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Nove notas sobre o Congresso do PSol

@landau

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti.
Castiga-se a arrogância, dando-lhe as costas
Sabedoria popular portuguesa

 

1. Há dois grandes blocos e duas grandes interpretações sobre o maior perigo para o PSol. A minoria faz a avaliação de que o PSol está ameaçado pela “força de gravidade” do governo de coalizão liderado por Lula, e pode se transformar em satélite ou, como foi maldosamente, agitado: um “puxadinho” do PT. A maioria faz a avaliação de que a ameaça ainda presente da extrema-direita não pode ser diminuída, e que é necessária a iniciativa do PSol em apoio à campanha democrática “sem anistia”, pela punição dos golpistas e prisão para Bolsonaro. Considera que o maior perigo seria o PSol priorizar uma linha de oposição ao governo Lula e perder a bússola, adotando uma tática nem Lula/nem Bolsonaro, e cair na marginalidade política. O que prevaleceu foi a linha de priorizar o combate ao neofascismo, não ao marco temporal, não às privatizações, pela indicação de uma mulher negra e progressista no STF, defesa da unidade da esquerda para mobilizar nas ruas pela aplicação do programa eleito nas urnas em 2022, contra Arthur Lira e o Centrão, afirmar um programa do PSol Ecossocialista, feminista, antirracista e LGBT para lutar por mais. O Congresso do PSol foi uma vitória política.

2. A tensão intensa no Congresso foi expressão da incerteza, até o último momento, da dimensão da mudança na relação de forças internas. O que estava em disputa era a conquista do bloco PTL (Psol de Todas as Lutas), liderado pelo PSol Popular, apoiado pelo campo Semente (Resistência, Insurgência, Subverta) da maioria de dois terços. Uma maioria qualificada, em um partido que respeita as minorias e garante a representação proporcional das correntes internas, permite superar uma situação de impasse crônico. A estabilidade maior da direção se expressou na conquista da presidência e o direito à segunda chamada, que poderá ser a tesouraria ou a fundação, pelo PTL. O desenlace assumiu uma forma dramática porque dependia de um voto sobre os 450 delegados. O MÊS, corrente interna que lidera a oposição, fará terceira chamada. O Psol não é monolítico, tem vida interna intensa, e essa disputa não o enfraquece, o potencializa.

3. O bloco majoritário passou de 56% para 67%, com 300 votos. O bloco minoritário diminuiu para 32,89% com 147 votos. Dentro do PTL o Psol Popular cresceu para 55,03%, a alcançou a maioria absoluta. O campo Semente oscilou de 14% para 12% e deixou de ser o fiel da balança. No Bloco de oposição o MES caiu de 22% para 16,77%, Fortalecer oscilou para 3,57%, e a APS obteve 3,57%. Mas articularam uma esdrúxula aliança com os “independentes” da Bahia, que cresceu até 4,92%. Uma aliança “esquisita”, porque esta corrente, melhor conhecida como o “grupo do Franklin”, defende a participação do PSol no governo Lula e integrou o governo de Jeronimo na Bahia. O que seria não só incoerente, mas incompatível com as teses do Bloco de oposição.

4. Uma segunda tensão atravessou o Congresso. E remete à relação entre o partido e sua Fundação. O estatuto do PSol estabelece que a Fundação deve espelhar a relação de forças. Mas a negociação de um acordo político, em 2013, incluiu, excepcionalmente, a presidência da Fundação nas “chamadas” de cargos na executiva para superar as recorrentes crises impostas pela ausência de hegemonia política de qualquer corrente. O PSol esteve, durante muitos anos, dilacerado por uma divisão interna de dois blocos, politicamente, para fora e, organicamente, para dentro, mais ou menos, equivalentes. Preservou a sua unidade pela compreensão lúcida dos dois blocos de que a unidade era estratégica para a preservação do projeto de um partido de esquerda socialista que tem a ambição de ter um papel na reorganização da esquerda. A mudança qualitativa na relação de forças estabeleceu a supremacia do PTL que reivindicou o direito, legitimamente, conquistado de assumir a presidência da Fundação. Mas esta reivindicação abriu uma crise dentro do próprio PTL. A necessidade de superar o impasse levou a adiar para o futuro uma solução para a relação do partido com a Fundação. Uma decisão madura.

5. A pluralidade interna no PSol é maior do que nunca, como foi possível confirmar na participação nas plenárias preparatórias do Congresso Nacional, com debates intensos. Infelizmente, o Congresso desde o início foi convulsionado por nível altíssimo de tensão. Já na abertura, diante dos convidados, precipitando uma crise constrangedora, o MES, inconformado com a mudança objetiva na relação de forças, denunciou a reivindicação do PTL de excluir a presidência da Fundação como um “golpe estalinista”. As palavras importam. Os excessos “apocalípticos” têm consequências. Mas o pior foi que, ao final do Congresso ocorreu um episódio lamentável de confronto físico, que não deve ser exagerado, nem, tampouco diminuído. Apesar de debates ásperos, e disputas exaltadas de palavras de ordem em plenário, aplausos e vaias, o Congresso caminhava para a votação final das chapas sem incidentes. O ápice aconteceu com uma provocação absurda. Depois de uma hora de negociações se decidiu que o episódio será investigado por uma comissão, e a apuração permitirá aferir as punições, porque o uso de violência é inaceitável. Não existia mais condições de qualquer debate, e se procedeu à votação das chapas.

6. No tema político central, a definição do centro da tática, o Congresso do PSol consolidou a resolução de dezembro da direção Nacional. O posicionamento de que será independente do governo Lula, mas defendendo-o diante da oposição neofascista, afirmando a legitimidade de seu mandato, o direito de Lula governar contra a maioria reacionária no Congresso. Mas preservando uma localização crítica, como quando da eleição de Lira para presidência da Câmara de Deputados, ou da votação do arcabouço fiscal, entre outras. O PSol não integra o governo Lula, mas autoriza que seus filiados que representam movimentos sociais, como Sonia Guajajara pela APIB, Sílvio Almeida pelo movimento negro, ou Guilherme Simões pelo MTST. Uma solução inteligente que evita tanto a participação em governo de Frente Ampla de coalizão do PT com variados partidos de direita, até alguns que foram base do governo Bolsonaro, mas também, e não menos importante, evita uma autoproclamação do PSol como oposição de esquerda.

7. Permanece sem solução uma diferença sobre a centralidade estratégica da tática da Frente Única de Esquerda. A polêmica é a relação com o PT e o PCdB. Nenhum partido de esquerda pode enfrentar sozinho o desafio de derrotar o bolsonarismo. O PSol deve assumir sua responsabilidade, mas precisamos de todos os partidos de esquerda. E o mais importante é o PT. Sem unidade dos movimentos, o sindical com a CUT, de reforma agrária com o MST, estudantil com a UNE, feminista, negro, LGBT, ambiental indígena, e todos os outros, não é possível sonhar com mobilizações de massas. PT e PCdB têm presença nestes movimentos. A avaliação da situação política deve partir de uma apreciação da relação social de forças na sociedade e, em outro nível de abstração da correlação política de forças entre partidos, movimentos e instituições. O dado mais importante é que Lula só venceu a eleição presidencial em função da diferença conquistada no Nordeste. Bolsonaro venceu as eleições de São Paulo e Rio de Janeiro até o extremo sul. Embora a extrema direita esteja, neste momento, na defensiva, em função da derrota esmagadora que sofreram após a semi-insurreição de 8 de janeiro, o Brasil, segundo as pesquisas mais recentes, permanece fraturado. Quando considerada a estreita margem da derrota de Bolsonaro, o peso da maioria reacionária no Congresso Nacional, o controle da extrema direita dos três governos do triângulo estratégico no Sudeste, seria insensato desconsiderar a possibilidade de que a extrema-direita possa disputar, em condições de vitória, as eleições de 2026, e muitas das maiores cidades em 2024. O espaço para um partido de esquerda radical como o PSol se afirmar, simultaneamente, contra o bolsonarismo e o petismo não existe.

8. Uma segunda discussão remete a uma discussão mais estratégica sobre a natureza do PSol e, em alguma medida, seu destino. A avaliação do bloco minoritário é de que existe o perigo de que se afirme um hegemonismo “mandonista” do Psol Popular na direção do PSol, sufocando as correntes minoritárias. Ocorreram duas mudanças na relação de forças interna, quando comparada com o Congresso de 2021. Uma qualitativa e a outra quantitativa. A qualitativa é que dentro do Bloco da maioria o PSol de todas as lutas, ou PTL, o campo Psol Popular superou os 50% mais um, e são agora maioria absoluta. O campo Semente manteve os seus 12%, mas perdeu o lugar de “fiel da balança” dentro da maioria. A quantitativa é que o Bloco de Oposição perdeu influência. O desfecho desta alteração é que o PSol Popular terá a prerrogativa de escolher primeiro os dois principais cargos da Executiva Nacional. A diminuição do peso relativo do Bloco de Oposição não é o bastante para legitimar a conclusão de que haverá abuso de poder. Ela não ocorreu por métodos burocráticos, mas, essencialmente, em função do crescimento do PSol, a presença da Revolução Solidária, como uma das principais correntes internas, e a projeção de Boulos como a principal liderança nacional.

9. Não é justo um paralelismo da evolução do PSol com o que ocorreu no PT, que viu a afirmação da Articulação, em meados dos anos noventa e, na sequência, com a construção da CNB, relegando as correntes internas a um papel testemunhal. Qualquer “fatalismo” é um erro de avaliação. A despeito de que nenhum partido de esquerda está imune à pressão dos processos de burocratização, a experiência do PSol tem sido prometedora de que tendências e organizações com diferenças teórico-programáticas podem conviver, preservando o respeito mútuo, em um projeto comum compartilhando perspectivas e acordos táticos. Cinco fatores explicam esta diferença, embora tenham pesos diferentes. Em primeiro lugar, a dinâmica de construção do Psol se espelha no modelo de um partido de filiados e não de militantes, mas, até hoje, foi possível estabelecer limites à “clientelização” da participação. Em segundo lugar, a proporcionalidade interna sempre foi respeitada, inclusive no acesso ao financiamento eleitoral, com amplas garantias de participação, em alguns momentos, uma democracia interna até “semicaótica”. Em terceiro lugar, há interesse de todos os blocos em preservar a unidade do PSol, sem ameaças de exclusões, porque todos têm mais a ganhar do que a perder com a unidade, para garantir a presença institucional superando as condições progressivamente, mais graves, de cláusula de barreira. Em quarto lugar, o peso do aparelho político-administrativo do PSol se mantém, relativamente, pequeno e, ainda que as bancadas de deputados tenham um papel destacado, o PSol não é um partido de deputados, é um partido de correntes. Por último, no PSol não existe nenhuma liderança que possa ocupar, interna ou externamente, um papel semelhante ao de Lula. Guilherme Boulos é uma esperança para a reorganização da esquerda, não uma ameaça. Quem não compreende isso, não entendeu nada.