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TEORIA

Lendo Fanon e pensando na Palestina hoje

Marcelo Badaró Mattos
“Esta terra não é meu céu, mas esta noite é minha noite, as chaves são minhas, os minaretes são meus, os lampiões, e eu sou meu. Sou o Adão de dois paraísos que perdi pela segunda vez. Então, expulsem-me devagar e matem-me rápido. Debaixo de minha oliveira.” “Deserto para a voz, deserto para o silêncio, deserto para a insensatez eterna. Deserto para as tábuas da lei, para os livros nas escolas, para os profetas, para os sábios. Deserto para Shakespeare e para todos que procuram Deus no humano. Aqui escreve o último árabe: sou o árabe que não existiu”
Mahmud Darwich
“Colonização e civilização? A maldição mais comum nessa questão é a de ser enganado em sua boa-fé pela hipocrisia coletiva, perita em situar mal os problemas para melhor legitimar as odiosas soluções oferecidas. Isso significa que o essencial aqui é ver com nitidez, pensar com nitidez, entender temerariamente, responder com nitidez à inocente pergunta inicial: o que, em seu princípio, é a colonização? É concordar que não é nem evangelização, nem empreendimento filantrópico, nem vontade de empurrar para trás as fronteiras da ignorância, da doença e da tirania, nem expansão de Deus, nem extensão do Direito; é admitir de uma vez por todas, sem recuar ante as consequências, que o gesto decisivo aqui é o do aventureiro e do pirata, dos merceeiros em geral, do armador, do garimpeiro e do comerciante, do apetite e da força, com a sombra maléfica, por trás, de uma forma de civilização que, em um momento de sua história, se vê obrigada internamente a estender à escala mundial a concorrência de suas economias antagônicas.”
Aimé Césaire

 

Nos últimos anos, vivemos uma verdadeira (re)descoberta de Frantz Fanon no Brasil. Uma série de livros do e sobre o psiquiatra da Martinica que abraçou o vínculo com a Argélia em meio à luta anticolonial – muitas edições novas e algumas re-edições – foi publicada no Brasil. Jovens autores brasileiros, como Deivison Faustino e Douglas Rodrigues de Barros, tomaram a obra de Fanon como objeto de análise e/ou como ferramenta para compreender o presente, em reflexões de altíssimo nível.

Hoje, diante do avanço da violência colonial do Estado de Israel frente ao povo palestino, a obra de Fanon pode ser mobilizada como referência fundamental para compreendermos o que estamos assistindo. No entanto, apesar dessa retomada recente, as reflexões de Fanon sobre o colonialismo parecem ter sido muito pouco assimiladas pela maioria da esquerda brasileira, que em sua maioria parece hoje presa na armadilha do acontecimento imediato, o que a leva a proclamar primeiramente seu julgamento moral dos atos e métodos utilizados pelo Hamas, a cada vez que pretende denunciar os ataques israelenses aos palestinos.

Não se trata aqui de justificar tal ou qual ato ou método, mas de compreender sua natureza sócio-histórica. Uma leitura mais comprometida com as reflexões de Fanon poderia fazer avançar um entendimento da violência inerente à relação dos colonizadores com os povos colonizados. Essa compreensão permitiria superar com mais facilidade a pressão à nossa volta para construir posições que partem de um repúdio aos atos dos “dois lados do conflito” como condição para criticar o massacre promovido por Israel, o que acaba por nublar a imagem completa da origem e do sentido da opressão.

Colonialismo, racismo e violência em Fanon

Em um inventário muito sintético de algumas reflexões de Fanon, podemos iniciar lembrando que suas intervenções a favor da causa da libertação nacional argelina, em meio à violência militar francesa contra a descolonização em curso no fim dos anos 1950, evidenciaram padrões comuns do colonialismo, em um nível que pode parecer surpreendentemente atual ao leitor de hoje, embora só à primeira vista o seja. Afinal, sua denúncia das “zonas interditadas”, criadas pelos colonizadores franceses na Argélia, em 1958, nos lembra tanto a experiência concentracionária de Gaza, a maior prisão a céu aberto do mundo, quanto os movimentos do Estado de Israel em meio à crise atual, para promover a expulsão dos palestinos daquela faixa e consumar mais uma etapa da expropriação colonial e da limpeza étnica em curso. Fanon explicava, em seus artigos de combate naquela época que:

Quando uma zona é decretada “interditada”, é feito um verdadeiro ultimato por meio de panfletos espalhados por avião. Ameaçando essa população de bombardeios, esses ultimatos não concedem mais que 48h para a evacuação. Diante da recusa dos habitantes de deixar suas moradias, o exército colonialista passa a realizar buscas. Tomando de assalto as mechtas, expulsa mulheres, crianças e velhos de seus lares. Essas operações são inevitavelmente acompanhadas de massacres e pilhagens. A população evacuada é, segundo um eufemismo da terminologia colonialista, amontoada em “centros de reagrupamento”. Na verdade, é colocada em regime concentracionário, em campos cercados de arames farpados. (Escritos políticos, p. 75-76)

Comentando uma dessas “interdições”, numa área de mais de 50 km na fronteira com a Tunísia, que seria submetida a bombardeio, afirmou, citando declarações do comando militar colonialista, que em tudo lembram as declarações recentes dos comandantes israelenses em relação a uma faixa fronteiriça de dimensões similares:

A grave medida que os dirigentes franceses acabam de tomar inscreve-se claramente num plano de guerra total à nação argelina. Numa entrevista coletiva, o sr. Chaban-Delmas, ministro da Guerra, declarou: “As diretrizes do governo, que comunicarei ao general Salan por ocasião de minha viagem a Argel, procuram responder ao imperativo de dar às nossas forças a liberdade de ação sem a qual se julgariam diminuídas quanto à sua eficácia.” Assim, por trás das zonas de proteção nas fronteiras, abrigado por um círculo de fogo cercando a Argélia, o exército colonialista poderá, com toda liberdade, intensificar a guerra contra as populações civis e prosseguir a política de genocídio. (Idem, p. 77)

Também em Fanon temos uma chave interpretativa inescapável para entendermos a relação indissociável entre imperialismo e racismo. “A realidade é que um país colonial é um país racista”. (Por uma revolução africana, p. 79) Na perspectiva de Fanon, “o racismo (…) não passa de um elemento de um todo maior: o da opressão sistematizada de um povo.” Na sequência da análise, questiona: “como se comporta um povo que oprime?” (Idem, p. 71) Na resposta, explica que:

“o grupo social submetido econômica e militarmente é desumanizado segundo um método polidimensional. Exploração, torturas, pilhagens, racismo, assassinatos coletivos, opressão racional se revezam em diferentes níveis para literalmente fazer do autóctone um objeto nas mãos da nação ocupante. Esse homem-objeto, sem meios de existência, sem razão de ser, é destruído no que há de mais profundo em sua essência.” (Idem, p. 74)

O racismo é necessário à empreitada colonial, porque “não é possível subjugar homens sem logicamente inferiorizá-los dos pés à cabeça. E o racismo não passa de uma explicação emocional, afetiva, às vezes intelectual, dessa inferiorização.” (idem., p. 79)

Na sua obra mais conhecida, Os Deserdados da Terra, explica como opera a desumanização do colonizado na lógica do colonizador. Esse esforço ideológico envolve uma dimensão moral/religiosa, que associa o povo subjugado à ameaça maligna. “Como que para ilustrar o caráter totalitário da exploração colonial, o colono faz do colonizado uma espécie de quintessência do mal”. (Os deserdados da Terra, p. 38) O resultado dessa operação é a desumanização do outro: “Por vezes esse maniqueísmo prossegue em sua lógica até o fim e desumaniza o colonizado. Para ser exato, ele o animaliza.” (idem, p. 39)

Como não lembrar da justificativa do ministro da defesa israelense – Yoav Gallant – para cortar o fornecimento de água, alimentos e energia à população de Gaza, quando afirmou que “estamos lutando contra animais e agimos em conformidade”?

No entanto, há limites para a introjeção, por parte do colonizado, da ideologia colonial desumanizada. Em momentos de avanço da consciência anticolonial:

“O colonizado sabe disso tudo e dá uma boa risada a cada vez que se descobre como animal nas palavras do outro, pois ele sabe que não é um animal. E, precisamente, enquanto descobre sua humanidade, ele começa a polir suas armas para fazê-la triunfar.” (Idem, p. 39)

A imagem das armas afiadas, associa o triunfo da humanidade, na luta anticolonial, a um confronto violento. Poderia ser diferente? De forma alguma, se acompanharmos Fanon em sua análise da dimensão da violência como elemento intrínseco à dinâmica da colonização. No mesmo Deserdados da Terra, Fanon apresenta argumentos muito fortes para explicar o papel da violência na dominação colonial. Nas nações colonizadoras, que ocupam o centro do mercado mundial capitalista, a dominação se exerce utilizando mecanismos morais e ideológicos de amortecimento da percepção da exploração e convencimento à submissão. Enquanto isso:

“nas regiões coloniais, ao contrário, o policial e o soldado, por sua presença imediata, suas intervenções diretas e frequentes, mantêm contato com o colonizado e o aconselham, valendo-se de coronhadas ou bombas de napalm, a ficar quieto. Vê-se que o intermediário do poder usa uma linguagem de pura violência. O intermediário não alivia a opressão, não encobre a dominação. Ele as exibe e manifesta com a consciência tranquila das forças de segurança. O intermediário leva a violência para dentro das casas e do cérebro do colonizado.”(Idem, p. 34)

Um poder colonial que se exerce necessária e fundamentalmente através da violência, não deixa margem para saídas negociadas. O desprezo histórico do Estado de Israel pelas resoluções da ONU e pelos acordos diplomáticos que eventualmente chegou a assinar, evidenciam mais uma vez, como o fizeram todos os processos de descolonização do século XX, que o poder das armas do colonizador só cede à diplomacia depois de ser revolucionariamente obrigado a isso pela reação armada do colonizado. Fanon sabia disso muito bem, e mais do que justificar, “compreendia” essa reação do colonizado, em seu sentido histórico:

“A violência que presidiu ao arranjo do mundo colonial, que ritmou incansavelmente a destruição das formas sociais nativas, que demoliu sem restrições os sistemas de referências da economia, os modos de aparência, de vestuário, será reivindicada e assumida pelo colonizado no momento em que, decidindo ser a história em atos, a massa colonizada se entranhar nas cidades proibidas. Explodir o mundo colonial é doravante uma imagem de ação muito clara, muito compreensível, e possível de ser retomada por cada um dos indivíduos que formam o povo colonizado.” (Idem, p.37)

Respondendo à situação imediata, sem esquecer suas raízes

Em tempos de dissonância cognitiva em dimensões epidêmicas, nunca é demais esclarecer que, ao recuperar brevemente essas reflexões de Fanon sobre a violência do oprimido em resposta à violência do opressor, não se pretende apresentar nenhum tipo de defesa ou de condenação aos atos recentes da resistência palestina, mas sim compreender o processo histórico do colonialismo, em seu caráter sistêmico e inerentemente racista e violento, que explica a forma tomada pela luta anticolonial.

O ponto de partida reflexivo não nos exime de tomar partido neste momento, pelo contrário, já que a situação atual obrigatoriamente deveria colocar ao lado do povo palestino qualquer posição que se reivindique de esquerda. Também não nos exime de, ao manifestarmos nossa solidariedade, exigirmos a imediata interrupção do genocídio e da limpeza étnica em marcha acelerada em Gaza, pelas mãos das forças armadas israelenses, com apoio das principais potências capitalistas do mundo. O que começa por garantir um cessar-fogo imediato, o retorno do fornecimento de energia, água e comida, além da abertura de corredores humanitários para levar a ajuda internacional a Gaza.

Essas respostas imediatas são essenciais para o alívio do sofrimento, difícil de dimensionar para os que não vivem aquela situação, do povo palestino confinado em Gaza, assistindo à morte e à dor de milhares de seus compatriotas, vizinhos e entes queridos. Sabemos, entretanto, que continuam sendo absolutamente insuficientes enquanto não for endereçada a raiz da questão, que Fanon nos auxilia a compreender: a violência colonialista derivada diretamente do metabolismo autoexpansivo e destrutivo do capital, em escala global. Em relação a essa violência, podemos sim adicionar a nosso repúdio político um juízo moral aos termos históricos concretos da catástrofe humanitária que estamos assistindo. Trata-se, nas palavras de Césaire, de uma “sombra malévola”. Quem a projeta atrás de si, hoje, é o Estado de Israel – e seus aliados.

Trabalhemos para que a resposta global de solidariedade ao povo palestino cresça o suficiente para pressionar pelo fim do banho de sangue em curso e da expropriação e apartheid que já duram mais de 75 anos. É preciso, agora mais que nunca, puxar o freio de emergência da História (lembrando a definição de revolução de Walter Benjamin), para enfim tornar finita a “insensatez eterna” a que faz referência o grande poeta palestino Darwich.

Obras citadas:
Mahmud Darwich, Onze astros (1992), Rio de Janeiro, Tabla, 2021.
Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo (1955), São Paulo, Veneta, 2020.
Deivison Faustino, Frantz Fanon e as encruzilhadas: teoria, política, subjetividade. Um guia para compreender Fanon, São Paulo, Ubu, 2022.
Douglas Rodrigues Barros, Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial, São Paulo, Hedra, 2019.
Frantz Fanon, Escritos políticos, São Paulo, Boitempo, 2021.
Frantz Fanon, Por uma revolução africana: textos políticos (1959), Rio de Janeiro, Zahar, 2021.
Frantz Fanon, Os condenados da Terra (1961), Rio de Janeiro, Zahar, 2022.
Walter Benjamin, Teses sobre o conceito de História (1940).