Comecemos por entender o que significa ser verdadeiramente marxista. Não podemos fazer um culto, como se fez de Mao ou de Stalin. Ser trotskista hoje não significa estar de acordo com tudo aquilo que escreveu ou o que disse Trotsky, mas sim saber fazer-lhe críticas ou superá-lo, como a Marx, a Engels ou Lênin, porque o marxismo pretende ser científico e a ciência ensina que não há verdades absolutas. Em primeiro lugar, ser trotskista é ser crítico, inclusive ao próprio trotskismo. (1)
Nahuel Moreno
No dia 3 de setembro de 1938, há oitenta e cinco anos, foi fundada a Quarta Internacional, nos arredores de Paris. O brasileiro Mario Pedrosa esteve presente, quando da aprovação do Programa de Transição. Um programa não é somente uma análise da situação econômica e social, embora deva estar fundamentado em uma síntese de quais são suas tendências. Não é uma obra de investigação histórica, embora deva estar baseado em uma caracterização do período histórico. Não é uma lista de palavras de ordem, embora deva fazer sínteses na forma de consignas. Um programa é um guia para a ação, O mundo gira e o programa deve ser atualizado.
Mas há pelo menos meio século se abriu um debate, nas organizações da tradição trotskista, sobre a vigência do programa de transição. Devemos defender a letra do texto ou o método com que ele foi elaborado? São duas respostas diferentes e, a rigor, incompatíveis. A insistência na defesa de dogmas condena o trotskismo a uma marginalidade política e social incontornável.
O primeiro desafio da atualização do programa é sobre o que devemos compreender quando lemos hoje, no texto de 1938, a caracterização de que, sob o capitalismo contemporâneo, as forças produtivas teriam deixado de crescer, pelo menos, desde a Primeira Guerra Mundial e o triunfo da revolução russa (2). A defesa rígida de que as forças produtivas não cresceram, nos últimos oitenta anos é dogmatismo. A produtividade do trabalho nos últimos cem anos se multiplicou várias vezes. Cresceram, ainda que impulsionando forças destrutivas colossais e incontroláveis. A tese do bloqueio absoluto tem como consequência uma visão da decadência como uma longa e ininterrupta estagnação que já teria cem anos, o que não é somente rigidez teórica, é insensatez. Se compararmos o mundo de hoje com o de cem anos atrás a tese é absurda.
O segundo desafio é sobre o que devemos compreender sobre a caracterização de que a crise da humanidade pode ser reduzida, essencialmente, à crise de direção do proletariado (3). A percepção de uma invariável confiança e ânimo de luta entre os trabalhadores é autoengano, uma fantasia imaginária, uma forma de pensamento mágico. Esta interpretação reduz a análise dos impasses da luta pelo socialismo à vulgaridade de uma teoria da traição, portanto, uma mentalidade conspiratória. Não porque os reformistas sejam inocentes. Não porque não existam traidores. Foram, evidentemente, responsáveis pela desmoralização dos batalhões proletários mais combativos em processos decisivos da luta de classes, em diferentes países, nos últimos cem anos. Mas há uma complicada dialética na relação entre os explorados e oprimidos com suas organizações.
A ideia de crise de direção sublinha a imaturidade dos trabalhadores como sujeito da luta anticapitalista. Esta imaturidade tem duas dimensões: objetiva e subjetiva. São elas que explicam por que, apesar de tantas revoluções terem acontecido, não há nenhum país em transição ao socialismo, e a ordem imperialista ainda está intacta. Ou seja, ilumina a centralidade da luta pela consciência de classe.
A leitura rígida e dogmática do caráter revolucionário da época, desconhecendo as variáveis tempo e espaço, as desigualdades determinadas pela história e geografia, desprezando a realidade concreta da luta de classes e, sobretudo, as variações das relações de força entre as classes na escala das situações, foi uma das chaves da teoria da “iminência” da revolução.
A teoria da “iminência” da revolução é uma das variações da teoria objetivista do colapso do capitalismo. O objetivismo é uma ilusão de ótica. O objetivismo é uma análise unilateral da realidade que diminui a centralidade dos fatores subjetivos na luta de classes. A dimensão subjetiva da luta de classes é aquela que remete ao nível de consciência e disposição de luta dos trabalhadores e seus aliados sociais.
O terceiro desafio é sobre o que devemos compreender sobre a premissa de que, na nossa época, o capitalismo é incapaz de ceder reformas, a não ser de forma efêmera e, portanto, é necessário superar a oposição entre programa possibilista e maximalista. O programa de transição defende que a luta por reivindicações mínimas e democráticas pode abrir, potencialmente, uma dinâmica de mobilizações anticapitalistas (4).
Estas ideias poderosas mantêm atualidade? Em que sentido? A resposta à primeira pergunta é mais simples. Sim, estas ideias foram confirmadas pelo laboratório da história. Vivemos ainda em uma época histórica de guerras e revoluções. A permanência da ordem imperialista mundial é uma ameaça à sobrevivência da humanidade. O programa marxista é a revolução socialista mundial. Mas há um paradoxo incontornável. Desde o Vietnam, há cinquenta anos, não triunfou nenhuma revolução anticapitalista.
Estas ideias não podem, portanto, ser compreendidas como absolutos. Reafirmar que a tarefa história da época é a luta pelo socialismo não é o mesmo que dizer que estaríamos em uma situação revolucionária mundial. São níveis de abstração na análise da realidade, completamente, diferentes. A percepção de uma crônica situação revolucionária mundial é uma ilusão objetivista, determinista, fatalista. A crise do capitalismo é estrutural, mas isso não é o bastante. A avaliação da relação social de forças é uma dimensão inescapável de análise.
A social democracia e o estalinismo são aparelhos adaptados à ordem. Mas reafirmar que há uma crise de direção do proletariado não é o mesmo que dizer que, não fosse o papel das organizações reformistas, já estaria madura entre os trabalhadores uma disposição revolucionária de luta pelo poder. Isso é uma perigosa idealização dos níveis médios de consciência da classe trabalhadora, um excesso obreirista.
O sofrimento físico e mental é uma escola de aprendizado, mas não garante que milhões retirem da experiência material da vida conclusões solidárias. O socialismo não é mais o vocabulário político da maioria dos trabalhadores. É terrível, mas é assim.
O drama histórico da etapa aberta pela restauração capitalista é muito profundo. Nos últimos dez anos ficou claro, em inúmeros países e de forma devastadora, que a avalanche de crises econômicas e sociais podem arrastar parcelas das camadas populares que rompem com os reformismos para o neofascismo, não na direção da esquerda anticapitalista.
O capitalismo não cumpre mais qualquer papel progressivo. Ao contrário, seu destino é uma tendência destrutiva: aumento da desigualdade social, catástrofe climática, perigo de guerra mundial e ascensão de correntes neofascistas. Mas reafirmar a rigidez dos limites históricos do capitalismo em sua época de declínio não é o mesmo que dizer que as condições para a luta socialista são mais favoráveis que no passado.
Não são. Foram acumuladas derrotas históricas desde a restauração capitalista. Avaliações irrealistas não são úteis para manter viva a paixão revolucionária. A empolgação militante deve se alimentar da lucidez de que a luta é necessária, não importa quanto difíceis sejam as circunstâncias, porque sempre há esperança.
Tampouco autoriza a conclusão de que, em circunstâncias excepcionais, diante do perigo de que venham a se abrir situações revolucionárias, a burguesia não possa aceitar concessões emergenciais e temporárias, sacrificando anéis para salvar os dedos, como no passado.
Acontece que o mundo mudou. O capitalismo foi restaurado à escala internacional e a URSS já não existe. Aconteceu uma derrota histórica e isso teve consequências. A disposição de atualizar o Programa de Transição não diminui o nosso compromisso com a luta pela revolução, somente reafirma nosso engajamento com o marxismo. Essa tarefa já foi encarada, há quarenta anos, pela geração anterior de trotskistas, só que em condições favoráveis, depois da derrota do imperialismo norte-americano no Vietnam (5). Nossa tarefa é mais amarga, porque a evolução da situação mundial, desde 1989/91 foi desfavorável. Não prevaleceram vitórias da revolução mundial, mas o contrário.
A caracterização principal do programa de transição é que, sob a ordem imperialista mundial, entramos em uma época de decadência histórica do sistema. Ou seja, a conclusão de que as relações sociais capitalistas se transformaram em ameaça para a civilização. Se considerada no nível de abstração muito elevado de uma época, ou seja, em uma dimensão secular indefinida, e em escala internacional, esta caracterização permanece fundamental, e é um dos pilares do marxismo revolucionário.
Mas uma época é um longo intervalo histórico, portanto, na dimensão secular. Ao longo da mesma época devemos considerar a alternância de várias etapas. As etapas estão determinadas pela relação de forças entre revolução e contrarrevolução, em escala mundial. Em cada etapa da luta de classes há uma direcionalidade, um signo, uma dinâmica. Vitórias favorecem novas vitórias. Derrotas facilitam derrotas. A revolução mundial tem a morfologia de ondas de choque, o efeito dominó. Não obstante, durante uma etapa, em cada país, embora a tendência seja a pressão do contexto internacional, podem prevalecer condições peculiares da luta de classes em cada nação. Não há sincronicidade direta.
Estamos diante de tendências históricas, e não diante de prognósticos catastrofistas. Qualquer outra conclusão é fatalismo apocalíptico, ou uma forma de milenarismo socialista. Lenin tinha alertado contra este perigo quando escreveu o Imperialismo, fase superior do capitalismo (6).
Quando Leon Trotsky retomou este conceito da III Internacional na fundação da Quarta não estava senão recuperando do esquecimento uma localização estratégica. O que significa concluir que, quando a revolução mundial avança, os limites históricos do capitalismo se estreitam, mas, também, o inverso. Quando a contrarrevolução avança, o capitalismo alonga seus prazos de sobrevivência. A caracterização de que estamos em uma época de declínio histórico do capitalismo não descarta a possibilidade de que operam contratendências em escalas de tempo mais breves. E não invalida que na escala das etapas, situações e conjunturas ocorram inversões transitórias.
Atualizar o programa não questiona a estratégia revolucionária. Ao contrário, eleva a nossa determinação de caminhar de olhos bem abertos.
A angústia é indivisível da lucidez.
A atualização programática nos protege de nós mesmos.
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