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50 anos do golpe no Chile

Neste mês de setembro o Esquerda Online inicia um especial sobre o cinquentenário do golpe no Chile, que terminou com os mil dias do governoda da Unidade Popular.

As razões para isso são muitas. Nomeamos algumas delas:

O processo chileno se deu em um contexto de lutas muito importantes no sul do continente: Argentina, Bolívia, Chile, Peru e Uruguai.

O que se passou no Chile foi uma grande demonstração da força da classe trabalhadora e seus aliados, os pobres da cidade e do campo e setores da classe média. Nunca antes, os trabalhadores chilenos lutaram tanto, com tanta força e radicalização.

O imperialismo americano, desde o começo do governo, conspirou para derrubá-lo, o que deve ser recordado para novos processos de luta na região, o chamado “quintal” dos EUA.

O governo da Unidade Popular foi a culminação de quase um século de lutas em um país em que a organização política dos trabalhadores estava fortemente estabelecida com o partido socialista e o partido comunista que tinham juntos quase 300 mil militantes. A Democracia Cristã se dividiu e surgiram organizações de esquerda, como o MAPU, a Esquerda Cristã e Cristãos pelo Socialismo

O primeiro ano foi de grandes avanços, tanto no campo social como na reapropriação das riquezas naturais e na nacionalização de empresas monopólicas. A partir das primeiras medidas do governo, a classe trabalhadora queria mais e superar os limites evidentes do programa da UP. E a oposição de direita começou a contestar isso diretamente, com um locaute de quase um mês em 1972

A reação das massas foi fortíssima e derrotou o locaute financiado pelo imperialismo americano e o grande capital.

A partir daí, os limites da UP começaram a aparecer. E o governo não estava à atura das esperanças que despertou e buscou uma saída conciliatória incluindo os comandantes das forças armadas no gabinete. O que foi um erro grave e permitiu que as forças da direita se recuperassem da derrota no locaute.

O ponto mais crítico foi a confiança no caráter profissional e constitucionalista das forças armadas, sem buscar se apoiar na simpatia que havia na base das forças armadas contra o golpismo.

O terrível desfecho da experiência foi dramático. Até hoje as imagens da força aérea chilena bombardeando o palácio presidencial horrorizam o que era o prelúdio da sangrenta ditadura que matou mais 3 mil pessoas, incluindo exilados no país que era “o asilo contra a opressão”.

Os brasileiros exilados eram mais de 3 mil, alguns dois quais foram presos e torturados e assassinados, como Túlio Quintiliano.
Para agradecer à hospitalidade do Chile, cerca de 100 ex-exilados brasileiros estão no país desenvolvendo importantes atividades.

A ditadura brasileira teve um papel fundamental no combate contra o governo Allende, na preparação do golpe e no apoio ao novo regime chefiado pelo infame Pinochet.

A sombra se abateu não só sobre o Chile. Desde 1971, uma onda de ditaduras militares se estabelecem no sul do continente (pela ordem cronológica, Bolívia, Uruguai, Chile, Peru e Argentina. A sinistra Operação Condor assassinou opositores em vários países.

A recuperação das liberdades democráticas em todos esses países foi um fator de alento, mas o surgimento e a força das correntes neofascistas nos últimos anos faz com que devamos olhar com cuidado as lições da experiência chilena.

O outro 11 de setembro: a tragédia chilena – Parte 1

Waldo Mermelstein

Palácio de La Moneda bombardeado no 11 de Setembro de 1973

O golpe militar que derrubou Salvador Allende em 1973 vitimou milhares de pessoas, destruiu os partidos políticos e as organizações dos trabalhadores e impôs o modelo precursor do neoliberalismo. Foram 17 anos de uma brutal ditadura. As fotos e vídeos tristemente famosos do palácio presidencial sendo bombardeado por aviões da Força Aérea do Chile mostraram ao que os comandantes das Forças Armadas estavam dispostos. Foram presas e assassinadas milhares de pessoas, em particular militantes dos partidos de esquerda, ativistas da classe trabalhadora, estudantes e camponeses, que foram um alvo direto da junta fascista. Os milhares de refugiados e exilados foram perseguidos desde os primeiros decretos dos golpistas. Entre eles, parte dos cerca de 3 mil brasileiros que trabalhavam e/ou estudavam no país. Alguns participaram das instâncias de governo, muitos militavam nos partidos de esquerda chilenos. Vários brasileiros e brasileiras foram presos, torturados e/ou assassinados.

Nos anos subsequentes, foram criados campos de concentração como na Ilha Dawson, no Estreito de Magalhães e foi formada uma sinistra polícia política, a DINA que perseguiu e assassinou chilenos no país. As garras da DINA chegaram ao exterior, sendo os casos mais famosos os do General Prats (ex-comandante do Exército e opositor ao golpe), que teve o automóvel em que viajava com sua esposa explodido no bairro de Palermo em plena Buenos Aires, em setembro de 1974, e de Orlando Letelier, que foi embaixador nos Estados Unidos e Ministro de Relações Exteriores no governo Allende e foi assassinado por um carro-bomba em Washington DC, a poucos quilômetros da Casa Branca, em setembro de 1976. como o Brasil (havia cerca de 3 mil no Chile), são a marca mundialmente conhecida do regime chileno.

As conquistas sociais mais importantes foram liquidadas. A educação, a saúde, a seguridade social, foram privatizadas, assim como as riquezas naturais, inclusive a água. Os sindicatos tiveram sua atividade drasticamente restringida, o trabalho foi precarizado, a reforma agrária foi boa parte revertida e os mapuches foram tratados manu militari. Não por acaso, as incessantes lutas nos últimos dez a doze anos no Chile, inclusive o estallido social de 2019, levantavam bandeiras ligadas ao legado da ditadura.

Agora, no cinquentenário do golpe um importante sentimento parece perpassar boa parte da população chilena em relação à recordação do que foi o governo da Unidade Popular. Os mártires são homenageados, a começar por Allende e Victor Jara, assim como emerge o interesse sobre a experiência e a memória do período de 1970 a 1973. No Brasil, o cinquentenário do golpe parece despertar um interesse nos setores mais politizados, o que ainda pode aumentar com a divulgação que será dada neste mês, em particular no dia 11.

Waldo Mermelstein, na rodoviária de Porto Alegre para o Chile, em 14 de dezembro de 1972

Indo direto ao balanço do processo, como se chegou a um desfecho tão terrível? Havia outra possibilidade? Como tão poderoso movimento social foi derrotado praticamente sem combates? Faço essas perguntas como quem participou por quase um ano do processo de forma intensa, ao ter que sair do Brasil pelas condições impostas pela ditadura. Tinha 19 anos quando cheguei ao Chile e comecei a estudar na Universidade do Chile (havia cota de 10% das vagas para estudantes estrangeiros) e me engajei na militância no Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), mais precisamente em sua organização para-partidária estudantil, a FER (Frente de Estudantes Revolucionários). No dia do golpe, saí do apartamento onde morava nas Torres de San Borja, no centro da cidade, para ir à Universidade, como combinado desde o golpe fracassado de 29 de junho, para tentarmos resistir. Já não havia transporte público e fui caminhando e logo encontrei um companheiro, Dirceu Messias, que tinha sido operário no Rio Grande do Sul. Ele ia para um Cordão Industrial e eu para a Escola de Economia. Soube depois que ele foi preso no estádio Nacional até dezembro, quando foi expulso para a França. Só retornou ao Brasil em 1979. Passei pelo Palácio de la Moneda, onde estavam soldados em sua frente, com lenços vermelhos no pescoço. Pensei “são nossos”, mas, felizmente não me aproximei para conversar, porque não eram. Na escola de Economia da Universidade do Chile, onde estava estudando, havia uns 50 estudantes, bem menos do que quando do golpe fracassado de 29 de junho, o “Tancazo”. Com tão pouca gente e com a brutalidade do bombardeio não havia o que fazer ali. Os carabineiros que tinham um quartel perto da escola vieram nos dizer que tínhamos meia-hora para sairmos, o que tivemos que fazer. Eu e mais 3 companheiros do MIR fomos de carro para tentarmos ir para o Cordão Industrial Vicuña Mackenna, mas as patrulhas de soldados no centro da cidade não nos deixaram passar e o toque de recolher começaria em poucos minutos. Fui para minha casa. No apartamento, estavam mais duas pessoas, um chileno cujos pais moravam no sul do país e já estavam presos e um sueco recém-chegado ao país que não entendia nada. À noite ouvíamos disparos, passavam as ambulâncias porque havia um hospital ali. La permanecemos por 2 dias, quando terminou o toque de recolher total.

Parecia um país distinto. Eu me preparei para sair e cortei a barba para não ter o aspecto que correspondesse com a caricatura de um extremista estrangeiro descrito pelos fascistas e pelos milicos. Os comércios tinham todo tipo de produtos que não havia antes do golpe. Fui encontrar um companheiro do MIR da Universidade com quem tinha um ponto de encontro previamente marcado na frente do Ministério da Defesa (um lugar insólito), que me deu mais detalhes sobre o que havia acontecido. Uma amiga sueca me contou o horror que tinha sido em uma población (bairro periférico) em que ela fazia trabalho comunitário.

Foram cerca de vinte dias, tratando de não ser notado pelos soldados, houve alguns momentos em que escapei por pouco. Mas ainda pude encontrar os companheiros do MIR a quem deixei metade do dinheiro que tinha, além de Jorge Alberto Basso, que era dirigente do setor estudantil do MIR e infelizmente foi assassinado pela Operação Condor em Buenos Aires em 1976, estando ignorado seu paradeiro desde então.

Mesmo após o golpe, discretamente, as pessoas eram solidárias. Lembro-me de um fato que me marcou: estava voltando para minha casa, depois de ter ido dormir na casa de uns amigos do PC, mas o prédio estava interditado por militares que faziam uma batida e, imprudentemente tentei passar a barreira. “Adonde va?”, perguntou o soldado. Mais imprudentemente, respondi com meu melhor espanhol: “a mi casa”. Uma moça chilena, corajosamente, percebendo o perigo, me pegou pela mão como se fosse minha namorada e me tirou dali. Não sei o que teria acontecido se não fosse esse gesto tão simples.
Naqueles dias, calculei que era melhor não buscar refúgio em uma embaixada porque era jovem e pouco conhecido (só havia sido enquadrado no Decreto-Lei 477) e poderia voltar ao Brasil. Busquei meu passaporte que estava no Ministério do Interior, onde havia uma imensa fila. A atendente me perguntou se pretendia voltar ao Chile e dei a resposta que imaginei a mais correta: “Não”. Assim que as fronteiras foram abertas, em primeiro de outubro, fui para a Argentina em um pequeno ônibus que estava lotado de pessoas. Houve uma batida militar que nos parou. O silêncio era total no ônibus, mas quando cruzamos a fronteira todos gritaram de felicidade.

O Chile em 1970

O Chile tinha cerca de 10 milhões de habitantes, uma alta taxa de urbanização (75%) e uma trajetória de quase cem anos de organização do movimento operário; o mais antigo e poderoso partido comunista das Américas, ao lado de um também antigo e forte partido socialista, que tinha uma grande ala esquerda. A democracia burguesa era bastante antiga e estável para os padrões latino-americanos: desde 1932 não havia golpes militares, o que não significava que eles não interviessem na vida política e não praticassem massacres terríveis como a dos mineiros do salitre em Iquique, naquele longínquo 1907 ou que tivesse havido tentativas de golpe como a do General Viaux em 1969. Além disso, o oficialato era formado pelas ideias da Guerra Fria, na Escola das Américas no Canal do Panamá e as forças armadas tinham uma estrutura fortemente hierarquizada.

Na década de 60, o Chile conheceu um profundo processo de mobilizações operárias, populares e estudantis, devido ao estrangulamento do modelo econômico de substituição de importações e à influência da revolução cubana. Não por acaso, a Democracia Cristã (DC), em 1964, foi às eleições para enfrentar a coalizão de esquerda com a bandeira de “Revolução em liberdade”. Seu programa focava a reforma agrária, a incorporação dos pobres da cidade à economia e a “chilenização” do cobre”. Esse partido contou com o forte apoio do imperialismo americano, que àquela época implementava seu programa da Aliança para o Progresso a fim de tentar deter a tremenda influência da revolução cubana.

A burguesia busca evitar o susto que tinha tido com as eleições de 1958, quando Allende, como candidato da aliança PC-PS, ficou a 30 mil votos do candidato vencedor, Jorge Alessandri do direitista Partido Nacional. Desta vez, Frei foi o candidato único da burguesia para enfrentar a esquerda, conseguindo 54% dos votos, algo extremamente raro àquela época no Chile

Após vencer as eleições, o governo Frei, da DC, mostrou abertamente sua cara patronal, repressiva e pró-imperialista. Inicialmente, sua estratégia parecia ter êxito, mas após dois anos, a inflação subiu, a reforma agrária estagnou, a chilenização do cobre mostrou-se um ótimo negócio para as companhias americanas – calcula-se que elas lucraram mais com a propriedade de 49% das ações das minas do que quando tinham 100%, além de manterem sua administração. Com isso, o movimento de massas começou a aumentar significativamente suas lutas: houve um aumento exponencial das greves, especialmente as ilegais e houve três greves gerais até o processo eleitoral em 1970.

Além disso, o fim da restrição à sindicalização no campo: até 1967, era proibida a sindicalização da maioria dos camponeses que, em sua maioria, não viviam na propriedade e era exigido que mais da metade dos sindicalizados soubessem ler e escrever. Com isso, a sindicalização no campo cresce verticalmente, chegando a 100 mil entre os 700 mil trabalhadores do campo (este número chegaria a 300 mil ao final do governo da UP. Os camponeses não esperaram e estes não esperaram mais pela aplicação da reforma agrária e começaram a ocupar terras em grande quantidade.

A direitização do governo Frei é acompanhada de uma brutal repressão:

Em 1966, os trabalhadores da mina de El Teniente entraram em greve, o que era ilegal segundo a legislação à época e a mina de El Salvador entrou em greve em solidariedade, como era usual na categoria. Após alguns dias, o governo envia o exército para reprimir os grevistas. O balanço é trágico: 8 mortos. O governo não reconhece sua responsabilidade. Fidel Castro ataca o governo Frei um de cujo slogans era o de “revolução sem sangue”, fazendo um trocadilho, dizendo que o que ele estava produzindo era “sangue sem revolução”.

Outro evento sangrento foi a desocupação à ocupação de terrenos na cidade de Puerto Mont, ao sul do Chile, em 1969, que ocasionou 11 mortos entre os ocupantes, inclusive um bebê. Além do desprestigio do governo, uma fração da DC rompe pela esquerda e forma o MAPU – Movimento de Ação Popular Unitária, que se integraria à coalizão da esquerda.

O governo de Frei terminava, portanto, com uma crise econômica, social (aumento exponencial de greves e ocupações na cidade e no campo. No caso das Forças Armadas, a greve armada dirigida pelo general Viaux, mostrava sinais claros de inquietação no Exército e foi respondida por um dia de greve geral chamada pela CUT e apoiada por todos os partidos menos o Partido Nacional de direita.

A Unidade Popular (UP)

Em 4 de setembro de 1970, realizam-se as eleições e a coalizão de partidos de esquerda, a UP, com Salvador Allende à cabeça e composta pelo Partido Comunista (PC), o Partido Socialista (PS), mais o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU) e pequenas agrupações burguesas, como o Partido Radical), consegue a primeira maioria (36,6%), ficando o candidato mais à direita, Jorge Alessandri com 35,29% e o candidato Radomiro Tomic da Democracia Cristã com 28,08%. Para que o candidato vitorioso tivesse sua eleição confirmada ainda teria que passar pela aprovação do parlamento, o que sempre tinha sido a tradição. Intensas pressões e negociações precederam essa votação. O imperialismo americano procurou estimular os setores que não queriam a posse de Allende. O ex-secretário de Estado Henry Kissinger já havia resumido a consideração do imperialismo americano com a vontade popular, ao comentar com seus colegas “não vejo por que temos que ficar parados e assistir a um país tornar-se comunista devido à irresponsabilidade do seu próprio povo”. Ressalte-se que esta declaração de Kissinger, um dos responsáveis pelo tormento sofrido pelo povo vietnamita, foi feita antes mesmo das eleições, em 27 de junho de 1970 em uma reunião secreta de um comitê do governo, ainda antes das eleições chilenas.

Com a eleição de Allende, o governo americano deu claras instruções para buscar impedir sua posse. Por meio da desclassificação das informações de uma reunião do presidente Nixon com o chefe da CIA, em 15 de setembro, 11 dias após a eleição (!!), sabemos que “De acordo com notas manuscritas feitas pelo diretor da CIA Richard Helms, Nixon deu instruções explicitas para impedir que o novo presidente do Chile, Salvador Allende, assumisse o cargo em novembro ou que se criassem as condições para derrubá-lo se assumisse a presidência”. Ressaltando o fato de que era uma estratégia permanente, Nixon acrescenta na mesma reunião uma frase que se tornou conhecida: “façam a economia [do Chile] gritar”.

Indo a expressões mais concretas dessa orientação, em setembro, o embaixador americano Korry transmitiu diretamente ao governo Frei a decisão dos EUA de condenar o Chile à pobreza e apontou que o general Schneider teria que ser “neutralizado”.

Houve vários planos de golpe. O plano inicial era que a DC votasse em Alessandri no Parlamento, que em poucos dias renunciaria e haveria nova eleição em que a direita apoiaria Frei. A DC, receosa de nova divisão do partido, não aceita a proposta.

O novo projeto de golpe se dá dois dias antes da eleição no Congresso Pleno: a extrema direita tentou sequestrar o comandante do Exército, Rene Schneider, partidário de aceitar os resultados eleitorais, para forçar uma mudança na opinião das forças armadas e da burguesia, mas o general resistiu e morreu, e o resultado foi que o setor mais golpista da burguesia perdeu espaço para atuar. Antes de votar, no entanto, a DC obrigou a UP a aceitar um estatuto de garantias constitucionais que reafirmava o compromisso de manter as instituições centrais do regime capitalistas.

Antes de começarmos a fazer o balanço do governo, duas palavras sobre Allende. Era um antigo parlamentar socialista que concorreu pela quarta vez a presidente. Era um reformista convicto e nunca o escondeu. As concessões reais feitas na primeira parte de seu governo, a implacável oposição que seu governo sofreu por parte da burguesia e do imperialismo e sua morte trágica provocada pelos golpistas assassinos fizeram com que seja idolatrado pelas massas. Mas não devemos nos confundir: seu grande valor pessoal no último ato ao enfrentar com coragem os gorilas chilenos não o redime de seus erros, a escolha equivocada da chamada via pacífica ao socialismo, que defendeu até o fim apesar da escalada golpista evidente no final de seu governo, com a brutal derrota a que conduziu.

Além disso, o movimento dos trabalhadores e a esquerda tinham muita força e tradição. Os sindicatos e as associações de trabalhadores surgiram nas últimas décadas do século 19 e os primeiros partidos operários, no começo do século 20. O Chile já tinha conhecido uma Frente Popular, aliança entre partidos de trabalhadores e da burguesia, na década de 1930.

Em termos de tamanho, durante o governo de Allende, o PC teria chegado a ter cerca de 160 mil militantes (entre o partido e a juventude) segundo seus dirigentes e o PS, 130 mil, além do MAPU com cerca de 10 mil e o MIR o equivalente. Estamos falando de cerca de 300 mil militantes em um país que tinha ao redor de 10 milhões de habitantes.

O primeiro ano

O programa de reformas básicas da UP tinha os seguintes eixos:

  • a aceleração da reforma agrária segundo a mesma lei aprovada no governo Frei;
  • a nacionalização completa do cobre, que representava 80% das receitas de exportação do país e das demais riquezas naturais;
  • nacionalização das empresas monopólicas. As indústrias seriam divididas em três áreas, privada, mista e área de propriedade social (APS). A esta última, seriam incorporadas as empresas monopólicas. Nas áreas não estatais a única participação dos trabalhadores seria através dos pouco definidos comitês de vigilância da produção. Os bancos seriam também nacionalizados;

O programa da UP fazia referência a uma transição ao socialismo respeitando as leis e a institucionalidade vigentes, sem especificar seus ritmos e métodos. Allende em vários discursos como presidente falava de uma segunda forma de transição ao socialismo, supostamente defendida por Marx, ou seja, uma transição respeitando as regras estabelecidas pelo regime burguês, pacífica, enaltecendo uma “flexibilidade” das instituições do estado chileno.

Outro elemento no programa da Unidade Popular e que estimulou o movimento diretamente a lutar foi a declaração de que “as transformações revolucionárias de que o país necessita somente poderão ser realizadas se o povo chileno tomar em suas mãos o poder e o exercer real e efetivamente”. Era uma declaração genérica, uma concessão à sua ala esquerda, sem maiores precisões, mas, mesmo assim, era uma linguagem distinta da dos demais governos que foi interpretada literalmente pelos trabalhadores e pelos setores populares que acabaram ultrapassando em muito as ações e intenções do governo e que com ele se chocaram em vários momentos.

Allende fez questão de dar a orientação explícita de que não houvesse repressão aos movimentos sociais, o que teve um grande impacto para estimular as lutas das massas por seu direito.

Tentando uma definição do governo Allende poderíamos dizer que foi um clássico governo de colaboração de classes em um país dependente do imperialismo, marcado por uma profunda instabilidade, particularmente a partir do locaute patronal de outubro 1972.

Para tornarmos mais clara essa definição, cedemos à tentação de fazermos algumas analogias históricas, como uma aproximação a uma realidade viva e complexa. Pelo seu conteúdo programático, pela sua prática de tentar manter o movimento de massas como um apoiador controlado do governo, mais além das menções retóricas, para “dias de festa” a uma transição ao socialismo, assemelhava-se a outros governos nacionalistas burgueses da América Latina, entre eles o de Goulart no Brasil. Pela composição predominante dos partidos que o compunham e pelo apoio da principal organização sindical do país, a CUT chilena, tinha semelhança com outros regimes de colaboração de classes, chamados de frente popular pela denominação dada pela Internacional Comunista sob domínio de Stálin. Sua proposta de governo era a de organizar uma aliança anti-monopolista, antioligárquica e anti-imperialista entre a classe trabalhadora, setores da classe média e uma suposta burguesia nacional, oposta aos monopólios, ao latifúndio e ao imperialismo para completar uma primeira fase democrático-burguesa do processo revolucionário.

A partir de outubro de 1972, o governo, além das características anteriores, começa também a ter elementos assemelhados aos governos no auge de situações revolucionárias, e logo nos vêm à mente o exemplo de Kerensky na Rússia em 1917, em que, sem deixar de ter projetos nem de existir, cada vez mais é totalmente impotente entre as duas classes fundamentais que se enfrentavam, entre revolução e contrarrevolução. De qualquer forma, era um governo que explicitamente não rompia nem pretendia romper com os marcos da dominação estatal capitalista.

Mas não nos adiantemos. Vejamos como evoluiu o processo. O Chile que Allende recebeu era um país pobre (60% das famílias recebiam até dois salários-mínimos), o país vivia uma profunda crise econômica, recessão e inflação na casa dos 35%, o desemprego em 8% e tinha a segunda maior dívida externa per capita do mundo.

A UP aplicou uma estratégia inicial de reativar a economia com medidas de estímulo keynesiano, aumentando os salários de acordo com, pelo menos, a inflação do ano interior (e acima da inflação os salários mais baixos, elevando os benefícios sociais e, em especial os previdenciários, aumentando o crédito para a economia, estimulando em níveis inéditos a construção de casas populares (foram construídas 158 mil moradias nos 1000 dias do governo, acelerando a reforma agrária, começando a nacionalizar os principais monopólios industriais e bancários por meio da compra e muito especialmente nacionalizando as riquezas naturais básicas, entre elas, claro, em primeiro lugar, o cobre, o chamado “salário do Chile”.

Um dos programas mais exitosos, foi a entrega gratuita de meio litro de leite diário para cada criança até sete anos e às mulheres grávidas ou que amamentavam no país, sabendo-se que, no Chile àquela época, 80 em cada 1000 bebês morriam por ano em especial por desnutrição. Ao final de 1971, 3 milhões de crianças, 96% da população alvo, foram atingidas pelo programa.

Essas medidas tiveram um efeito imenso: em 71 houve uma grande transferência de renda para o trabalho assalariado, que alguns dizem ter atingido 10% da renda nacional, chegando a 59% desta (o que é verdadeiramente extraordinário) e 59%, o desemprego baixou quase à metade, para 3,9%.

A ideia era de, a partir do aumento da popularidade advinda dessas medidas, lançar medidas de democratização do Estado, em particular a Assembleia Popular, espécie de câmara legislativa única para poder prosseguir com as reformas. Com o efeito dessas medidas, cinco meses após assumir o poder, a UP, mais a pequena Usopo, conseguiu 50,3% dos votos nas eleições municipais.

Mas as coisas não corriam exatamente como previam os dirigentes da UP: a burguesia obtinha enormes lucros com a reativação da economia, mas não investia quase nada, por seu caráter parasitário e principalmente por um cálculo político: até que ponto os dirigentes da UP poderiam controlar os trabalhadores? A mesma desconfiança teriam os setores privilegiados das classes médias urbanas e rurais.

Por outro lado, as massas, depositavam enormes expectativas no governo e o apoiavam, sentindo que havia chegado o momento de conquistar seus direitos tanto tempo postergados.

As ocupações de terras explodiram, inclusive superando os limites da reforma burguesa herdada da DC: ao contrário de respeitar o limite de 80 hectares de irrigação básica (que era uma fórmula complicada e que permitia a sobrevivência de propriedades muito maiores), o que deixaria cerca de 40% das melhores terras nas mãos dos grandes e médios proprietários. Os camponeses resolveram se adiantar e começaram a ocupá-las e propondo a radicalização da reforma agrária. Papel importante tiveram os mapuches, povo indígena conquistado e espoliado desde a época dos espanhóis, passando depois pela sangrenta “pacificação da Araucania” realizada pelo estado chileno (em que entre de 50 e 70 mil mapuches morreram pelas mãos do exército-) e deixados de lado pela reforma agrária da DC, que pediam a restituição de suas terras e se destacaram por ocupá-las. A reação do governo foi dupla: condenou, inclusive pela palavra do próprio Allende, a radicalização, mas, para não perder o controle, acelerou a reforma agrária, enviando o ministro da Agricultura Jacques Chonchol que tinha vindo da DC para instalar o Ministério na província de Cautín. Nesta, havia uma grande concentração de mapuches.

De março a dezembro de 1970, os mapuches haviam protagonizado uma onda de ocupações, que eles denominavam de “corridos de cerco”, ou deslocamento noturno das cercas das propriedades. Em dois anos se cumpririam as metas da reforma agrária (segundo a lei herdada do governo anterior) para seis anos…

O governo havia estabelecido por decreto em dezembro de 1970 a constituição de um Conselho Nacional Camponês, formado pelas confederações camponesas. Além disso, dispôs que se organizassem Conselhos Provinciais e Comunais. Além disso, é interessante que tenha se originado no campo uma das primeiras contestações organizadas, pela esquerda, à política do governo: o congresso de camponeses de Cautin, onde houve muitas ocupações nos primeiros meses do governo, exigiu o aprofundamento da lei de reforma agrária herdada da DC que deixava as melhores terras nas mãos dos grandes proprietários, pedindo a diminuição do limite expropriável para 40 hectares de irrigação básica e o fim da possibilidade de os latifundiários reservarem as melhores terras para eles, assim como suas máquinas e animais.

Nas cidades, os trabalhadores começaram a reivindicar melhores salários e condições de trabalho, as greves continuaram aumentando exponencialmente, em especial as ilegais. Muitas empresas foram ocupadas para forçar a sua nacionalização, mesmo aquelas que não preenchiam os critérios definidos pela UP (não havia uma lista definida nem havia possibilidade de passar uma lei pelo congresso, dominado pela direita). Por exemplo, a tecelagem Yarur, maior fábrica têxtil do país, de propriedade de uma das famílias mais ricas do país – e que impunha um regime despótico ao interior da empresa, era uma das candidatas, mas o governo não havia anunciado sua nacionalização. Os dirigentes sindicais da fábrica que eram da UP e os trabalhadores de base precipitaram um conflito laboral, ocuparam a empresa e pediram a sua passagem para a APS. Como conta o historiador Peter Winn (“Tecelões da Revolução), depois de muito pressionar o governo e contando com a oposição pessoal de Allende, os trabalhadores o dobraram e o governo utilizou uma das chamadas brechas legais, utilizando legislação antiga e em desuso para intervir a empresa1. Allende queria que a empresa só fosse nacionalizada de acordo com seus planos de avanço paulatino. O problema é que, mesmo que houvesse alguma lógica nessa explicação, o movimento social tinha sua dinâmica própria. Segundo o autor, nos ásperos diálogos, Allende foi claro e disse: “As massas não podiam ir adiante dos dirigentes porque estes tinham a obrigação de dirigir e não de ser dirigidos” e também advertia: “se eu ceder a vocês, outros farão o mesmo”. E efetivamente, várias outras empresas seguiram o mesmo caminho, mas a vontade de dirigir ferreamente o movimento iria cobrar seu preço em todo o processo.

Os moradores sem teto que, entre ocupações e favelas, constituíam cerca de 20/25% da população de Santiago, seguiram ocupando terrenos e exigindo a construção de casas e melhorias. Chamados genericamente de “pobladores”, este movimento atingiu um alto grau de organização e consciência, chegando a ter verdadeiras comunas populares, como a ocupação “Nueva La Habana”, que chegou a reunir 9 mil pessoas sob a influência de um organismo para-partidário do Movimento de Esquerda Revolucionário – MIR, o MPR (Movimiento de Pobladores Revolucionários).

O MIR era uma organização que não pertencia formalmente à Unidade Popular e havia sido formado originalmente por dissidentes do PS, trotskistas e independentes (inclusive o legendário Clotario Blest – cristão revolucionário que tinha sido o fundador da CUT em 1953-, mas depois seguiu uma linha castrista imposta por Miguel Enriquez.

Todos esses novos acontecimentos apareciam ainda como se fossem apenas um pouco mais do clima de ascenso e de crise que se vivia antes da posse de Allende, com uma maior confiança por parte dos trabalhadores porque sentiam que o governo estaria ao seu lado ou, pelo menos, que não usaria a repressão, como havia prometido solenemente.

Em julho de 71 o Congresso aprovou por unanimidade a nacionalização completa das minas de cobre e Allende recebeu o encargo do parlamento para determinar a indenização a ser paga. Ele propôs que as empresas (americanas) fossem compensadas financeiramente, mas que os lucros extraordinários auferidos nos últimos 15 anos fossem descontados, o que por pressão popular acabou sendo confirmado pelos órgãos do estado. Na verdade, o cálculo que se fazia à época é que as empresas mineradoras haviam lucrado tanto como todo o investimento em capital fixo no país durante sua história!

Por outro lado, os EUA seguiam com a orientação de fomentar a oposição ao governo, mais ainda após a nacionalização sem indenização das minas de cobre.

Com isso, o imperialismo americano decide impor o chamado “bloqueio invisível” do país, cortando os créditos para as importações, bloqueando a renegociação da dívida externa do país, entrando em juízo para confiscar as exportações de cobre chilenas e financiando cada vez mais os movimentos de oposição ao governo.

Seu nervosismo se explica pela situação na América Latina naquele período, com a desestabilização de vários países latino-americanos, depois do furacão gerado pela revolução cubana. Para ficarmos no entorno do Chile, a Argentina, o Uruguai, a Bolívia e o Peru viam crises políticas, movimentos sociais rurais e urbanos massivos e o temor do governo americano era de que o exemplo do Chile se combinasse com esses processos.

Notas
1 Essa legislação tinha sido adotada pela chamada República Socialista, dirigida por militares, em 1932. Permitia a intervenção sem prazo para terminar em caso de a produção não manter seu ritmo normal ou se houvesse conflitos laborais.

*Este é uma versão modificada de um artigo publicado originalmente pela publicação socialista portuguesa Esquerda.net em 2011