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MUNDO

Nesta guerra, os palestinos em Israel estão presos entre duas realidades dolorosas

Em um momento recebo notícias angustiantes de morte em massa e expulsão de amigos em Gaza. No momento seguinte, estou muito preocupada com meu amigo israelense sequestrado.

Por Samah Salaime. Tradução de Waldo Mermelstein, do Eol.
Atia Mohammed/Flash90

Foguetes são disparados da parte sul da Faixa de Gaza em direção a Israel, em 10 de outubro de 2023. (Atia Mohammed/Flash90)

Naquele amaldiçoado e sangrento sábado de manhã, queria acreditar que estava em um pesadelo insuportável – que iria acordar muito em breve e tudo acabaria, e eu voltaria a outro dia normal e chato de folga. Nós – israelenses e palestinos, judeus e árabes, aqui em Israel, do outro lado da cerca de separação em Gaza, no sul, no centro, no norte, em Jerusalém, na Cisjordânia e em todos os lados – caímos numa terrível realidade, e é impossível respirar. O coração e a mente não podem escapar do horror dos cadáveres, dos feridos e dos cativos.

Sabíamos naquele dia que uma reação israelense maciça, cruel e sem limites abriria as portas do inferno para mais de 2 milhões de pessoas, a grande maioria das quais, assim como nós, está em completo choque. Seu único pecado é o de estarem sitiados há 16 anos – pessoas inocentes, que pagarão o preço horrível da “vingança” de Israel.   

O exército mais moral do mundo começou a trabalhar imediatamente, recuperando sua honra destroçada e partindo para o ataque. A investida dos militares pode saciar a sede das almas que almejam a aniquilação dos seres humanos do outro lado da cerca rompida de Gaza.  mas nós – israelenses e palestinos – provavelmente nos afogaremos no sangue  derramado.I

Desde então, tenho vivido em dois mundos paralelos. Em um deles, vejo vídeos do TikTok, reels do Instagram e postagens aterrorizantes de cidadãos que vivem no sul de Israel, implorando aos pistoleiros mascarados que invadiram suas casas que poupassem suas vidas, antes de serem massacrados. Fotos de crianças, idosos, mulheres e homens assassinados. Crianças perdidas, mulheres mais velhas sequestradas e uma mãe apavorada, abraçando duas crianças e ansiando por salvação.

Nenhum ser humano consegue lidar com essas situações, enfrentando a morte certa no porão da casa, no chão da cozinha, ao lado da calçada, a caminho do carro de fuga. Este é o verdadeiro terrorismo: invadir um lugar que deveria ser mais seguro do que qualquer outro lugar e abrir fogo contra os indefesos. Não há outra definição para esse ato.

Chaim Goldberg/Flash90
Soldados israelenses removem corpos de civis israelenses em Kibbutz Kfar Aza, perto da fronteira de Israel e Gaza, no sul de Israel , 10 de outubro de 2023. (Chaim Goldberg/Flash90)

No outro mundo paralelo, vídeos de destruição, bombardeios, corpos desmembrados e famílias inteiras perecendo sob as ruínas de suas casas povoam minha mente. Vídeos sobre “espadas de ferro” (nome que o exército israelense deu à sua “operação” em Gaza), concreto e sujeira sob os quais corpos de palestinos serão enterrados em Gaza. Os pais correm com seus bebês sangrando nos braços, e as mães gritam de dor e perda nas ruas em chamas de Gaza.

Há morte de todos os lados

O ataque da força aérea israelense acontece há dias. Projéteis, mísseis e bombas estão caindo em todos os lados. Da minha casa, no centro do país, posso ouvir e ver os caças israelenses sobrevoando, um após o outro. Meu filho desenvolveu experiência sobre os sons da guerra: uma bomba israelense abala toda a área e é acompanhada por raios intensos; Os foguetes do Hamas fazem um “boom” muito mais fraco e mais curto, e se o Domo de Ferro (Sistema de misseis antiaéreos de Israel) intercepta um foguete, se vê a explosão no ar, como um cogumelo no céu.

Por um lado, dei por mim acompanhando as notícias sobre os desaparecidos e os assassinados no deserto do Naqab/Negev, amigos e conhecidos judeus que procuram na Internet parentes e toda uma família beduína – incluindo quatro crianças – que vivia no Naqab sem um abrigo próximo, que foi morta. Por outro lado, tentei falar no WhatsApp com minhas amigas de Gaza, mulheres que conheci há dois meses nos campos de refugiados, para ter certeza de que elas estão vivas.

“Meus tios moravam na grande Torre da Palestina que foi bombardeada primeiro”, disse uma delas. “Receberam uma ligação do Exército que disse para evacuarem, e  eles saíram depois de cinco minutos. Todos os inquilinos viram suas casas serem destruídas diante de seus olhos. Os tios estão bem, alguns estão na rua, nas escolas, com familiares, mas lá também é perigoso. No segundo dia [de bombardeios], não houve avisos, as bombas vieram do céu e pronto. Há morte de todos os lados, qualquer um pode morrer a qualquer momento. Se eu sobreviver, com certeza alguém da minha família vai morrer.”

Outra mulher, do campo de refugiados de Al-Maghazi, me disse: “Perdi 15 membros da família em dois bombardeios. Meu irmão e seus filhos não tiveram tempo de sair de casa. Sobrinhos e primos, todos se esconderam em um andar. Sete corpos foram encontrados até o momento; Não sei como e quando vamos enterrá-los.”

Atia Mohammed/Flash90
Uma bola de fogo e fumaça sobe durante ataques aéreos israelenses na Faixa de Gaza, em 9 de outubro de 2023. (Atia Mohammed/Flash90)

Do campo de refugiados de Deir al-Balah, uma ativista do centro de mulheres me escreveu: “Estamos esperando a morte, rezando para que seja curta. Não há  água,  eletricidade nem comida. Há pessoas sitiadas, e talvez o mundo agora entenda que estamos presos aqui há anos.”

E outro amigo disse: “Obviamente [o ataque do Hamas] é horrível. Estamos todos com medo desta guerra. O golpe contra os israelenses é muito duro, e sabem que odeio o que o Hamas nos tem feito há anos. Israel está nos bombardeando todos os anos ou a cada dois anos, e vem matando milhares há 15 anos.

“Mas talvez haja um pouco de esperança, de que todos os mártires que morrerão não serão em vão, que talvez eles sejam capazes de chegar a um cessar-fogo real desta vez em troca dos reféns e não apenas um miserável hudna [cessar-fogo ou trégua] – um hudna sem liberdade, sem a capacidade de nos movimentar, sem abertura de travessias de e para Gaza,  sem a capacidade de ganhar a vida com dignidade, quando se espera pelos cem dólares do Qatar que o Hamas distribui. O mundo, e os israelenses em particular, entenderão que não podemos ficar presos para sempre.”

Refúgio oferecido em Ramallah

Enquanto reproduzia essas conversas difíceis com minhas amigas em Gaza, que poderiam não estar vivas em algumas horas, recebi a notícia de que minha amiga Vivian Silver do Kibutz Be’eri tinha sido raptada. Revirei minha correspondência com ela e não conseguia respirar enquanto a imaginava a caminho de um lugar desconhecido, em algum lugar de Gaza, cercada por homens mascarados.

Vivian é uma ativista da paz, uma mulher corajosa, com um senso de humor maravilhoso, que sempre se recusou a desistir. Ela trabalhou para acabar com o cerco a Gaza e desejou um retorno aos dias em que podia visitar Gaza livremente. Convenci-me de que ainda contaríamos piadas juntas sobre sua experiência no cativeiro. Com certeza ela vai voltar, eu disse a mim mesma.

Avshalom Sassoni/Flash90
Israelenses protestam pela libertação de civis sequestrados pelo Hamas e contra o atual governo israelense em frente ao Kiryah, em Tel Aviv, em 11 de outubro de 2023. (Avshalom Sassoni/Flash90)

Os nomes dos 13 beduínos assassinados foram publicados, seguidos da lista dos que haviam sido sequestrados do Naqab e estavam desaparecidos. Não vi suas famílias na coletiva de imprensa realizada pelos parentes dos reféns. Tenho certeza de que não ouviremos falar sobre o sofrimento deles, por razões conhecidas.

E se os cidadãos palestinos de Israel não foram dilacerados e não perderam o suficiente em todo esse trauma, há o medo adicional de violência contra eles por parte dos judeus. Grupos de mídia palestinos nas chamadas “cidades mistas” – que ainda não se recuperaram do trauma dos eventos de maio de 2021 – emitiram alertas sobre como se comportar em um ambiente misto e fervilhante em meio à ampla circulação nas redes sociais judaicas de mensagens incitando a violência contra os árabes.

Meus filhos me alertaram contra aparecer na mídia judaica, pensando que qualquer mensagem de paz, convivência, solidariedade e um pouco de sanidade não trará nenhuma mudança agora, mas só pode colocar em risco a família, como aconteceu durante a guerra de 2014 em Gaza.

Uma amiga de Bil’in, perto de Ramallah, na Cisjordânia ocupada, ligou para verificar meu bem-estar, porque ouviu que foguetes do Hamas também haviam chegado até nós e que colonos estavam ameaçando ataques de vingança contra nós. “Pobres aquele que moram aí, os árabes de Israel”, ela me disse. “Vocês estão sendo atacados por todos os lados. Qualquer coisa que fizer,  serão atingidos. Venha até aqui com as crianças por alguns dias”. Uma mulher palestina de Ramallah oferece refúgio a uma palestina em Israel por medo de ser atingida por mísseis do Hamas ou por judeus furiosos com quem vive.

Estou cercada por esses pensamentos sobre este lugar amaldiçoado e complexo em que nascemos e sobre a liderança miserável de ambos os lados que está nos levando – um tecido humano tão rico, tão triste e tão vital ao mesmo tempo – a lugar nenhum. Meu coração e minha mente declararam uma parada completa, uma paralisação. Não posso mais. Só preciso de silêncio.

Samah Salaime é uma feminista palestina de Israel  e ativista pela paz

Texto original em inglês.

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gaza / Israel / palestina