A ditadura quis ser a primeira a formalizar o reconhecimento e, assim, marcar uma posição clara a chilenos, brasileiros e a quem pudesse interessar, mesmo que isso baixasse a guarda do Brasil contra críticas e ataques.(Simon, 2021, p. 214)
No dia quatro de setembro de 2019, o presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro atacou Alberto Bachelet, pai da ex-presidenta Michelle Bachelet, ao afirmar que, se o regime de Augusto Pinochet não tivesse matado pessoas como ele, um general legalista de brigada da Força Aérea, o Chile hoje seria uma espécie de Cuba da América do Sul. Não era a primeira vez que Bolsonaro mobilizava em seu discurso uma memória positiva da ditadura chilena. Em outras ocasiões, Bolsonaro já havia afirmado que Pinochet “fez o que tinha que ser feito”, e que ele precisou “agir de forma violenta para recuperar o país.” (Carneiro, 2019).
Não é de se estranhar que Bolsonaro e os militares que apoiam o seu governo de extrema-direita tenham, em relação às ditaduras do Cone Sul, o que Steve Stern chama de memória de salvação (Stern, 2009, pp. 43-72). Há um saudosismo escancarado em relação a esse período sombrio da história do nosso continente, quando os regimes autoritários em vigor inclusive se apoiavam em suas práticas repressivas, como indicam diversos estudos1. Porém, alguns atores cúmplices do modus operandi das ditaduras tiveram – nas disputas memorialísticas e na historiografia tradicional – suas atuações apresentadas de forma atenuada, menos vulneráveis a ingerências da política interna (Saraiva; Vigevani, 2014, p. 217), ou mesmo interpretadas como se fossem opositoras às políticas autoritárias dos regimes (Bueno; Cervo, 2002, pp. 398-9), como é o caso dos diplomatas brasileiros. O livro O Brasil contra a democracia: a ditadura, o golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul vem para revelar, a partir do envolvimento do Itamaraty no golpe contra Salvador Allende e no apoio à ditadura de Pinochet, que essas interpretações são errôneas e devem ser revistas.
Utilizando farta pesquisa documental, realizada no Brasil, no Chile e nos Estados Unidos, Simon destrincha a contundente participação brasileira na derrubada da democracia chilena e nos mostra como o corpo diplomático foi essencial para que os militares brasileiros exportassem o modelo ditatorial para o restante da América do Sul. O livro conta com vinte e cinco capítulos divididos em três partes: “O Brasil contra Salvador Allende”, “O apoio ao golpe” e “Do entusiasmo à cautela”. Com uma linguagem acessível e fluida, Simon traça o caminho percorrido pelos militares e diplomatas brasileiros, com o nada surpreendente apoio do empresariado de ambos os países, de 1970, ano em que Allende foi eleito, até o ano de 1980, início do governo do ditador brasileiro João Figueiredo. Portanto, o livro se situa em um espaço temporal que, em linhas gerais, abarca a maior parte da ditadura de Emílio Garrastazú Médici e todo o período de Ernesto Geisel no Brasil, e o governo de Allende junto com os primeiros sete anos da ditadura pinochetista no Chile.
A primeira parte, “O Brasil contra Salvador Allende”, esmiuça toda a estratégia e a campanha feita pela ditadura brasileira contra o presidente socialista, que já enfrentava tentativas de golpe também pelos Estados Unidos antes mesmo de assumir a presidência. A “Cuba do Pacífico”, nome dado pela imprensa de direita brasileira ao Chile naquele momento, passou a sofrer um cerco diplomático por parte do governo do Brasil, tendo como uma das figuras centrais o embaixador brasileiro no Chile, Câmara Canto, entusiasmado anticomunista que se esforçou para ajudar na derrocada de Allende. Simon nos revela com maestria como a diplomacia brasileira vigiava os exilados no Chile, que recebeu diversos políticos, militantes e intelectuais dissidentes, e como, por meio das informações repassadas ao setor repressivo, foi responsável pelo desaparecimento e pela morte de diversos cidadãos brasileiros.
O autor também evidencia, na primeira parte da obra, o apoio civil ao Golpe no Chile por parte do empresariado brasileiro. Tema já estudado na historiografia e na ciência política desde a década de 1970 (Dreifuss, 1981), a inovadora contribuição de Simon nesse aspecto é demonstrar como a classe empresarial de um país latino-americano foi ativamente atuante no golpe em um país diferente do seu. Organizações como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) foram responsáveis por estabelecer conexões políticas e conseguir apoio financeiro para que suas congêneres chilenas desestabilizassem economicamente o governo de Allende. No entanto, ao mesmo tempo em que a ditadura sob o comando de Médici confabulava com setores empresariais para minar o poder da Unidad Popular (UP), ampliava-se o comércio bilateral do Brasil com o Chile. Aproveitando o aquecimento da economia chilena no primeiro ano do governo de Allende, que ampliou as oportunidades de negócios no país andino, os empresários brasileiros, com o apoio do governo ditatorial, buscaram abocanhar uma grande fatia do bolo. Simon é eficiente em revelar tais situações paradoxais nas relações entre os dois países. Outro exemplo interessante desse jogo cínico nos é apresentado pelo jornalista por meio do papel da imprensa. Financiados pela CIA, os veículos de comunicação conservadores do Chile denunciavam, livremente, supostas ameaças à liberdade de imprensa por parte do governo da UP, defendendo o modelo brasileiro, que, precisamente, censurava seus profissionais de comunicação. Esse discurso, o qual fantasiava um governo autoritário que restringia a liberdade das instituições jornalísticas chilenas, era amplamente reverberado pela mídia conservadora brasileira.
A segunda parte, “O apoio ao golpe”, se concentra nos últimos preparativos para o golpe contra Allende, no dia 11 de setembro de 1973, e na intensa repressão inicial que se seguiu à derrubada do presidente socialista. Para além dos já conhecidos e revisitados acontecimentos ligados ao golpe em si, Simon constata como a ditadura brasileira recebeu o golpe no Chile com um entusiasmo ímpar, sendo o primeiro país a reconhecer a legitimidade do governo golpista chileno. Ao mesmo tempo em que atuava de maneira transparente na diplomacia formal, assumindo, inclusive, as consequências de um reconhecimento precoce, a ditadura brasileira também estava disposta a auxiliar o Chile na construção de um verdadeiro sistema repressivo, que abarcaria torturas, assassinatos e desaparecimentos como nunca antes visto no país andino. Nas palavras de Simon, “no pacote de ajuda entrariam suprimentos básicos e auxílio econômico, militar e diplomático, mas também o apoio para montar um aparato de repressão que nunca houvera em território chileno.” (Simon, 2021, p. 211). Em ampla investigação, Simon nos mostra, ao final da segunda parte do livro, como o governo do Brasil foi o principal aliado na estruturação de uma repressão sistematizada no Chile, que atingiu não somente os brasileiros exilados, significativos em quantidade e relevância político-intelectual, como todos os considerados inimigos da “pátria chilena”, que agora deveria ser limpa à sangue e fogo.
Por fim, a terceira parte apresenta como houve uma retração na aproximação da ditadura brasileira com a ditadura chilena, ao menos publicamente. Não combinava com a imagem pública de “abertura gradual” e “descompressão política”, pretendida por Geisel, a imagem de ditadura violenta e pária internacional associada à ditadura pinochetista. Apesar disso, Simon nos mostra que as cooperações econômica e repressiva continuaram a todo vapor, desde que não ameaçassem a hegemonia brasileira na região. Os limites dessa cooperação no arco de alianças do aparato repressivo nos são bem evidenciados no capítulo “Condor, à distância”, talvez um dos mais interessantes e reveladores da política externa brasileira e de sua forma de atuação. Com a consolidação de vários regimes autoritários na América do Sul, o regime de Pinochet buscou articular uma rede de cooperação repressiva, iniciativa da temida Dirección de Inteligencia Nacional (DINA), principal agência de repressão estatal chilena. Ratificando outros trabalhos historiográficos que já trataram do tema (Calloni, 2016; Dinges, 2005; Mariano, 2003; Mcsherry, 2005), mas com o frescor de documentos inéditos, Simon nos revela como os militares brasileiros até chegaram a apoiar e integrar a Operação Condor, ainda que de maneira reticente, e mesmo assim de forma mais cautelosa e por pouco tempo. Além de não admitirem a pretensão de Manuel Contreras – chefe da DINA – de capitanear um sistema de repressão pluriestatal na região, por se considerarem o seu centro hegemônico, os militares brasileiros também se preocupavam com os planos de ações mais espetaculosas, que incluíam assassinatos de opositores em países fora da América do Sul. Além do Brasil, os Estados Unidos também não viam com bons olhos ações de repressão desse nível. Ambos os países foram essenciais para esvaziar a Operação Condor. A ditadura brasileira preferiu efetuar ações repressivas em colaboração com outros regimes de maneira bilateral, o que ampliava estratégias de redução de danos à imagem do governo Geisel e reafirmava sua hegemonia na região.
Para além da tese de participação ativa e contínua do Itamaraty no esquema de combate e repressão à “subversão de esquerda” formulado pela ditadura brasileira para a América do Sul, outro ponto fundamental do livro é a independência na política externa do regime em relação aos Estados Unidos. Como demonstra Simon, as decisões dos militares brasileiros em relação ao Chile foram todas tomadas em Brasília. Apesar de o regime militar conceder especial atenção ao posicionamento do seu aliado do norte em relação aos assuntos diplomáticos, a sintonia existente entre os dois países se dava muito mais porque a ditadura brasileira buscava “policiar” a América do Sul para combater os governos que pendessem para ideologias de esquerda.
O livro O Brasil contra a democracia surge, assim, como uma grande contribuição para o campo historiográfico a partir do olhar de um jornalista. Simon nos brinda com uma linguagem fluida e de amplo acesso sem perder a qualidade analítica, o que ajuda a enfrentar o que é, talvez, um dos poucos contratempos do livro, a repetição excessiva de fontes sobre o mesmo assunto. Ainda assim, a complexidade da trama, apresentada por meio de uma escrita clara e coesa de quem sabe prender o leitor com as palavras, supre qualquer lacuna. Com um olhar amplo sobre o contexto político sul-americano, o livro também tem vasto potencial para ser fonte bibliográfica e de pesquisa sobre a relação do Brasil ditatorial com outros países vizinhos para além do Chile de Pinochet.
Publicado em 2021, o livro é fruto de oito anos de trabalho em arquivos e de entrevistas realizadas pelo jornalista. Com esta excelente pesquisa, iniciada em 2013, em razão da efeméride dos 40 anos do golpe contra o governo democrático de Salvador Allende, Simon nos presenteou com uma obra que já é parte de uma bibliografia indispensável para se compreender o pragmatismo autoritário da diplomacia brasileira durante a ditadura, o contexto da Guerra Fria na América do Sul e a relação entre o Chile de Salvador Allende e o de Pinochet com o Brasil dos militares.
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