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MUNDO

Uma barreira psicológica acaba de ser rompida em Israel-Palestina

Por Amjad Iraqi. Tradução de Waldo Mermelstein, do Eol.

Palestinos e israelenses se acostumaram com guerras no sul nos últimos anos. Mas a guerra que começou na madrugada de sábado, 7 de outubro não é nada parecido com as outros. Em um ataque surpreendente, dezenas ou centenas de agentes do Hamas, sob uma chuva de foguetes, cruzaram a barreira de separação Israel-Gaza em direção a cidades israelenses perto da faixa bloqueada: alguns parecem ter rompido pontos fracos nas cercas de metal, outros foram de barco ao longo da costa do Mediterrâneo, alguns voaram em parapentes sobre os muros. Uma unidade do Hamas também atacou a Passagem de Erez, o único posto de controle civil entre Gaza e Israel, tomando-a do controle do exército por várias horas.

Ao nascer do sol, homens armados palestinos perambulavam pelas ruas de Sderot, Nir Oz, Kfar Aza e outros kibutzim, invadindo casas civis, lutando com as forças de segurança e disparando em todas as direções. Uma rave noturna no deserto, inexplicavelmente organizada na região fronteiriça, também foi atacada.

Quando as autoridades israelenses perceberam o que estava acontecendo, a “Operação Enchente em Al-Aqsa”, como o Hamas a chamou, já havia infligido um número sangrento. horripilantes estão surgindo os tiroteios e sequestros, com crianças entre as vítimas1. Abu Obaida, porta-voz do Hamas, ameaçou executar reféns se Israel realizasse ataques aéreos sem avisos aos civis. A partir de Terça-feira, mais de 1.000 israelenses foram mortos, mais de 2.400 feridos e cerca de 100 sequestrados para Gaza.

Entre tudo o mais, este foi um fracasso desastroso operacional e da inteligência israelense, sendo considerado como o pior desde a Guerra do Yom Kippur: certamente não é coincidência que o Hamas tenha lançado sua incursão no 50º aniversário desse conflito. As notícias ainda estão chegando, mas é evidente que, em termos de não combatentes, este é um dos massacres mais mortais da história israelense-palestina.

Desorientados e humilhados, os militares israelenses começaram a correr para igualar a contagem de mortos, matando centenas de palestinos com bombardeios implacáveis – mais de 950 até terça-feira. E está apenas começando.

“Ordenei um cerco total à Faixa de Gaza”, declarou o ministro da Defesa, Yoav Gallant. “Sem energia, sem comida, sem água, sem gás, está tudo fechado. Estamos lutando contra animais humanos e agimos em conformidade.” Outros ministros, alguns dos quais já defenderam a reocupação direta de Gaza e uma “segunda Nakba” para expulsar totalmente os palestinos, estão gritando por represálias. “Saiam de lá agora”, disse Benjamin Netanyahu aos habitantes de Gaza em uma declaração em vídeo – uma piada cruel para 2 milhões de pessoas que estão presas em um enclave superlotado há 16 anos.

Os palestinos estão assistindo a tudo isso com um misto de espanto e medo paralisantes. A visão de habitantes de Gaza saltando de parapente sobre a barreira de separação de Israel e caminhando sobre a terra da qual seus ancestrais foram expulsos à força pelas forças sionistas em 1948 revitalizou uma sensação de possibilidade política. Filmagens de militantes e drones armados em ação foram amplamente compartilhadas nas redes sociais árabes, fornecendo assentos na primeira fila para a operação que imita os estratagemas das relações públicas das IDF (Forças de Defesa de Israel). Outras imagens também viralizaram: um trator palestino derrubando uma parte da cerca de arame farpado; homens armados dançando no telhado de um tanque israelense capturado; a Passagem de Erez saiu danificada e queimada.

Mas também há um grande terror. Os habitantes de Gaza têm corrido para estocar alimentos em meio à investida israelense, despedindo-se de entes queridos caso nunca mais os vejam. Famílias estão fugindo de um bairro para o outro para escapar do bombardeio. Um jornalista com quem trabalho em Gaza, minutos depois de enviar um artigo, mandou uma mensagem para dizer que teve apressar sua família para sair de casa porque o exército israelense havia avisado que estavam prestes a começar a disparar contra a vizinhança.

Muitos moradores, com medo de falar contra o Hamas, que governa a faixa com um controle autoritário desde 2007, estão se irritando com o grupo islâmico por expô-los ao ataque mais mortal de Israel desde pelo menos2014. Dentro de Israel, cidadãos palestinos temem uma repetição dos eventos de maio de 2021, quando multidões judaicas e forças policiais atacaram áreas árabes e prenderam centenas de pessoas. Uma nova onda de ataques de colonos, que vem aumentando há meses, já está em andamento na Cisjordânia, todos sob a vigilância do exército.

Vários analistas estão descrevendo o ataque do Hamas como um “divisor de águas”. Isso não é um exagero. O ataque provavelmente fará pouco para reverter o cerco de Israel à faixa, que certamente será reforçado com ainda mais crueldade. O que fez, no entanto, foi quebrar uma barreira psicológica tão consequente quanto a física.

Desde o fim da Segunda Intifada, e especialmente sob Netanyahu, a sociedade israelense tem tentado isolar-se da ocupação militar que impôs por mais de meio século, mantendo uma bolha que só ocasionalmente foi perfurada por barragens de foguetes ou tiroteios em cidades do sul e do centro. O movimento de protesto em massa em Israel, que ocorre desde janeiro contra os planos do governo de reformar o Judiciário, manteve conscientemente a questão palestina fora de sua agenda. Além de um pequeno bloco de manifestantes anti-ocupação, a maioria ainda se apegava à ilusão de que as atuais estruturas de governo permanente poderiam oferecer segurança aos israelenses e permanecer compatíveis com sua reivindicação de democracia.

Essa bolha agora estourou irremediavelmente. Mas os israelenses, que vêm se deslocando politicamente para a direita há anos, estão longe de questionar ou recalcular seu apoio à linha dura.[com os palestinos] Para os demagogos de extrema-direita no poder – principalmente o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, e o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir – esta é uma oportunidade histórica para cumprir o máximo possível de sua lista de desejos: a destruição de grande parte de Gaza, a eliminação do aparato político e militar do Hamas e, se possível, a expulsão de milhares de palestinos para o Sinai egípcio.

O que o Hamas espera disso? Além de um discurso bombástico de seu principal comandante militar, Mohammed Deif, pedindo a todos os palestinos que cobrassem um preço por uma longa lista de crimes israelenses, é difícil dizer. Desde a tomada de Gaza pelo movimento islâmico, há 16 anos, depois que sanções internacionais e uma guerra civil com o Fatah o expulsaram de um governo democraticamente eleito, os confrontos armados com Israel têm sido feitos pelo método padrão do Hamas (e de outros grupos, como a Jihad Islâmica) para negociar a libertação de prisioneiros, conter o culto judaico ou o assédio policial na mesquita de Al-Aqsa e aliviar as restrições de Israel à entrada de bens e pessoas em Gaza.

Nos últimos meses, no entanto, o Hamas foi alvo de um aumento da pressão do público de Gaza por não satisfazer as suas necessidades básicas – eletricidade em particular —, uma tarefa quase impossível em condições de cerco e guerras repetidas, agravada pela corrupção e pela distribuição desigual de recursos limitados. Além de Gaza, a coalizão de extrema direita de Israel galvanizou o movimento de colonos para afirmar sua “soberania” sobre a Cisjordânia, realizando lançando pogroms, construindo mais postos avançados, e acabar com o chamado status quo nos Locais Santos de Jerusalém. A perspectiva de um acordo de normalização entre a Arábia Saudita e Israel, veementemente encorajado pelo governo Biden, ameaça remover uma das últimas cartas geopolíticas que a causa palestina ainda possui.

Para o Hamas, então, um pequeno ajuste no bloqueio já não era suficiente. Um espetáculo de choque e espanto era necessário para abalar a arquitetura política, e eles executaram isso com um efeito aterrorizante. Mesmo com meses ou anos de planejamento meticuloso e sigilo, o grau de sucesso talvez tenha sido tão surpreendente para eles quanto para os israelenses.

Mas, além da mudança psicológica sísmica, não está claro como esse ataque – contra um Estado armado com armas nucleares, apoiado pelo Ocidente e fortemente militarizado – pode alterar um equilíbrio de poder que vem se inclinando contra os palestinos há décadas. Os Estados Unidos apressaram-se a dar a Israel apoio material e retórico, e os Estados europeus rapidamente se alinharam na defesa de Israel, varrendo para debaixo do tapete meses de descontentamento com a loucura da extrema-direita.

Os autocratas árabes estão mais ansiosos para prospectar oportunidades com a economia e as indústrias de segurança de Israel do que fornecer aos palestinos qualquer coisa além de ajuda financeira. O destino da liderança palestina ainda depende do fôlego de um presidente octogenário, Mahmoud Abbas, enquanto rivalidades fratricidas continuam ocorrendo dentro do Fatah, bem como entre o Fatah e o Hamas. Os palestinos estão perdendo influência rapidamente e, embora seja muito cedo para dizer, a investida febril do Hamas pode não ser suficiente para recuperá-la. Na pior das hipóteses, o tiro sairá pela culatra de forma catastrófica.

Mesmo assim, o ataque de 7 de outubro continua sendo um sintoma de uma doença mais grave não tratada. Nas cidades da Cisjordânia e em campos de refugiados como em Jenin e Nablus, jovens palestinos – muitos dos quais foram criados sob as falsas promessas dos Acordos de Oslo, cuja assinatura completou 30 anos no mês passado – têm empunhado as armas e se juntado a milícias locais não filiadas aos principais partidos políticos. Nas ruas e na internet, ativistas palestinos não se importam mais com linguagem diplomática ou referências a leis internacionais que fracassaram. Eles rejeitam a narrativa amnésica de que suas queixas começaram em 1967, em vez de em 1948, e que seu futuro reside em um quase-estado em apenas um quinto de sua pátria, em vez de sua totalidade. Estão cansados de pedir desculpas pelo uso da violência, por mais deplorável que seja, como se a violência não fosse parte inerente de todas as lutas anticoloniais, como se fosse mais flagrante do que o sistema opressivo que estão tentando desmantelar, e como se seus esforços não-violentos de boicotes e diplomacia não fossem igualmente esmagados e demonizados como “terrorismo”. Para eles, o inimigo é e sempre foi um movimento de colonialismo de povoamento empenhado em sua erradicação. Invocar a descolonização, no entanto, não deve implicar uma posição de soma zero, que refusa empatizar com o que ocorreu com as famílias israelenses em 7 de outubro e tampouco devem as mortes ser uma excusa para consolidar o regime de apartheid de Israel e provocar sua fúria.

1 Algumas dessas histórias foram depois desmentidas por serem fake News – ver artigo no Esquerda Online
Original em A psychological barrier has just been shattered in Israel-Palestine

*Amjad Iraqi é editor sênior da +972 Magazine. Ele também é membro político do think tank Al-Shabaka, e anteriormente foi coordenador jurídico no centro jurídico Adalah. Além do +972, seus escritos foram publicados na London Review of Books, na The Nation, no The Guardian e Le Monde Diplomatique, entre outros. Ele é um cidadão palestino de Israel, atualmente baseado em Londres.