Pular para o conteúdo
Colunas

Qual é a “pior” sorte dos revolucionários?

Fundação GAP

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

“Nada pior pode ocorrer ao chefe de um partido radical que se viu obrigado a tomar o poder em uma época em que o movimento não está ainda maduro para a classe que representa e para a execução das medidas que exigem o domínio dessa classe(…) O que pode fazer está em contradição com toda a sua atuação anterior, os princípios e os interesses imediatos do seu partido; o que deveria fazer não poderia ser colocado na prática. Em uma palavra, é obrigado a representar não o seu partido e a sua classe, mas a classe para a qual o domínio do movimento se encontra maduro.” [1]
                                                                                                                                Friedrich Engels

Qual é a “pior” sorte dos revolucionários? Engels não coloca o dilema em abstrato, mas diante de um contexto definido: quando é possível disputar o poder, mas não estão maduras as condições para a aplicação do programa que defendem. Não é uma pergunta fácil de responder. Mas existem somente duas grandes hipóteses. Lutar pelo poder ou ganhar tempo?

Na encruzilhada dos tempos históricos, qual é a pior sorte: chegar ao poder antes da hora, ou quando já é tarde demais? Não é um falso problema. Não é verdade que existe “sincronia” na história. Ao contrário, como uma vez escreveu Daniel Bensaïd, prevalece uma “discordância dos tempos”. Ocorreram revoluções tardias, mas também, revoluções prematuras. Não há revolução sem contrarrevolução.

Esse foi o desafio do governo Allende no Chile entre 1970/73. Colocaram-se, então, duas respostas estratégicas na esquerda chilena. Aceitar os limites da relação de forças desfavorável, e recuar para ganhar tempo? Ou avançar e lutar para mudar as condições adversas, se apoiando na mobilização dos trabalhadores?

Há dois campos nos variados balanços que se fazem da derrota da revolução desarmada. Os que defendem que o governo da Unidade Popular foi esmagado porque “foi longe demais”. Os que defendem que Allende deveria ter se preparado para a inevitável quartelada construindo condições de ruptura. Algo deve nos servir para pensar o destino do governo Lula em 2023, quando o neofascismo voltou a ser uma corrente de massas, e ameaça até chegar ao poder na Argentina, como aconteceu no Brasil com Bolsonaro.

Das lições de meio século atrás permanece a questão: como ir além do capitalismo? Na escala internacional, as condições, estritamente, objetivas para iniciar uma transição socialista estão maduras. Mas nenhuma corrente revolucionária luta pelo poder fora de fronteiras nacionais.

Ou seja, se um governo dos trabalhadores e oprimidos chegasse ao poder em um país, industrialmente, desenvolvido seria possível, em princípio, aplicar medidas anticapitalistas. Acontece que esses países são as fortalezas do capitalismo. E aprendemos que a ordem imperialista é um sistema internacional de Estados. Enfrentar uma invasão ou guerra civil será o mais provável destino de uma República dos trabalhadores. Um governo ameaçado pela guerra terá que erguer um regime de ditadura revolucionária ou perecer. Como resistir sem uma Internacional?

Mas o contexto é ainda mais grave. Na maioria das nações periféricas, onde sequer a transição do mundo agrário para o urbano se completou, um governo dos trabalhadores teria que desenvolver em mobilização permanente, um programa de transição que arrancará de medidas democrático-radicais. Como revelou a história, um programa de erradicação da fome e do analfabetismo, de independência nacional, revolução camponesa, revolução negra, etc.

O tema mantém atualidade. Não há hoje nenhuma nação no mundo que esteja em transição ao socialismo. No laboratório da história, a experiência da estratégia da socialdemocracia, ensaiada incontáveis vezes, não foi além de uma regulação do capitalismo. Uma regulação que permitiu a ampliação de direitos nas décadas do pós-guerra, em alguns países centrais, nos chamados “trinta anos dourados”. Mas desde a ofensiva neoliberal da década de oitenta a socialdemocracia europeia não foi além da “redução de danos”, ou pior.

No laboratório da história, o balanço da experiência dos governos que chegaram ao poder através de métodos revolucionários não é menos desanimador. Uma onda revolucionária, em alguns países periféricos, garantiu o triunfo de revoluções socialistas na China, Vietnam, Coreia e até na heroica Cuba. Mas instalaram-se, por variadas razões sociais e políticas, objetivas e subjetivas, ditaduras de partido único, regimes inspirados no modelo estalinista que, na sua imensa maioria, finalmente, iniciaram processos de restauração capitalista.

Primeiro, portanto, é preciso elaborar o desafio dos internacionalistas do século XXI. Uma organização revolucionária pode escolher ser, somente, uma corrente ideológica dedicada à propaganda de ideias para um futuro indefinido. Será um partido-museu. Pode escolher, também, ser um sujeito fiscalizador e crítico da disputa política pelo poder. Será um partido-testemunhal. Ou, finalmente, pode ambicionar com audácia ser um instrumento útil para a luta pela conquista do poder.

O problema se apresentou pela primeira vez diante da Comuna de Paris em 1871. Estavam cercados pelo vitorioso exército alemão, e confrontados pelo governo liderado por Adolphe Thiers que tinha assinado a rendição e, instalado em Versalhes, tinha capitulado a exigência do Kaiser de desfilar nos Champs Élysées. Ainda assim, lançaram-se “aos céus” e ergueram o primeiro governo dos trabalhadores da história.

O desafio se colocou, outra vez, de forma incontornável para os bolcheviques em 1917, e se dividiram. Uma parcela do núcleo duro da fração liderada por Lenin, Kamenev e Zinoviev, entre outros, se opuseram à preparação da insurreição de outubro. Consideravam a transferência do poder do governo provisório para o Soviet de Petrogrado uma aventura que não se sustentaria. Lenin e Trotsky venceram a discussão e deram um empurrão na história.

Uma terceira vez o dilema se apresentou, quando os bolcheviques decidiram impulsionar a NEP: um programa de medidas econômico-sociais que impulsionava a busca de prosperidade para os camponeses. Desta vez a decisão foi ganhar tempo. Diante do curso das lutas de classes na Europa, no início dos anos 20, depois das primeiras derrotas da revolução alemã, e frente ao dramático isolamento internacional e atraso semi-asiático da Rússia, a liderança bolchevique, encurrala pelo perigo da pobreza e da fome nos centros urbanos, optou pela restauração de uma transitória regulação de mercado. As controversas consequências foram graves.

Eis os termos da questão examinada em nível elevado de abstração. O partido “radical” no poder, nesta análise da permanência da revolução, permanece refém do seu tempo histórico, e ocupa um lugar político que não é o seu, porque prisioneiro de condições que não pode escolher.

“Ironia da história” porque é o agente da implementação do programa que corresponde às circunstâncias. Uma armadilha “hamletiana” do voluntarismo. O perigo de ser vítima da “vingança” da história, devorado pelo inamovível peso dos atrasos: o atraso econômico da nação, o atraso sociocultural das massas, o atraso da revolução nos países mais avançados. Ou o perigo de perder a oportunidade histórica.

O destino mais triste é desistir.

Notas

1 ENGELS,Friedrich, “La guerra campesina en Alemania” In  MARX, K. e ENGELS, F. Obras escogidas. Moscou, Progresso, T.1. p. 307)