob ocupação militar na Cisjordânia e, como cidadãos de segunda classe em Israel, são colocados em detenções administrativas, expulsos das suas casas, enfrentando bombas de gás lacrimogêneo e armas de fogo pelo simples ato de protesto, forçados a navegar nas estruturas do apartheid que os força viajar por caminhos diferentes, sofrendo desapropriações sistemáticas.

Os palestinos são aqueles que foram exilados de suas casas durante gerações, aos quais foi negado o direito mais básico de retorno. E agora enfrentam uma campanha de extermínio.

Não existe segurança possível em uma sociedade baseada no militarismo etnonacionalista. A segurança só pode vir através da libertação coletiva, jogando a nossa dor na luta contra o genocídio palestino, o apartheid e a colonização, em defesa de uma sociedade baseada na justiça e na igualdade. Temos que confrontar a história brutal do sionismo e rejeitar sem equívocos a violência indescritível contra o povo palestino levada a cabo em nosso nome.