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MOVIMENTO

Transicionar, aldear e aquilombar: a greve de 2023 da Unicamp e as lições de 2016

Por Ingrid Saraiva e Lucas Marques, de Campinas (SP)
Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp (STU)

A greve de 2016 na Unicamp deixou um legado que mudou radicalmente a universidade. Muites que vieram da geração pós 2016, ouviram histórias, músicas, fatos e memórias do que foi a greve que colocou no centro as cotas étnico-raciais, o vestibular indígena e as questões de permanência na universidade. Ao mesmo tempo, o pós-greve de 2016 teve dezenas de estudantes punidos, com um recorte racial bem definido.

Hoje, em 2023, vivemos uma nova greve na Unicamp, com novas demandas, com novos rostos e, ao mesmo tempo, velhos dilemas. O perfil des lutadores mudou: a linha de frente tem uma composição social de bolsistas, negres, indígenas, pessoas trans, PCD’s, que falam por si mesmes, não como objeto de estudo mas fundamentalmente como sujeitos. Ao mesmo tempo que o processo de mudança se desenrola, algumas questões permanecem as mesmas: o que está em jogo quando entramos e saímos de uma greve? Qual a relação dos partidos e organizações com os movimentos sociais na condução dos processos de luta? De qual forma podemos conquistar vitórias para todo o movimento? O intuito desse texto é contribuir para esse debate, fruto de uma elaboração coletiva, compreendendo o que podemos tirar de lições de 2016 para esta greve de 2023.

Boa leitura!

O que está em jogo na greve de 2023 da Unicamp

A greve de 2016 foi a última experiência de greve que aconteceu na Unicamp antes de 2023, ou seja, a grande maioria da vanguarda de 2023 nunca experienciou uma greve. Essa geração também vivenciou um dos momentos mais difíceis da conjuntura: golpe de 2016, governo Temer, aprovação da Reforma Trabalhista e da Previdência, eleição de Bolsonaro em 2018, pandemia de COVID-19, sendo o último processo de vitória (apertadíssima) na conjuntura nacional a eleição de Lula em 2022. Parte des estudantes viveram o ensino remoto na universidade e também no ensino básico. Vimos as condições de vida piorar, o preço subir, o trabalho precarizado crescer, o negacionismo científico, os crimes de ódio contra setores oprimidos, e um longo etcétera. Essa é a situação política nacional: uma série de ataques aos nossos vindos do andar de cima, uma extrema-direita que ainda não sofreu uma derrota histórica, mas hoje há uma inflexão mais positiva do nosso lado da luta que nos permite avançar, a disposição de luta mudou e devemos aproveitar as oportunidades políticas para conquistar vitórias.

No movimento estudantil da Unicamp, o percurso desses últimos 7 anos sem greve nos fez acumular um conjunto de pautas: ampliação da política de acesso, melhoria de infraestrutura e permanência, contratações, democracia universitária, combate efetivo aos casos de opressão, entre outros. O retorno presencial em 2022 trouxe uma série de desafios para o movimento: aulas online, risco biológico decorrente da pandemia de COVID-19, piora nas condições de vida des estudantes e cobertura insuficiente das políticas de auxílio. No primeiro semestre de 2023 passamos por um período intenso de calouradas e eleições de entidades. Neste segundo semestre es servidories iniciaram uma greve contra o ponto eletrônico e por isonomia salarial com a USP, e no dia 3 de outubro votamos a paralisação des estudantes sob o mote “Unificar as lutas para derrotar Tarcísio: estudantes e trabalhadories em defesa dos serviços e universidades públicas! Cotas trans já!” que, além das nossas pautas, também somava-se ao apoio à greve unificada des trabalhadories do metrô, da SABESP e CPTM. Ao todo, aconteceram 25 assembleias, que deliberaram a paralisação das suas atividades mesmo com pouco tempo de construção.

No dia da paralisação aconteceu um fato que mudou a conjuntura da universidade. No início da manhã, um docente, contrário à paralisação, ameaçou três estudantes portando uma faca e spray de pimenta durante a interrupção de uma aula, onde agrediu fisicamente es estudantes um com spray de pimenta, e apontou a faca para o único estudante negro entre eles. O professor, assumidamente de extrema-direita, foi levado para a delegacia junto desses estudantes dizendo, ainda, que era a vítima, e não o agressor. A nota da reitoria foi lamentável: colocou que a interrupção de aulas era uma medida violenta comparável com uma tentativa de assassinato por parte do professor [1]. O caso teve muita repercussão e a partir daquele momento o caráter da paralisação mudou: era urgente e necessário um indicativo de greve exigindo nossas pautas, a demissão e afastamento imediato do docente.

No final do mesmo dia foi chamada a assembleia geral que deliberou o indicativo de greve, reivindicando 8 pontos de pauta: (1) cotas trans, (2) cotas PCDs, (3) demissão do professor fascista, (4) bandejão aos finais de semana e permanência, (5) melhorias de infraestrutura, (6) mais contratações por concurso público, (7) apoio à greve des servidories contra o ponto eletrônico, (8) por melhores condições de trabalho para as trabalhadoras terceirizadas. Todas as demandas refletem um acúmulo de pautas represadas no movimento estudantil e uma das primeiras tarefas da greve ainda é dar contorno e elencar prioridades: o que não abrimos mão, o que podemos negociar e o que vai continuar sendo uma disputa após a greve. No dia que escrevo este texto, dia 18 de outubro, apenas três cursos não aderiram à greve: medicina, engenharia civil e odontologia (este último do campus de Piracicaba).

Diferentemente de 2016, em que os cursos entraram em greve primeiro para culminar na assembleia geral, a greve de 2023 começou pelo processo contrário: da assembleia geral para os cursos. Há também uma diferença de contexto: enquanto em 2016 a cena política foi o golpe, em 2023 é o primeiro ano do terceiro mandato de Lula no governo federal e no governo estadual está Tarcísio, o filhote do bolsonarismo em São Paulo. Em 2016 a greve começou pelos cortes, e 2023 com uma tentativa de assassinato. Neste sentido, iniciamos a greve com parte da opinião pública a nosso favor, cenário diferente do que foi há 7 anos atrás. Outro elemento que aparece de forma semelhante porém diferente: em 2016 a Frente Pró-Cotas e o Núcleo de Consciência Negra (NCN) tiveram papel essencial na disputa para que as cotas étnico-raciais e o vestibular indígena fosse o centro da greve; hoje o Núcleo de Consciência Trans (NCT) faz uma disputa importantíssima para que a greve de 2023 seja A greve das cotas para pessoas trans e travestis.

Cotas trans para derrotar o fascismo

A primeira grande vitória da luta estudantil foi a abertura da comissão de sindicância contra Rafael Leão, o professor de extrema-direita que ameaçou es estudantes, e devemos seguir em luta para garantir a sua demissão. A segunda grande vitória foi a convocação de uma mesa de esclarecimentos e negociação do movimento grevista com a reitoria, ainda na primeira semana. Nesse novo momento, o movimento estudantil avançou para consolidar suas pautas através de um vitorioso comando de greve unificado que reuniu mais de 200 delegades eleites nas assembleias de curso.

O NCT organizou uma roda de conversa sobre as cotas trans com a presença de cerca de 200 estudantes, além de uma assembleia de pessoas trans com a presença de 70 estudantes, que elegeu delegades ao comando de greve unificado. O movimento trans já vem pautando a necessidade da implementação de políticas de ação afirmativa para pessoas trans na Unicamp, em especial as cotas (reserva de vagas), tema que entrou com muita força entre as demandas apresentadas na greve. Hoje, esse movimento disputa em cada espaço da greve e assembleia de curso para que a pauta central seja o acesso de pessoas trans e travestis na universidade, bem como suas condições de permanência.

Essa pauta do movimento estudantil ganha uma importância especial diante de um ataque da extrema-direita contra estudantes, dado que uma das suas principais estratégias vêm sendo se construir sobre uma ofensiva política e ideológica contra as pessoas trans [2]. Tendo em vista, inclusive, o contexto específico das universidade estaduais paulistas, é importante levar em conta que está em curso na ALESP uma CPI que tem como objetivo destruir o ambulatório trans do Hospital das Clínicas da USP.

Contra o fascismo, a melhor resposta que podemos dar enquanto movimento, além do “Fora Leão”, é a nossa organização coletiva, unificada e a conquista das nossas pautas rumo a uma universidade pública cada vez mais com cara de povo. E, nesse sentido, nada pode deixar a extrema-direita mais desmoralizada quanto respondermos seu ataque com a conquista das cotas trans em uma das universidades mais importantes da América Latina.

A relação com os partidos: ajuda ou atrapalha o movimento?

Durante processos de luta, em especial em momentos tão intensos como é uma greve, as divergências no interior do movimento costumam ser tópicos sensíveis que afetam a condução da mobilização. Essas divergências aparecem tanto entre as organizações quanto nos setores independentes, suscitando um debate antigo, já conhecido por muites de nós, que é a relação entre os movimentos sociais e os coletivos político-partidários. Acusações de cooptação, manipulação, disputas resumidas a “picuinhas” e outras formas de diminuir a importância do embate de ideias aparecem recorrentemente, gerando um sentimento anti-organizações que na nossa visão é perigoso.

Na nossa concepção, os partidos são ferramentas de luta e importantes na condução das mobilizações, em especial nos períodos de descenso do movimento quando lutar é mais difícil. Um exemplo evidente da importância das organizações é a Coalizão Negra por Direitos e a Frente Nacional Fora Bolsonaro, dois espaços de frente única de diferentes partidos de esquerda e movimentos sociais, que organizou os protestos de 2021 a partir do mote “Nem bala, nem fome, nem COVID” em plena pandemia.

Na nossa concepção, os partidos são ferramentas de luta e importantes na condução das mobilizações, em especial nos períodos de descenso do movimento quando lutar é mais difícil. Um exemplo evidente da importância das organizações é a Coalizão Negra por Direitos e a Frente Nacional Fora Bolsonaro, dois espaços de frente única de diferentes partidos de esquerda e movimentos sociais, que organizou os protestos de 2021 a partir do mote “Nem bala, nem fome, nem COVID” em plena pandemia. Mas também não significa que as organizações são perfeitas e não possuem contradições. Elas devem se responsabilizar por seus erros e necessitam lidar com seus balanços de forma honesta e sincera para que o movimento avance.

Mas o sentimento anti-organizações é perigoso por três motivos. O primeiro deles é que o veto às organizações retira das mesmas a responsabilidade de elaborar e avançar nas suas contradições que aparecem no movimento. Ora, se as organizações devem retirar-se do movimento, não precisam refletir sobre seus erros. O segundo perigo é que fortalece a narrativa à direita de saídas individuais, neoliberais, que não representam o tipo de movimento que acreditamos. Afinal, se as organizações não servem, por que construir um movimento social se não precisamos do trabalho coletivo? Por fim, o terceiro é que esse sentimento retira a agência das próprias pessoas que constroem as organizações, como se elas fossem um robô automático do partido, que não tem opinião, que não disputa a política, que não intervém. Em especial nos movimentos de combate às opressões (antirracistas, feministas, LGBTQIA+, PCDs, etc), retirar o papel des militantes enquanto sujeites nas suas próprias organizações e desconsiderar suas opiniões é um processo desumanizante e violento.

Ainda que se tenha inúmeras interpretações sobre junho de 2013, esse sentimento anti-organizações/anti-partidos do tipo “abaixe suas bandeiras” fortaleceu alternativas de extrema-direita da linha “nem esquerda, nem direita, meu partido é o Brasil”. Os capítulos subsequentes dessa história vivenciamos nos últimos anos e digamos que não foi lá muito bonito. Não existe neutralidade. Nem na ciência, nem na economia, muito menos na política e na condução do movimento. O que muites chamam de “picuinhas” na maior parte das vezes diz respeito a como conduzir o movimento para que o mesmo tenha vitórias. Votar e divergir, ter diferenças de concepção é normal, as organizações se põem à prova através da sua política e a disputa é parte do cotidiano de qualquer movimento. Es independentes também disputam política com as organizações e devem ter suas posições respeitadas. A ideia de neutralidade é anti-científica, todes temos viés e disputamos nossas ideias a partir do que consideramos que é o melhor. A construção de um movimento coletivo perpassa discussão, disputa, votação, encaminhamento, aplicação da política e balanço, e não há espaço para uma suposta “neutralidade apartidária” nesse processo. Nossa luta tem lado: o da juventude oprimida, explorada, que quer ocupar espaços de poder, como a universidade.

Unidade dos de baixo: a saída necessária para conquista de vitórias

Nós agitamos a unidade entre movimentos sociais, coletivos, militância independente e organizada em partidos políticos. Não é porque é bonito. Aliás, o processo de unidade é muitas vezes mais árduo e difícil, do que centrar-se em uma política sectária e divisionista que não dialoga com ninguém além de si mesmo. Nós apostamos na unidade porque é o que conquistou vitórias: foi a unidade desses setores que barrou os cortes na educação em 2019 e que derrotou eleitoralmente Bolsonaro em 2022.

O que permitiu a conquista das cotas étnico-raciais e vestibular indígena? A unidade entre o movimento negro e as entidades estudantis. A greve de 2016 foi deflagrada contra os cortes, e suas pautas foram construídas e disputadas a partir das assembleias de curso. O NCN disputou cada assembleia e espaço do movimento estudantil para que as cotas fossem o centro. Se não fosse a mobilização contra os cortes feita pelas entidades estudantis, talvez a greve de 2016 não tivesse acontecido, e foi durante o desenrolar da greve que a pauta das cotas étnico-raciais foi colocada no centro. Ou seja, não há uma relação de oposição, mas de complementaridade.

Se não fosse a mobilização contra os cortes feita pelas entidades estudantis, talvez a greve de 2016 não tivesse acontecido, e foi durante o desenrolar da greve que a pauta das cotas étnico-raciais foi colocada no centro. Ou seja, não há uma relação de oposição, mas de complementaridade.

Por óbvio, essa unidade não foi construída em plena paz, harmonia, com passarinhos cantando ao fundo. Ela também foi fruto de embates e disputas de ideias. Mas essa unidade é fundamental para que hoje possamos não só se defender contra algo, mas também exigir por mais. A greve é um espaço de frente única por excelência. Essa frente de organizações, coletivos, partidos e militância independente deve permanecer enquanto um espaço que levanta as demandas, coloca as críticas, mas também deve ter iniciativa e pensar nas soluções coletivamente.

Queremos destacar um elemento fundamental: a necessidade de humanizar a nossa militância. A greve é um momento exaustivo, que mexe com medos e paixões de centenas de ativistas aguerridos que lutam por um mundo mais justo, e os ânimos podem ficar à flor da pele. Mas é necessário compreender que por trás das faixas, bandeiras, cartazes e camisetas existem pessoas. Por isso, devemos coletivizar o cuidado, dividir as tarefas, ter iniciativa e também ter em mente que fechar o espaço, seja para a militância independente ou organizada, é nadar na contramão do que pode conquistar vitórias. E na Unicamp, hoje, temos possibilidades reais de arrancar vitórias, mas isso também depende de nós e do nosso esforço coletivo de construir sínteses e chegar em acordos. Por nós, do Afronte!, a tarefa central é transicionar, aldear e aquilombar cada vez mais a universidade, e lutaremos com unhas e dentes o quanto for necessário para arrancar vitórias.

Ao mesmo tempo, há lições que aprendemos com a greve de 2016: as punições. Nesse sentido, além das orientações de segurança, temos um alerta: nossa mobilização tem um sentido de conquistar vitórias. Não fazemos greve pela greve, e ter consciência disso é saber não só como entrar mas também o momento de sair da greve. E quais são os parâmetros que medem quando é preciso sair? O primeiro deles é a correlação de forças, como está a reitoria (se dividida, aberta ou fechada nas negociações) e sua relação com a categoria docente, servidores e outres, se apoiam ou não a nossa greve. O segundo é a força da nossa própria categoria: é preciso, por exemplo, mapear se as assembleias estão crescendo ou diminuindo, se as atividades da greve estão acontecendo, o nível de tensionamento nos piquetes, se opiniões contra a greve estão ou não ganhando corpo no conjunto des estudantes. O terceiro é a opinião pública: nossa disputa não acontece apenas na universidade, mas também fora dela. A disputa ideológica, que mede se a opinião da sociedade no geral está ou não favorável para nós, cumpre um papel fundamental de pressão. Juntar e analisar todos esses elementos é essencial para termos uma greve vitoriosa. Mas também é preciso ter responsabilidade com o movimento e também saber medir as consequências de uma greve que se arrasta por tempo mais que necessário: além de ameaçar a conquista das nossas pautas, podem vir no pacote punições, sindicâncias e processos judiciais.

O comando de greve unificado elegeu democraticamente 14 estudantes para representar as diversas pautas do movimento. Em duas semanas de greve já estamos na segunda mesa de negociação e já temos algumas devolutivas positivas das pautas específicas dos institutos. Mas nada está garantido: a nossa comissão de negociação precisa de uma forte mobilização estudantil para colocar a reitoria contra a parede e exigir nossas demandas. Por isso chamamos todes ao ato convocado hoje, dia 18/10, durante a mesa de negociação no vão do CB e somar na assembleia geral de amanhã, dia 19/10, para decidir os rumos do movimento!

Conquistar cotas trans e PCD e Paviartes, já! Pelo bandejão aos finais de semana e ampliação das políticas de permanência! Mais contratações! Unificar as lutas no estado de São Paulo!

[1] Nota da reitoria “Reitoria repudia atos de violência no campus”.
[2] Notícia da Folha de São Paulo “Brasil tem um novo projeto de lei antitrans por dia, e ‘efeito Nikolas’ preocupa”.
Ingrid Saraiva é estudante de pós-graduação em Ciência Política no IFCH/Unicamp, militante do Afronte! e da Resistência-PSOL.
Lucas Marques é formado em Ciências Sociais pelo IFCH/Unicamp, co-fundador do Núcleo de Consciência Trans, militante do Afronte! e da Resistência-PSOL.