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TEORIA

Pensando um pouco sobre “Esquerdismo…”, de Lênin

– Rascunho de guia de leitura –

Henrique Canary, da redação

As notas ditadas por Lênin às suas secretárias entre 23 de dezembro de 1922 e 04 de janeiro de 1923 entraram para a história com o nome de “Testamento Político”, pois são os últimos escritos do líder bolchevique antes de seu terceiro e último derrame, em 06 de março de 1923. A denominação é justa. Nessas poucas linhas, ditadas com um enorme esforço por um cérebro que se apagava, estão concentradas questões vitais para o futuro da União Soviética: a composição do Comitê Central, o problema das nacionalidades oprimidas, do comércio exterior, da democracia operária e da própria sucessão partidária. No entanto, o “Testamento Político” (ou “Carta ao Congresso”, seu título original) deixa de fora do debate o problema da política como tal, da agitação e propaganda, da atividade dos partidos comunistas entre as massas, questões sempre tão caras a Lênin. Onde buscar, portanto, referências a respeito da posição de Lênin sobre esses problemas?

Partimos da hipótese de que o livro “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”, escrito por Lênin entre abril e maio de 1920 por ocasião do II Congresso da Internacional Comunista, constitui sua mais importante obra sobre política. Por ser também o último grande trabalho de Lênin (a partir dali foram somente artigos, discursos e documentos), pode e deve ser considerado também uma espécie de “testamento político” no sentido estrito da palavra, ou seja, seu último e mais maduro tratado sobre a atividade, a estratégia e a tática dos partidos comunistas ao redor do mundo.

O contexto da obra

Por que “Esquerdismo…” é tão importante? Os bolcheviques tomaram o poder na Rússia em outubro de 1917. Apesar da enorme vitória que foi a insurreição dos sovietes, Lênin e seus companheiros jamais pensaram em construir uma sociedade socialista isolada. Todas as esperanças iam no sentido de provocar um incêndio revolucionário europeu. Era preciso que os países mais avançados do continente, sobretudo a Alemanha, corressem em ajuda à Rússia revolucionária, porém atrasada, patriarcal e camponesa.

E, durante algum tempo, as coisas pareciam caminhar exatamente nesse sentido. Em 1918-1919 explode a Revolução Alemã e depois a Revolução Húngara. De fato, um ascenso revolucionário se espalha pelo continente e enche a imaginação proletária e bolchevique de sonhos e esperanças. Em 1919, em meio à guerra civil, os bolcheviques fundam a III Internacional ou Internacional Comunista, como uma forma de organizar os grupos revolucionários dispersos, sobretudo na Europa, e promover uma revolução que tirasse a Rússia do isolamento. 

A iniciativa é um sucesso. Diversos partidos revolucionários se deslocam do movimento social-democrata (II Internacional ou Internacional Socialista) e aderem à IC. Outros rompem com o anarquismo e trilham o mesmo caminho. O I Congresso da Internacional Comunista (1919) separa o joio do trigo, aprovando as condições que deveriam ser cumpridas pelos partidos comunistas para que fossem aceitos na Internacional (as assim chamadas “21 condições”): uma ruptura completa com o passado social-democrata ou anarquista e a adoção do modelo bolchevique de organização e atividade política.

O entusiasmo é grande. O poder europeu parecia ao alcance das mãos do proletariado, mas as coisas começaram a mudar em 1920. A Rússia já enfrenta três anos de guerra civil e segue isolada. Nenhuma revolução proletária foi vitoriosa. Por outro lado, começa a se consolidar no movimento comunista internacional uma forte corrente ultra-esquerdista, sectária e ultimatista, que acredita que basta repetir o “modelo russo” para se chegar ao mesmo resultado. Essa corrente, em sua maior parte oriunda do anarquismo, defende o abandono de toda tática ou etapa intermediária, tudo que não seja a luta direta pelo poder: rejeitam a participação nas eleições e parlamentos burgueses, nos sindicatos reacionários ou reformistas e negam a própria possibilidade de qualquer acordo ou unidade com forças e organizações traidoras e reformistas. Segundo os representantes dos ultra-esquerdistas, essas são táticas ultrapassadas, superadas pela experiência bolchevique e não cabe a sua aplicação em uma época revolucionária de disputa pelo poder.

Nesse cenário, Lênin parece não se contentar com a discussão geral que ocorrerá no II Congresso da IC e decide intervir no debate diretamente, com uma elaboração própria, não sujeita à necessidade de acordos e aprovação geral. É assim que surge “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”. O livro foi escrito, revisado e impresso em poucas semanas, e logo em seguida traduzido para o inglês, alemão, italiano e francês, línguas faladas pelos principais grupos ultra-esquerdistas da IC. Lênin fez questão de garantir a distribuição do livro a todos os delegados ao II Congresso com a antecedência necessária para sua leitura e estudo. Tal é a seriedade com que o líder bolchevique encarava esse debate.  

Conteúdo geral do livro

Lênin começa discutindo o significado internacional da Revolução Russa. Ao fazê-lo, nos lembra da enorme influência que a vitória soviética teve nos processos revolucionários do mundo inteiro, mas alerta que esse significado internacional não deve ser exagerado. Não se deve pensar que os traços específicos da revolução russa (sua mecânica política) irão se repetir em qualquer outro caso. A Rússia é uma formação social-econômica e política demasiado particular para que os detalhes políticos da revolução sejam reproduzidos em detalhes em outros países. Ascenso revolucionário em 1905-1907, reação czarista em 1907-1910, novo ascenso em 1910-1914, nova reação nacionalista em 1914-1917, novo ascenso revolucionário entre fevereiro e outubro de 1917 – tudo isso são formas ou etapas especificamente russas, que implicam uma forma de atuação que não pode nem deve ser copiada ao pé da letra pelos revolucionários de outras partes do mundo.

Lênin nos lembra também que o bolchevismo ficou conhecido no mundo inteiro por sua luta contra o oportunismo e a traição de direita e que isso é essencialmente correto. No entanto, o bolchevismo, ao longo de sua existência, também enfrentou o “revolucionarismo pequeno-burguês parecido com o anarquismo” e nessa luta também forjou sua organização e seus quadros. Lênin comenta que o ultra-esquerdismo é uma espécie de “castigo pelos pecados do oportunismo” e que esse ultra-esquerdismo não se resume ao terrorismo individual, mas implica também uma certa tendência na avaliação da correlação de forças entre as classes e as tarefas do proletariado:

esse partido [refere-se aos socialistas-revolucionários, H.C.], que repudiava o marxismo, obstinava-se em não querer compreender (talvez fosse mais justo dizer que não podia compreender) a necessidade de levar em conta, com estrita objetividade, as forças de classe e suas relações mútuas antes de empreender qualquer ação política.

Ou seja, aqui temos uma polêmica interessante. A maioria das organizações ultra-esquerdistas admite a existência de… organizações ultra-esquerdistas, mas acredita que essa definição não se aplica a elas mesmas. Justificam isso com uma visão parcial sobre o ultra-esquerdismo, como se esse fenômeno se reduzisse à defesa de ações individuais isoladas das massas. Mas isso não é assim. Como vemos, para Lênin, o ultra-esquerdismo é, em primeiro lugar, uma forma de encarar a correlação de forças dentro da sociedade, exagerando sempre a força do proletariado e minimizando o poder do inimigo. Daí derivam tarefas que não são compreendidas e portanto não podem ser cumpridas pelas massas, isolando assim as organizações revolucionárias e aprofundando sua marginalidade. Como resultado, quem sai fortalecido é exatamente o oportunismo e os traidores de direita, enquanto os ultra-esquerdistas aparecem como inconsistentes ou descolados da realidade.

Nos capítulos seguintes, Lênin se dedica a debater os três grandes dogmas do ultra-esquerdismo: a não-participação nos parlamentos burgueses, a não-participação nos sindicatos reacionários e a negação de todo e qualquer acordo ou compromisso com forças reformistas e burguesas.

Sindicatos

Para Lênin, a participação dos revolucionários nos sindicatos reacionários é uma obrigação, uma vez que essas organizações representam um importante avanço para as massas proletárias em comparação com a dispersão que existia anteriormente. Se bem que é verdade que os sindicatos contemporâneos pecam pelo conservadorismo e burocratização e um certo afastamento da classe trabalhadora, ainda assim, nos momentos mais agudos da luta, é a eles que as massas apelam. Os sindicatos ainda são um “ponto de encontro” dos operários quando esses se levantam para luta. Por isso, é uma obrigação dos revolucionários a participação e a disputa dessas organizações.

Parlamentos

Lênin começa por diferenciar “falência histórica” e “falência política”. Os ultra-esquerdistas justificam a não-participação nos parlamentos devido à “falência histórica” dessas organizações, ou seja, sua incapacidade intrínseca em promover reformas duradouras no marco do capitalismo. Lênin admite essa “falência histórica”, mas alerta que ela é diferente da “falência política”, ou seja, alerta que as massas, apesar de toda a falsidade e decadência dos parlamentos, ainda depositam confiança nessas instituições. Por isso é obrigatória a participação dos revolucionários também nesses organismos: 

Enquanto não tenhais força para dissolver o parlamento burguês e qualquer outra organização reacionária, vossa obrigação é atuar no seio dessas instituições, precisamente porque ainda há nelas operários embrutecidos pelo clero e pela vida nos rincões mais afastados do campo. Do contrário, correis o risco de vos converter em simples charlatães”.

Note-se que Lênin não fala apenas da obrigatoriedade de participar das eleições, mas sim da obrigatoriedade de participar do parlamento, ou seja, eleger representantes. É exatamente a presença de revolucionários no parlamento burguês que facilitará a tarefa de combater essa instituição no momento da crise revolucionária. Foi exatamente esse o caso da Rússia e que os ultra-esquerdistas esquecem e se recusam a aplicar.

Acordos e compromissos

Todo proletário conhece greves, conhece ‘compromissos’ com os odiados opressores e exploradores, depois dos quais os operários tiveram de voltar ao trabalho sem haver conseguido nada ou contentando-se com a satisfação parcial de suas reivindicações”.

Assim Lênin começa o capítulo sobre acordos e compromissos. Para ele, a negação em princípio de qualquer acordo é uma ideia infantil, fruto da imaturidade subjetiva dos partidos revolucionários. Não se trata de renegar a ideia de acordos e mediações, mas da manutenção dos princípios diante da necessidade de fechar este ou aquele acordo com um adversário ou mesmo inimigo declarado. O líder bolchevique nos relata inúmeros acordos eleitorais ou práticos realizados pelos bolcheviques: com a burguesia liberal contra o czarismo, com os mencheviques contra a burguesia liberal, com socialistas-revolucionários contra os trudoviques etc etc etc. O que caracteriza a atividade revolucionária não é a negação dos acordos, mas a realização de acordos enquadrados na estratégia socialista, ou seja, a preservação dos princípios.

O papel de “Esquerdismo…” hoje

O subtítulo dado por Lênin ao livro não poderia ser mais adequado: “doença infantil do comunismo”. Para o dirigente da revolução russa, o ultra-esquerdismo é exatamente o subproduto da imaturidade subjetiva dos partidos comunistas ou do movimento comunista em geral.

Em vários momentos do livro fala-se abertamente de “longa etapa de luta contra o capitalismo”, ou seja, Lênin parecia estar ciente de que a estabilização do capitalismo, observada a partir de 1920, provavelmente duraria muito tempo e implicaria toda uma etapa de combate marcada por formas intermediárias. O assalto geral ao poder saía do horizonte político (preparação técnica imediata) e se deslocava para o horizonte histórico (preparação estratégica). 

Essa é, exatamente, a situação que vivemos hoje. É verdade que não se pode falar em “estabilização do capitalismo”. Ao contrário, cabe abordar muito mais sua degeneração e crise aguda. Por outro lado, também é verdade que desde os anos 1970 não vemos uma revolução socialista vitoriosa, a URSS deixou de existir e os Estados operários (se se considera que eles existem) se encontram em profunda crise ou em processo de restauração capitalista. 

Essa realidade objetiva, somada à imaturidade subjetiva do proletariado e à angustiante marginalidade das organizações revolucionárias, resulta em que a principal tarefa colocada diante do movimento comunista mundial seja a mesma analisada por Lênin em 1920: romper a marginalidade, acessar as massas, entrar em contato com o movimento real dos trabalhadores. Para tanto, será necessária a aplicação a fundo da máxima “firmeza nos princípios, flexibilidade na tática”.

Um partido que se considere revolucionário deve saber transitar entre as formas legais e de ação direta, ofensiva e defensiva, propaganda e agitação, avanço e recuo organizado. A negação das formas intermediárias, a ideia de que vivemos uma permanente “situação pré-revolucionária”, de que basta denunciar o parlamento, as burocracias e os reformistas para que os explorados e oprimidos venham para o nosso lado – tudo isso só pode afastar os socialistas do movimento real dos trabalhadores e retardar seu desenvolvimento enquanto organização. Como nos lembra Lênin em “Esquerdismo…”, o mérito marxista se comprova não somente durante as revoluções, mas também nas situações não-revolucionárias, quando a paciência histórica, a perseverança e a confiança na estratégia são colocadas à prova.

o mérito marxista se comprova não somente durante as revoluções, mas também nas situações não-revolucionárias, quando a paciência histórica, a perseverança e a confiança na estratégia são colocadas à prova.

Por fim, Lênin nos informa que nenhuma vanguarda pode vencer sem as grandes massas e que não se trata de alguns milhares e nem mesmo de algumas dezenas de milhares, mas de milhões e até dezenas de milhões de homens e mulheres que devem ser colocados em ação. Por mais importantes e eficientes que sejam, a propaganda e a agitação partidárias não substituem a experiência própria das massas:

A vanguarda proletária está ideologicamente conquistada. Isto é o principal. Sem isto não é possível dar sequer o primeiro passo para a vitória. Mas daí para o triunfo ainda falta uma grande distância a percorrer. Apenas com a vanguarda é impossível triunfar. Lançar a vanguarda sozinha à batalha decisiva, quando toda a classe, quando as grandes massas ainda não adotaram uma posição de apoio direto a essa vanguarda ou, pelo menos, de neutralidade simpática, e não são totalmente incapazes de apoiar o adversário, seria não só uma estupidez, como um crime. E para que realmente toda a classe, para que realmente as grandes massas dos trabalhadores e dos oprimidos pelo capital cheguem a ocupar essa posição, a propaganda e a agitação, por si, são insuficientes. Para isso, necessita-se da própria experiência política das massas”.

Como se vê, para Lênin trata-se da conquista das massas, para a qual não há atalhos nem caminhos fáceis ou retilíneos, mas somente a dura estrada da experiência prática. Sobre isso, as organizações de esquerda deveriam refletir.