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MUNDO

“O extermínio não deveria ser o destino de nenhum povo, não apenas dos judeus”

Entrevista de Amy Goodman com Amira Hass, jornalista judia residente em Ramalah, na Cisjordânia, e correspondente do jornal israelense Haaretz.

Tradução de Gabriel Dayoub, do portal Esquerda Online
flickr

Amy Goodman: Nós terminaremos o programa com Amira Haas, lendária jornalista israelense que escreve há 30 anos sobre Cisjordânia e Gaza. Ela é a correspondente do jornal Haaretz nos Territórios Palestinos Ocupados, com base em Ramallah. O título de seu último artigo é “Sem água e eletricidade de Israel, cidadãos de Gaza ficam sob risco de desidratação e doenças”.

Hoje, apresentamos a segunda parte de nossa conversa. Na quinta-feira, eu e Nermeen Shaik, do canal Democracy Now!, falamos com Amira após ela ter participado do histórico ato liderado por judeus norte-americanos em Washington. Os manifestantes exigiam um cessar fogo imediato e nós pedimos para que ela descrevesse o que ocorreu.

Amira Hass: Veja, eram pessoas comuns. Foi uma expressão de choque e tristeza compartilhado pelas pessoas, por judeus. As principais palavras de ordem eram “Não em nosso nome” e “Cessar fogo imediato”. E, para mim, foi muito importante estar lá. Eu fui como pessoa, como indivíduo, como judia, não como jornalista. Encontrei vários israelenses que vivem ou estudam nos Estados Unidos.

E também, sabe, todos nós precisamos de algum tipo de… deste tipo de apoio. Que, aliás, os palestinos estão proibidos de manifestar. Judeus podem fazer seus protestos. Sabemos que por toda a Europa há lugares onde palestinos são proibidos de organizar manifestações em solidariedade às pessoas que estão sendo mortas na Palestina. Então, novamente, nós somos privilegiados, os judeus. Nós podemos fazer coisas que não são permitidas aos palestinos. Eu sei que aqui, nos EUA, houve alguns atos de palestinos. Mas eles estão sendo silenciados, seus sentimentos, seu luto não está sendo respeitado. Eles são chamados de apoiadores do terrorismo ou coisas do gênero. Eu estive em Boston antes e pude ver como até mesmo a palavra “palestino” é proibida de constar em qualquer tipo de pronunciamento oficial.

Como judia, eu me identifico muito com o sentimento de ser colocada no ostracismo por todo o mundo. De não ser ouvida ou esse sentimento de… essa indiferença que o mundo demonstra em relação aos palestinos, ao seu sofrimento, à sua angústia. É chocante. E eu, como judia e como filha de sobreviventes e neta de judeus que foram assassinados pela Alemanha nazista, eu consigo… minha identificação e senso de identificação, minha raiva e meu desespero – preciso dizer: desespero – crescem a cada dia, a cada minuto.

Nermeen Shaik: Amira, na sua coluna no Haaretz você recentemente escreveu desse ponto de vista, de alguém que é filha de sobreviventes do Holocausto. O título do artigo é “Alemanha, você traiu sua responsabilidade há muito tempo”. Nele, você escreve sobre seu pai, um sobrevivente do Holocausto que dizia, já em 1992: “é verdade que este não é um genocídio como o que nós passamos. Mas, para nós, acabou em cinco ou seis anos. Para os palestinos, o sofrimento tem se estendido por décadas”. Então, poderia contar para nós um pouco mais sobre a posição do seu pai e o fato dessa não ser essa a posição – o que é compreensível, em certo sentido – da maior parte dos sobreviventes e filhos de sobreviventes do Holocausto?

Amira Hass: Veja, em 1992 era… poderíamos dizer que não era um genocídio. Quero dizer eu não quero… como já expliquei inúmeras vezes, eu prefiro não falar sobre isso agora, não entrar em definições, prefiro descrever a situação. É claro que em 92, em comparação com o que estamos passando hoje, parecia um tipo de ocupação benigna. Em comparação com hoje, com o que está ocorrendo agora.

Veja, eu venho de uma família de esquerda. Então, sempre foi claro que, se há uma lição a ser aprendida da indústria nazista de extermínio – acho que essa denominação é mais precisa que “holocausto” – é que esse não deveria ser o destino de nenhum povo no mundo, não apenas dos judeus. E outra coisa que meu pai me ensinou. Ele sempre me alertou sobre as guerras. Ele me ensinou que durante uma guerra as coisas podem sempre ficar piores e piores, até sair do controle. E é por isso, exatamente por isso, que a direita israelense e os colonos religiosos messiânicos sempre tem nos empurrado para guerras e conflitos regionais. Para alcançar o grande plano de repetir e completar a Nakba de 1948. Digo, eu digo sempre essas coisas, eu não consigo acreditar que chagamos a isso, mas chegamos. Chegamos e o mundo está silencioso e/ou parado. Está parado como em tantas fases da história da humanidade.

Quero dizer mais uma coisa. No começo do ano 2000, durante a Segunda Intifada, fui procurada por Howard Zinn, o grande historiador Howard Zinn. Num sentido muito parecido com os alertas do meu pai, ele me disse que ele pensava sobre uma inciativa para fazer as pessoas começarem a discutir sobre o banimento de todas as guerras, sabe? Não apenas para dizer que isso ou aquilo são crimes numa guerra. Porque a própria guerra é um crime. É por isso também que eu não uso o termo “crime de guerra”, porque a guerra é um crime. Porque a guerra libera tanta barbárie dos seres humanos, de todos os seres humanos, que a nossa capacidade de voltar a uma normalidade decente fica limitada. Esse é o pano de fundo. Esse é o meu pano de fundo, o pano de fundo dos meus pais. E nós tentamos… eles tentaram e eu tentei, como ativista e como jornalista, sensibilizar as pessoas, a humanidade das pessoas e a racionalidade das pessoas. Porque isso atingirá… o que está acontecendo hoje, os alvos são os palestinos, claro. Mas, eventualmente, isso pode atingir, isso vai atingir todos na região, vai atingir judeus como já atinge os palestinos em Israel. Eu continuo falando sobre isso e ainda tenho esperança de parar essa barbárie imediatamente.

Amy Goodman: Você esteve com a gente em fevereiro. Naquela ocasião, você nos escreveu depois da entrevista dizendo: “o perigo da expulsão em massa de palestinos está no ponto mais alto desde a Nakba. Devemos repetir essa mensagem sem parar para que ela seja um alerta e não uma profecia”. O que você quis dizer com isso? É claro, estamos em outubro. Agora, algo em torno de 3.800 palestinos estão mortos. Mas centenas de milhares foram forçados e se deslocar e o exército israelense está dizendo que metade da população de Gaza precisa sair do norte da Faixa – a parte mais povoada do lugar mais populoso da Terra – e ir para o sul.

Amira Hass: Olha, preciso dizer que quando escrevi em fevereiro eu estava pensando mais na Cisjordânia. Mas nós podemos ver que eles estão trabalhado nas duas frentes, que são inseparáveis. Porque é o povo palestino nos dois lugares que está sob ocupação israelense, mesmo que a situação seja diferente. Mas, como o Dr. Mustafa disse, eles querem pressionar o Egito para abrir a fronteira e deixar os Palestinos saírem. Assim, as pessoas podem dizer, “ah, também é culpa do Egito. Porque eles não deixam todas aqueles pessoas saírem?” Em Israel, eles são pressionados a deixar os palestinos construírem no Sinai, construírem uma nova cidade ou algo assim. Mas também existe o perigo de expulsão em massa na Cisjordânia. E é por isso que, novamente repetindo o Dr. Mustafa, o Rei Abdullah está tão preocupado. Porque ele sente que, com os palestinos sendo cada vez mais pressionados, eles acabarão sendo empurrados para a Jordânia. Há uma antiquíssima crença em Israel que a verdadeira Palestina é a Jordânia, porque a maior parte dos habitantes da Jordânia são palestinos. Então, o perigo existe. E digo novamente, guerras… a direita quer a guerra exatamente para concretizar esses planos, que são mais ou menos contidos em tempos normais. E nossa normalidade nunca é normal.

Nermeen Shaik: Amira, quero citar novamente outro artigo seu, “Chegando novamente no ciclo da vingança”, escrito apenas alguns dias depois dos ataques do Hamas. Nele, você escreveu que “como em todas as guerras de Israel contra a Faixa da Gaza com envolvimento do Hamas, considerando especialmente o assassinato de civis, é necessário perguntar: essa organização tem algum plano realista de ação e um objetivo político realista? Ou fez o que fez para recompor sua posição aos olhos dos residentes de Gaza? Houve um plano logístico para auxiliar e resgatar civis em Gaza sob ataque junto com essa operação militar?” Poderia responder a essas perguntas retóricas que você fez? E o que está acontecendo com os reféns? Quero dizer, agora Israel está dizendo – eles aumentaram o número – que são 203 reféns israelenses que estão presos em Gaza. O que está acontecendo com eles? E o que sabemos sobre as ações de Israel para negociar ou forçar sua libertação? É possível presumir que eles também estão sendo afetados por esses bombardeios.

Amira Hass: Exatamente. Eu não tenho ideia de quantas pessoas são, quantos reféns. Eu conheço parentes de alguns deles. Eu sei que um deles tem 85 anos e é um jornalista muito corajoso que… seu nome é Oded Lifshitz. Eu acabei de perceber. Ele tem 85 anos. Nos anos 1970, ele denunciou o Estado de Israel pela expulsão dos Beduínos no norte do Sinai. Ele expôs essa história numa série de artigos. Eu conheço alguns parentes de pessoas que foram capturadas. Como disse, são meus amigos.

Nós não sabemos o que está acontecendo… Sabe, eles estão nas mesmas condições que todos os palestinos em Gaza. Se estão vivos, estão sem água e eletricidade. Se estão feridos, não há como tratá-los. Se eles estão separados, como eles estão presos… alguns estão presos com a Jihad Islâmica. Outros, com o Hamas. Onde eles estão ficando? Eles foram do norte para o sul? Nós não temos respostas para todas essas questões. E eu não sei se o exército israelense tem.

Neste momento, enquanto falamos, Israel está prendendo. Está prendendo mais e mais trabalhadores palestinos de Gaza que estavam em Israel quanto tudo começou. No começo, era permitido que eles fossem para as cidades palestinas da Cisjordânia. Mas agora estão sendo presos. Eu ouso suspeitar que Israel também jogará com isso para negociar a libertação de prisioneiros.

O Hamas demonstrou ser muito criativo em operações militares. Eles sabiam como neutralizar as forças de segurança israelense. Eles sabiam driblar o aparato de vigilância, as armas automáticas, onde estavam as bases militares, etc. Então, eles foram muito criativos. Poderia dizer que foi impressionante, se não fosse pelas atrocidades cometidas depois. E foram cometidas atrocidades. Eu sei que não é a hora de dizer aos palestinos para prestarem atenção para isso, porque a vingança israelense é centenas de vezes mais sangrenta. Mas, ainda assim, houve atrocidades. Então, eu sinto que há uma tremenda contradição entre o plano imediato da operação militar e o que veio depois. O que os civis estão enfrentando em Gaza. Se eles sabiam que fariam a operação militar e sabiam que a retaliação seria feroz, então porque, por exemplo, eles não deram um jeito para as pessoas terem acesso a água? Eu não sei. Digo, se eles conseguem ter tantas armas, deveriam também ter se preparado para ajudar a população civil, os seus civis. Mas, vendo de longe, não me parecer ser isso o que aconteceu.

Eu não acho que o Hamas pode ser apagado. Ele pode se estabelecer fora de Gaza. Mas eu não entendo qual é o seu plano político. Eles querem libertar toda a Palestina, não importa se levar 50 anos, 80 anos, a custo das vidas de palestinos e israelenses? Quem retornará a esse país? Quem viverá nesse país destruído, se esse é o plano? Se o plano é político, imediatamente político, como demandar a libertação dos palestinos aprisionados por Israel, vale a pena um custo tão alto? Eu acho que conheço algumas pessoas que estão presas. Eu não acho que eles ficariam felizes de ser libertados graças à morte de dezenas de milhares de palestinos.

Então, eu vejo, militarmente, uma organização muito capaz, que impôs uma derrota importante a Israel. Mas eu não vejo uma posição política viável. Essa é a minha opinião. Eu não sei. Digo, nós estamos esperando… porque a guerra justa, o derramamento de sangue pela guerra justa, aonde isso nos levará? Aonde levará os palestinos? Agora, é muito difícil para as pessoas criticarem o Hamas, há muito apoio. Mas é um movimento político? Tem uma perspectiva política, lógica, humana? Eu não vejo.

Amy Goodman: Eu também quero perguntar a você como responder às afirmações que são repetidas na televisão – porque é assim que os americanos se informam do que está acontecendo, pela mídia corporativa. Os mais jovens não assistem televisão, mas a população mais velha, sim. Se você ligasse na CNN ontem, por exemplo, você veria um representante do exército de Israel depois do outro. É uma repetição de todos os outros dias. Houve até mesmo o ex-primeiro ministro Naftali Bennet, que atualmente está no exército, dizendo para a Sky News, “vocês estão realmente me perguntando sobre civis palestinos?” Mas depois do bombardeio do hospital – independentemente de como isso se desenvolva, de quem for responsável – a CNN passou o dia todo dizendo: “oficiais dos EUA afirmam que Israel não é responsável”. Isso foi mais noticiado que o ataque ao hospital. Durante o dia, parece que Netanyahu venceu a discussão. Não importa se é verdade ou mentira, o que importa é que Israel não é responsável. Então, quero te perguntar sobre isso. Isso ocorre num momento em que mais de 3.500 palestinos foram mortos. Dezenas de outras unidades de saúde foram atacadas, uma delas a poucos dias, e as Forças Armadas Israelenses não negaram responsabilidade. O que significa esse tipo de cobertura? Noam Chomsky diz que a mídia sempre fabrica consenso para a guerra. Mas é importante, porque os EUA é o país mais poderoso do mundo e o maior fornecedor de armas de Israel.

Amira Hass: Veja, o que significa dizer que Israel não é responsável? Israel vem trabalhando para isso desde os anos 90, quando o mundo pressionou para uma negociação com os palestinos – os palestinos queriam isso. Foi logo depois da Primeira Intifada, que tinha uma mensagem política muito clara: nós não queremos que nossas crianças vivam como nós vivemos, sob ocupação. Então, vamos negociar e criar um Estado, um Estado palestino, ao lado de Israel. Isso foi aceito, um modo acordado de acabar com o derramamento de sangue, com a crise, com o conflito. E o mundo apoiava, ou, ao menos, parecia apoiar.

Israel fez tudo o possível para sabotar a possibilidade de um Estado palestino. Apenas aumentou sua sede colonial desde o começo do processo de Oslo. Israel isolou Gaza e tratou a Faixa como um enclave separado, sem conexão com as pessoas da Cisjordânia e com o resto da Palestina e de Israel. Isso não começou quando com a ascensão do Hamas, mas muito antes, no começo dos anos 90. então, o que não é responsabilidade de Israel? Foi a política israelense que iniciou essa cadeia de reações. Nós repetimos isso dezenas de vezes para israelenses, para diplomatas, para diplomatas estrangeiros, para outros países. Nós alertamos dezenas de vezes. Nós sabíamos, nós queríamos evitar que isso acontecesse. Então, como alguém pode dizer que Israel não tem responsabilidade?

E sabe de outra coisa? Todo o palestino que é morto hoje em Gaza fica registrado no controle israelense de população. Palestinos não são registrados separadamente, é Israel que controla. Se uma pessoa não é registrada, se um recém-nascido não é registrado em Israel, ele não existe. Israel ainda controla isso. A Autoridade Palestina é obrigada a dar o nome de todas as crianças que nascem e informar toda a mudança de endereço para Israel. Então, como pode não ser responsável? É parte de Israel. Digo, Israel controla tudo, controla as pessoas, decide quanta água eles pode chegar, que tipo de economia pode existir. Se as pessoas podem ir a uma universidade na Cisjordânia. Israel decide sobre todos os detalhes da vida dessas pessoas. Então, o que está ocorrendo agora não é responsabilidade de Israel?

É exatamente assim que a maior parte da grande mídia age para não lidar com o problema. Eles começam a falar sobre o conflito e a crueldade apenas quando chegam a nível insuportáveis. Mas há crueldade, violência, terror, terror burocrático, violência burocrática, que se acumula há anos, uma camada sobre a outra. E isso choca a todos, a todos os palestinos.

Os palestinos de Gaza, aqueles com menos de 30 anos, nunca viram uma montanha em suas vidas. Uma montanha. Eles não entendem o conceito de uma fonte de água brotando em uma montanha. Eu sei disso porque uma jovem amiga minha teve a chance de ir para a Cisjordânia porque estava com câncer. E os amigos diziam para ela, “você tem tanta sorte de ter câncer! Você pode sair da Faixa de Gaza”. Seus irmãos ficavam surpresos quando ela contava sobre as montanhas da Cisjordânia. Então, você tira tudo das pessoas por tantos anos… você tira toda a esperança, todo o horizonte, toda a alegria, você tira deles.

E ainda assim eu quero dizer, novamente, que quanto mais eu ouço sobre o que aconteceu nesse sábado… eu chequei muitos detalhes e as atrocidades aconteceram. Mas isso me ensinou que as pessoas – não todas, não a maioria, algumas poucas. Mas apenas me mostrou como a pressão exercida por todos esses anos, o quão monstruoso isso foi para criar esses ataques monstruosos em um dia.

Publicada originalmente em Israeli Journalist Amira Hass, Daughter of Holocaust Survivors, Calls for Gaza Ceasefire Now em 20/10/2023