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BRASIL

Pele alva e pele alvo: a escalada de violência do estado, a punidade seletiva e a resposta antirracista necessária

Marina Amaral, de Salvador e da Coordenação Nacional do Afronte
Afronte

Nesta quinta-feira (24) ocorrerão atos por dezenas de cidades do Brasil para denunciar a violência policial e o racismo estrutural contra o povo negro. As manifestações estão sendo convocadas pelo movimento negro, com participação também de outros movimentos sociais e de juventude. O Afronte assinou a convocatória e se somará aos atos antirracistas, que gritam por justiça e por um novo modelo de segurança pública!

A escalada de violência do estado e a punidade seletiva

Na última sexta feira (18) ocorreu em Salvador, a cidade mais negra fora do continente africano, o pontapé dessas manifestações antirracistas no mês de agosto, contra a violência do estado. Aliado a essa denúncia já divulgada previamente, na madrugada anterior, fomos surpreendidos com o assassinato de mãe Bernadete, uma Yalorixá, lidér do Quilombo de Pitanga dos Palmares, que foi executada dentro de sua casa. A combinação das duas pautas reflete o aprofundamento da violência do estado, seja através do braço armado da polícia, seja pela normalização de crimes contra lideranças quilombolas, indígenas, camponesas e de direitos humanos. 

É simbólico que o primeiro ato do movimento negro nesse mês aconteça em Salvador. Não apenas pela demografia racial (1) da capital baiana, mas sobretudo, pelo que aponta o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2). Segundo a pesquisa, a cada 5 pessoas mortas pela polícia no Brasil, 1 é na Bahia, ultrapassando o Rio de Janeiro, e se tornando o estado com o maior quantitativo de pessoas mortas por policiais, sendo responsável por 22,77% da letalidade policial em 2023, e tendo 11 das 20 cidades mais violentas do Brasil. O Rio de Janeiro, segue na segunda colocação, mas liderou no ano de 2022, sendo responsável por quase 30% das mortes provocadas por policiais, tendo as chacinas quase como uma marca registrada do estado. Os dados desse último anuário, também apontam que 76% dos mortos em decorrência de intervenção policial no Brasil são jovens entre 11 e 29 anos, tendo um aumento considerável de crianças assassinadas pela PM.

Aparentemente, a polícia de Jerônimo Rodrigues (PT) e anteriormente Rui Costa (PT), reproduz a mesma cartilha de Cláudio Castro (PL) e anteriormente de Witzel (PSC) no Rio de Janeiro, com uma lógica militarizada de guerra, cujo seus inimigos tem sido a população negra e periférica. Esses dois exemplos, na verdade, traduzem a profunda crise do modelo de segurança pública no país, que tem cumprido papéis inversos a sua função de proteger e controlar a violência. Ao contrário, tem sido parte da onda de violência que assola o Brasil, como ocorreu recentemente na Chacina do Guarujá em SP.

Neste sentido, fica a pergunta: o Brasil é mesmo o país da impunidade? Talvez para olhares pouco atentos. Pois se observarmos os casos citados acima, combinados a composição dos presos no Brasil, chegamos a conclusão objetiva que na verdade somos o país da punidade seletiva. Não há uma responsabilização justa dos policiais que cometem esses crimes hediondos. Ainda que sejam classe trabalhadora e uma grande parcela de negros, há, uma articulação político-militar-jurídica-midiática para não responsabilizar esses agentes do estado. De forma ainda mais latente, não há também, uma criminalização da elite branca desse país que comete todos os tipos de infrações a direitos humanos e a própria legislação, mas que através do pacto da burguesia e da branquitude, seguem sempre impunes. Todos esses elementos, combinados como o racismo estrutural, tem aumentado uma onda de violência contra o povo negro, seja pela bala da polícia ou pelo encarceramento do estado. Logo, o que observamos é que no Brasil ser racista e ser criminoso é permitido. O que não é permitido é ser negro.

Pelo fim da guerra às drogas

Toda essa onda de violência, é, muitas vezes, justificada pelo que chamamos de guerra às drogas. Claro que não é possível negar que há uma articulação grande do tráfico de drogas, de facções, que também são responsáveis por uma série de violências. Mas, a legislação brasileira de drogas, combinada com a atuação da PM, tem empilhado corpos negros, sejam nas cadeias ou nos cemitérios, com responsabilização do estado.

A lei de drogas de 2006 que, em tese, deveria despenalizar o usuário, contribuiu para um aumento da criminalização, do encarceramento e da seletividade penal. Ao não determinar, por exemplo, a quantidade para uso pessoal, a lei não estabelece critérios objetivos e deixa a cargo de decisões subjetivas, como aponta o § 1º do Art. 28, de que serão consideradas as condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e os antecedentes do autuado. Isso gera, em um país racista e elitista como o Brasil, uma enorme distorção entre quem é considerado usuário e traficante.

Para termos uma noção do quão retrógrada é essa lei e a enorme distorção que gera, podemos fazer uma breve comparação com a legislação espanhola. Um estudo publicado pelo International Drug Policy Consortium (3), aponta que se o critério espanhol fosse aplicado no Brasil, 69% dos presos por tráfico de maconha seriam considerados usuários e consequentemente não estariam presos. Além de uma lógica extremamente punitivista e da distorção nas punições, a atual legislação causa um inchaço no sistema prisional, aumentando as péssimas e precárias condições sociais e de saúde para as pessoas em privação de liberdade.

Essa semana, será votado pelo STF a descriminalização do porte de maconha. O ministro Alexandre de Moraes, propôs na última sessão, o limite de 60 gramas para o porte ser considerado para uso pessoal. Um cálculo do IPEA (4) aponta que isso impactaria quase metade dos processos de tráfico no país, visto que 43% das apreensões de maconha registradas como tráfico eram de quantidade igual ou inferior a 60 gramas. Nesse sentido, a descriminalização proposta é um primeiro passo importante para acabarmos com a guerra às drogas no Brasil.

A resposta antirracista necessária

Acredito ser um consenso entre a esquerda brasileira que ao derrotar Bolsonaro e eleger Lula, estamos em condições muito melhores para exigir um programa popular e avançar em pautas tão fundamentais, como é o tema da segurança pública, que precisa ser uma prioridade do poder executivo, legislativo e judiciário. É urgente repensar um novo modelo de segurança pública aliada a uma nova política sobre drogas. 

Eduardo Arruda

Nesta quinta-feira (24) ocuparemos às ruas de todo Brasil para exigir medidas do novo governo para combater o genocídio do povo negro. Que precisam passam centralmente por:

1. Desmilitarização da polícia militar – a lógica militar, das forças armadas, é a de combater um inimigo externo. Quando isso se traduz para a polícia militar, o inimigo a ser combatido tem sido o interno, sobretudo nas periferias. Não queremos uma polícia cuja lógica seja a de guerra, e sim uma polícia que cumpra sua função de garantir a segurança e os direitos humanos, baseado em inteligência e não no permanente confronto armado;

2. Obrigatoriedade das câmeras nas fardas de policiais e agentes de segurança pública, que visam tanto proteger a população de qualquer abuso de autoridade, quanto proteger o próprio policial; 

3. Legalização das drogas – a descriminalização da maconha é o primeiro passo, mas defendemos a legalização de todas as drogas aliada a uma política de redução de danos, baseada na ciência e com o fortalecimento do SUS. Só assim será possível combater o tráfico e a guerra às drogas que tem matado e encarcerado nossa juventude;

4. Proibição de operações policiais reativas, com caráter de vingança e operações invasivas nas comunidades e periferias;

5. Federalização de todos os casos nos estados que sejam caracterizados como violência policial, sejam chacinas ou execuções individuais;

6. Justiça e reparação para familiares e vítimas do estado, a partir de prioridade nas investigações e indenizações pelo governo federal;

Convocamos toda a sociedade a se somar nessa luta por justiça e pelas nossas vidas. Dia 24 o grito antirracista vai ecoar nas ruas!

Notas

1 Termo criado pela autora em seu TCC sobre “Racismo ambiental e espoliação urbana” para referir-se a informações racializadas sobre determinada população e seu território.

Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/

3 Disponível em: https://idpc.net/

4 Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/5330-naturezaqtdadedrogas.pdf