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TEORIA

O que não pode ser o que não é

Gilberto Souza é professor, mestre em educação e militante da Resistência na Educação

Domingo, 05 de agosto de 2023, o programa fantástico da Rede Globo reviveu seu primeiro episódio, em 1973, como uma data e um marco histórico da televisão brasileira; em comemoração aos 50 anos da revista eletrônica dominical da principal rede de televisão do país, utilizando recursos de inteligência artificial foi reconstituído em detalhes o primeiro episódio do programa em um momento marcante para a TV Globo e também para seus telespectadores que presenciaram, via satélite, um espetáculo de tecnologia típico da era em que estamos usando – do fetiche por toda essa parafernália tecnológica com a qual somos obrigados a conviver em nosso cotidiano.

A principal rede de tv aberta de nosso país – em seu horário nobre dominical – fez de tudo para deixar seus fãs impressionados e extasiados diante de um espetáculo de tecnologia; devidamente comandado por IA – Inteligência Artificial.

A tv da família Marinho – juntamente com os outros meios de comunicação controlados por este clã – e os demais meios de comunicação – incluída aí a grande imprensa – estão em uma verdadeira cruzada em defesa da Inteligência Artificial.

Segundo os arautos desta nova era digital e cada vez mais tecnológica que começamos a vivenciar a indústria 4.0, a internet das coisas e a Inteligência Artificial – IA – seriam parte de uma quarta revolução industrial.

Agora é aquela hora de colocar “ordem no caos”; de organizar o excesso de informações e caminharmos sem muita pressa pelo umbral de lugares comuns e mantras que estão sendo produzidos para glorificar o santo graal da Inteligência Artificial e o uso indiscriminado da tecnologia.

Como nos lembra o mestre Paulinho da Viola: eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim…

Que a tecnologia é parte de nossas vidas e que muitas das inovações que produz vieram para ficar – e devem ficar – creio que não há dúvida; nenhum ser humano que esteja minimamente no gozo de suas faculdades mentais gosta da ideia de lavar roupas no tanque, torcê-las com suas próprias mãos e esperá-las secar no varal, dependendo dos imponderáveis fatores atmosféricos, por horas a fio – por isso; viva a lava e seca!

Isso não significa que qualquer avanço tecnológico seja naturalmente bom para a humanidade.

  A esmagadora maioria dos dispositivos ou invenções tecnológicas colocados à disposição no mercado servem apenas como mercadorias a serviço do lucro das empresas que os produziram; sem necessariamente produzir impactos sociais positivos na vida das pessoas – essas tecnologias são fatores importantes do desemprego estrutural e da precarização do trabalho tentando substituir a inteligência e o trabalho humanos em uma série de tarefas; aparentemente complexas.

 Apesar de todo o avenço tecnológico recente; no mundo todo a média de horas trabalhadas por trabalhador aumentou, o desemprego tecnológico ou estrutural tornou-se regra nas várias economias do planeta, sem falar na precarização do trabalho – no Brasil mais de 40% dos trabalhadores estão na informalidade, sem qualquer direito. (Pnad/IBGE, 2022).

A clássica semana inglesa – cinco dias de trabalho e dois de descanso semanal – que tem este nome por ser uma conquista dos trabalhadores da Inglaterra – servindo de exemplo para o mundo – não existe mais nem na própria Inglaterra.

Os assalariados ingleses, atualmente, têm em média 27 horas de descanso semanal ao invés das 48 horas previstas na semana inglesa; sinal dos tempos (1).

Por isso; aceitar a tecnologia, defendendo sua socialização e massificação para que toda a população – principalmente os setores mais empobrecidos da sociedade – tenha acesso aos avanços tecnológicos não significa necessariamente concordar acriticamente com todas as suas implicações e impactos.

A pandemia e o ensino a distância imposto neste período triste de nossa história recente nos ensinaram, de forma dolorosa, que os impactos causados pelas novas tecnologias além de não serem necessariamente benéficos para a humanidade, via de regra, beneficiam apenas as grandes empresas por trás dessas invenções.

O EAD da pandemia deixou mais que perceptível a quem quis enxergar que a “banda” da internet banda larga é bem mais larga para a minoria de ricos do que para a esmagadora maioria de pobres de nosso país – a internet de alta velocidade somente é acessível de fato para a minoria que pode pagar por ela.

Se descobrimos que o acesso à internet de alta velocidade não é o mesmo para todas as camadas sociais – varia de grupo para grupo com uma linha de corte socioeconômico – também descobrimos que o acesso às tecnologias de ponta no ensino também varia de um grupo socioeconômico para outro na mesma proporção da riqueza de cada um.

As desigualdades socioeconômicas e a exclusão social se agudizaram na pandemia – os muito ricos aproveitaram a oportunidade para ficarem muito mais ricos – com o aumento da miséria, do desemprego e do trabalho precário da maioria empobrecida.

Estas desigualdades e exclusões explicitaram, descortinaram o manto que encobria outras desigualdades e exclusões como o acesso à internet e às tecnologias da informação e ensino; aumentando o abismo sociocultural e educacional entre os mais ricos e os mais pobres.

Este é um dos grandes dilemas dos novos tempos em que vivemos; o uso correto da tecnologia buscando, fundamentalmente, melhorar as condições de vida da maioria da população – e não apenas garantir o lucro privado de um pequeno grupo de grandes empresas de tecnologia (big techs); muitas das quais com vínculos com o capital financeiro.

Assegurar uma vida digna, mais humana para as grandes massas da população, incorporando e disseminando o uso racional e consciente da tecnologia sem que tenhamos que retroceder a idade da pedra – sem que o avanço tecnológico produza mais desemprego estrutural e precarização do trabalho entre outros danos – e lutar pelo fim das desigualdades sociais é um dos grandes embates que todos aqueles que lutam contra o capital têm que travar.

            Outra questão tão grande ou importante quanto o dilema anterior: é se de fato existe uma inteligência artificial; se é possível que máquinas criadas pelo homem; ou seja, pelo cérebro humano, são capazes de imitá-lo – deixando a discussão sobre 4ª revolução industrial para outro momento.

O cérebro humano é um órgão singular; podemos dizer que é único na natureza.

Nas palavras de Miguel Nicolelis é um grande camaleão; pois se adapta a vários meios e situações podendo ser mais analítico ou mais sintético, por exemplo (2).

O verdadeiro criador de tudo, o verdadeiro dono das criações humanas, o “gerente” do nosso sistema nervoso central é um grande camaleão; possuindo uma infinita plasticidade; não apenas se adaptando, mas também inovando, criando, inventando – características típicas de um ser inteligente.

Nosso cérebro não apenas “copia” o mundo externo; ele também cria e inova enquanto lida com o inesperado e o inusitado.

Ele, nosso cérebro, não é apenas uma memória, hardware e ou software. Ele é a fonte da criatividade e da inovação; que permitem a nossa espécie ser a única na natureza a lidar com o inusitado e o inesperado – criando e inovando e não apenas armazenando informações. 

Isso torna o nosso cérebro, maior produto de nossa evolução humana na face da terra, algo que é impossível de ser imitado – ou reproduzido de forma artificial.

Uma coisa são máquinas armazenar informações sobre como o cérebro humano opera ou, para ser mais específico, informações sobre os comportamentos do homem e da mulher e de seu cérebro e as respostas que nós, hominídeos, damos diante das situações que vivenciamos em nossas vidas.

Outra coisa; são essas máquinas criadas pelo cérebro e pelo trabalho humanos, serem capazes de reproduzir nossas características de criatividade e inovação. 

E mais ainda; serem capazes de reproduzir a capacidade única dos seres humanos de lidarem com o inusitado e o inesperado.

Por mais que essas máquinas – mais uma vez para não esquecer; criadas pelo cérebro humano ou pela inteligência do homem e da mulher – se pareçam com o nosso cérebro, são apenas um banco de memórias programado por homens e mulheres que, com o uso de sua inteligência, leia- se de seu cérebro, criaram.

O cérebro humano não é programável ou “algoritimizável” – como diria Odorico Paraguaçu, o prefeito da imaginária cidade de Sucupita interpretado pelo grande ator Paulo Gracindo, se vivo estivesse.

Por isso; a criatura jamais superará seu criador. 

Ou, em termos mais técnicos, um sistema, por mais complexo que seja, jamais produzirá um outro sistema mais complexo que ele – a história de o doutor Frankenstein sendo obrigado a lutar contra sua própria criatura que quer ter vida própria é apenas um mito (3).

A única forma de inteligência que a natureza conhece é a inteligência orgânica. Cuja expressão máxima, em termos evolutivos, é o homo sapiens com seu cérebro superdesenvolvido; que é capaz de criar, inovar, e até de produzir algo artificial – artificial, entre aspas – que muitos chegam a crer que possa igualá-lo ou superá-lo.

O artificial entre aspas porque IA não é nem uma coisa nem outra; não é inteligência e também não tem nada de artificial. 

A inteligência artificial, não é inteligência e também não é artificial porque tem atrás de si como criadores milhares de seres humanos que realizam um trabalho imenso – ou seja; um enorme dispêndio de energias físicas e mentais. 

Homens e mulheres que utilizam de suas inteligências, através de seus cérebros superdesenvolvidos típicos dos hominídeos, para criar dispositivos e programas que são grandes bancos de memória, que são capazes de ser programados para reproduzir reações padronizadas diante de situações padronizadas – sem criatividade, inovação ou originalidade típicas do cérebro humano.

Por trás da inteligência artificial existe algo bem natural; o trabalho humano, mais especificamente, a inteligência do homo sapiens – o único ser ou dispositivo inteligente na natureza.

Aliás, o próprio termo inteligência artificial foi uma criação feita ao acaso. 

Nos anos 1950 John McCarthy – um dos pioneiros nos estudos de computação – precisava encontrar um nome para um curso de verão que seria ministrado por ele e outros parceiros da área e acabou cunhando o termo Inteligência artificial (IA), apenas e tão somente para tornar atrativa uma das muitas oficinas de verão oferecidas pela universidade em que lecionava (4).

Traduzindo: uma jogada de marketing; o termo IA não expressou em sua origem qualquer ideia ou conceito inovador – foi apenas o título de um curso.

Retomando a discussão sobre IA, o grande problema que fica é: se a máquina não pode imitar nossos cérebros; o cérebro humano pode imitar a máquina.

A flexibilidade, adaptabilidade e plasticidade de nosso cérebro estão se voltando contra ele e seu portador, nós hominídeos, com estas características singulares do cérebro privilegiado de nossa espécie que a tornam a única espécie realmente inteligente na natureza podendo ser mobilizadas não para criar, inovar, inventar; mas para imitar ou reproduzir as características ou propriedades de sua criação – IA – invertendo o mito de Frankstein; com o criador imitando sua criação ou a criatura.

Podemos nos tornar “zumbis digitais” – nas palavras de Miguel Nicolelis – perdendo as características típicas de nosso cérebro e assumindo as características das coisas que ele criou.

Ao ficarmos muitas horas de nossos dias imersos em tecnologia, com o uso cada vez maior de IA, existe o risco hipotético de nossos cérebros assumirem as características desses dispositivos – seria nossa desumanização cognitiva, nosso “emburrecimento” coletivo.

Um primeiro sinal desta possibilidade é a diminuição do desempenho dos estudantes de educação básica de alguns dos melhores sistemas de ensino público do mundo em exames de proficiência, algo confirmado até pelos famigerados e altamente questionáveis testes de QI, com os filhos apresentando indicadores de proficiência inferiores aos dos pais (5).

Isso foi um sinal de alerta – algo de podre está ocorrendo no reino da Dinamarca!

A UNESCO avisou os navegantes que é preciso recalibrar a rota, rever drasticamente os processos e os ritmos da digitalização das salas de aula e do ensino; sob o peso de termos uma geração de analfabetos funcionais no mundo.

A Suécia – que tem um dos melhores sistemas de ensino do planeta – eliminou os dispositivos e livros digitais das salas de aula e retomou o uso de livros em papel (6).

Outros países estão abolindo o excesso de tecnologia em sala de aula; países como França, Coreia de Sul, Holanda e Finlândia – o melhor sistema educativo do planeta com 99% das escolas sendo públicas e gratuitas.

A China – a maior fabricante de smartfones do mundo – pretende reduzir o número de horas em que as crianças e adolescentes ficam expostos à tecnologia; a proposta do governo é que os aparelhos tenham um programa instalado de fábrica que limite o acesso à internet e à determinados programas – menores de dezoito anos não poderiam acessar a internet entre às 22:00 a 06:00 e no restante do dia poderiam acessar a web apenas duas horas (7).

Na contramão de tudo que afirmamos até aqui; o governo de São Paulo – através da SEDUC – está acelerando a digitalização e a plataformização do ensino no estado mais rico do país, tornando o uso de tecnologia em sala de aula um verdadeiro fetiche, um fim em si e um objeto de desejo – além de uma ótima oportunidade de negócios, regada a dinheiro público da educação, para os capitalistas do setor.

Com uma série de medidas que misturam assédio moral e big brother; a gestão do governador Tarcísio de Freitas com o empresário do setor de tecnologia Renato Feder a frente da secretaria da educação pretende banalizar a digitalização do ensino na rede pública estadual.

Os momentos “mais empolgantes” deste espetáculo macabro são – até aqui – a instalação nos smartfones de professores e alunos, sem qualquer consulta ou permissão dos mesmos, do aplicativo minha escola sp – um aplicativo “espião” que armazena os dados digitais de seus usuários.

A instalação compulsória deste aplicativo tem como parceira do governo estadual a big tech Google – neste caso; qualquer semelhança não é mera coincidência.

Depois veio a infeliz ideia de não aderir ao PNLD 2024; substituindo os livros físicos em papel por material digital próprio e de uso obrigatório pelos professores.

Uma série de denúncias veiculadas pela imprensa sobre a péssima qualidade do “material digital” que contém vários erros crassos, a mobilização de entidades vinculadas a educação pública – principalmente a APEOESP, sindicato dos professores estaduais – e a intervenção do poder judiciário; obrigaram a seduc a arremeter parcialmente – aderiu ao PNLD 2024, mas manteve o material digital.

Outra “grande medida” é a obrigatoriedade das gestões escolares acompanharem as aulas dos professores nas escolas – literalmente entrar nas salas para assistir as aulas dos docentes para “ajudá-los” em seu trabalho cotidiano.

Lembrando que – dados de 2022 – 40% ou aproximadamente 100 mil professores são categoria O – trabalhadores precários com direitos reduzidos e sem qualquer estabilidade no emprego.

Os interesses nada republicanos por trás de tais medidas são mais que óbvios; privatizar os espaços públicos da educação, criar ou aprofundar uma dualidade educacional onde aqueles que podem pagar terão acesso a escola do conhecimento com as melhores tecnologias digitais e a grande massa da população deverá se contentar com a escola do acolhimento social e do passatempo – nas palavras de Gaudêncio Frigotto (8) – com as tecnologias de segunda ou terceira linhas disponibilizadas pelo capital e devidamente adquiridas com o dinheiro público da educação – e não esqueçamos; escola do acolhimento e do passatempo devidamente temperada com o NEM, o novo ensino médio que o atual governo insiste em manter. 

Que fique bem claro; não sou ludista – não quero destruir as máquinas e dispositivos digitais como na primeira revolução industrial – e sou favorável ao uso consciente e moderado da tecnologia, inclusive na educação – mas defendo a luta pelo trabalho digno e com direitos sociais para todos os trabalhadores.

Para concluir; na educação não devemos olvidar o fato de que as interações humanas no processo de aprendizagem – entre os alunos entre si e com os professores – são muito mais importantes e significativas que qualquer interação homo sapiens-máquina no ambiente escolar e que o acesso ao conhecimento via escola pública deve ser um direito de todos e todas – principalmente um direito dos filhos e filhas da classe trabalhadora.

Notas

1 POCHMANN, Márcio. 27 horas. Jornal Folha de SP, 04/02/2011.

2 https://www.youtube.com/live/jOXM4SS6dMI?feature=share

3 NICOLELIS, Miguel. O verdadeiro criador de tudo, editorial Crítica, 2020.

4 http://www-formal.stanford.edu/jmc/history/dartmouth/dartmouth.html

5 DESMURGET, Michel. A fábrica de cretinos digitais, editora Vestígio, 2021.

6 MARTINS, Pedro Arnaldo. O crescimento exagerado e preocupante dos “analfabetos funcionais”; alunos dos colégios regulares; in:ipolitica.blog.br

7 https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/08/02/china-quer-limitar-criancas-a-duas-horas-por-dia-em-smartphones-acoes-de-empresas-de-tecnologia-caem.ghtml

8 Artigo: O dualismo perverso da escola pública brasileira.