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BRASIL

Fascismo e conciliação de classes

Uma polêmica com Jones Manoel e o ultraesquerdismo

Gabriel Casoni, da Coordenação Nacional da Resistência-PSOL
Reprodução/YouTube

A ascensão da extrema direita nos últimos anos, no Brasil e em todo mundo, coloca, em primeiro plano, o debate sobre como caracterizar, enfrentar e derrotar o neofascismo. Não deve haver dúvida — sobretudo a nós, da esquerda brasileira, que vivemos a tragédia do governo Bolsonaro, — de que a extrema direita representa a face política mais bárbara, brutal e perigosa da atual decadência do sistema capitalista. Lutar para vencer o fascismo dos nossos tempos é a tarefa histórica imediata mais importante. E a luta antifascista em curso é inseparável da batalha estratégica pelo socialismo e a revolução.

Nessa discussão fundamental a respeito da luta contra a extrema direita, Jones Manoel, influenciador digital e dirigente do PCB-RR, acusou Valério Arcary e a sua organização política, a Resistência-PSOL, de supostamente defender a tese segundo a qual não seria possível combater o fascismo brasileiro e as políticas neoliberais ao mesmo tempo. A luta, para Arcary, seria apenas contra a extrema direita, de modo que a burguesia e os governos de frente ampla deveriam ser poupados da crítica pela esquerda.

É um completo disparate afirmar que Valério e a Resistência não querem combater o neoliberalismo, a burguesia e a conciliação de classes em nome da luta contra o fascismo. Trata-se, em bom português, de uma mentira.

Tristemente, Jones começa pelo pior caminho, o da falsificação de posições. É natural, entre as organizações de esquerda, haver discordâncias de análises e políticas. A crítica feita com método saudável, ainda que em tom duro, é construtiva. Mas não é honesto atribuir a interlocutores com os quais se polemiza posições que eles não as têm. É um completo disparate afirmar que Valério e a Resistência não querem combater o neoliberalismo, a burguesia e a conciliação de classes em nome da luta contra o fascismo. Trata-se, em bom português, de uma mentira. Jones, como é muito inteligente, não precisaria da falsificação para encarar uma polêmica política e teórica séria. Mas talvez seja difícil, para ele e sua organização, sustentar a discussão em base às posições reais em debate. Se não, vejamos.

O que realmente defendem a Resistência-PSOL e Valério Arcary? 

Em primeiro lugar, uma ideia muito simples: a de que a extrema direita é o inimigo principal a ser enfrentado no atual momento histórico. Isso é assim porque o neofascismo adquiriu força de massas, se tornando uma ameaça real no Brasil e em vários países do mundo. O programa do neofascismo pode ser resumido em duas palavras: barbárie e ditadura. O seu triunfo estratégico implicaria o aniquilamento da esquerda, dos movimentos sociais e dos sindicatos. A essa altura, quando a extrema direita avança até mesmo na Argentina, com Javier Milei, não compreender o significado e o perigo real do neofascismo é cegueira política.

A essa altura, quando a extrema direita avança até mesmo na Argentina, com Javier Milei, não compreender o significado e o perigo real do neofascismo é cegueira política.

Assim como foi com o fascismo histórico, na década de 30 do século XX, o neofascismo cresce em meio a crise do capitalismo, do imperialismo e da democracia burguesa em nível global. Com características particulares em cada país, a extrema direita atua em todo lugar para direcionar o ressentimento social e o desencanto político existentes em amplas parcelas das massas. Não contra a burguesia e o sistema capitalista decadente, mas sim contra os pobres e os direitos sociais; contra os trabalhadores e os direitos trabalhistas; contra as mulheres e as pautas feministas; contra a população negra e as bandeiras antirracistas; contra as LGBTQIs e suas demandas por direitos; contra os povos indígenas e a luta por suas terras.

O fascismo coloca a classe média contra a classe trabalhadora e os mais pobres. E divide a classe trabalhadora com a misoginia, o racismo, a LGBTfobia, a xenofobia, o conservadorismo religioso e o negacionismo ambiental. Para alavancar a  lucratividade do capital e ganhar aderência de setores da grande burguesia, a extrema direita promete apoio a medidas selvagens de exploração e espoliação, sempre asseguradas pela mais dura repressão do aparelho policial. O neofascismo mira também a democracia burguesa. Afinal, o projeto do neofascismo passa pelo estabelecimento de regimes autoritários e violentos, o que pressupõe o estrangulamento do regime liberal-democrático.

Ao contrário do que diz Jones Manoel, a Resistência e Valério não consideram o neofascismo como o único inimigo. Mas, sim, como o principal e o mais perigoso nessa quadra histórica.

Ao contrário do que diz Jones Manoel, a Resistência e Valério não consideram o neofascismo como o único inimigo. Mas, sim, como o principal e o mais perigoso nessa quadra histórica. Concordamos com a afirmação de que o neoliberalismo alimenta a extrema direita. Assim como há consonância com a avaliação de que os governos de conciliação de classes, sempre que frustram as expectativas populares de mudanças, em razão dos estreitos limites permitidos pelos pactos com a burguesia, abrem caminho ao avanço do fascismo e à sua própria derrocada, seja por golpe ou revés nas eleições. A história da luta de classes, há pelo menos um século, vem confirmando essa caracterização. Para lograr vitória substancial contra a extrema direita e a classe dominante, é preciso luta de massas e organização independente dos explorados e oprimidos.

Todas essas afirmações gerais são de ordem estratégica, por assim dizer. Têm imenso valor, porque servem como guias para a política marxista revolucionária. Mas a estratégia sem táticas concretas se torna uma fórmula inócua, apenas propagandística. E a tática, para ser eficaz na luta política, precisa levar em conta a relação política e social de forças, o nível médio de consciência da classe trabalhadora e as necessidades imediatas das massas exploradas e oprimidas.

No terreno da política concreta, observa-se que a linha defendida por Jones Manoel e seu grupo, no passado recente e no presente, demonstrou-se — e demonstra-se — equivocada tanto para a luta contra o bolsonarismo, como para o combate à conciliação de classes. Vamos aos fatos.

Um balanço necessário com o ultraesquerdismo 

Ao longo dos últimos anos, a Resistência-PSOL defendeu insistentemente a tática da Frente Única (FU) das organizações de esquerda e dos movimentos sociais para enfrentar o governo Bolsonaro e seus ataques. Sem pretender apagar as importantes diferenças programáticas e estratégicas presentes na esquerda, argumentávamos que era necessário e prioritário construir a unidade para lutar contra o inimigo comum que ameaçava gravemente a todos, dos mais revolucionários aos mais conciliadores.

Os atos unificados pelo Fora Bolsonaro, que levaram dezenas de milhares às ruas em 2021, foram fruto de uma frente única dos movimentos e dos partidos de esquerda. Curiosamente, o agrupamento de Jones Manoel, o recém criado PCB-RR, em documento público recente, critica a participação do PCB na articulação unitária da Campanha Fora Bolsonaro e até mesmo sua participação na Frente Povo Sem Medo, que reúne parte das entidades mais combativas do país, como o MTST. Assim, Jones acaba por condenar, na prática, a Frente Única que permitiu a existência de grandes atos de rua contra o governo genocida.

Numa evidente demonstração de ultraesquerdismo, não vê que a unidade para lutar contra o inimigo central, o fascismo, não significa esconder as discordâncias táticas, políticas, ideológicas e programáticas presentes na esquerda. Por exemplo, a Resistência foi entusiasta da campanha unitária pelo Fora Bolsonaro, mas criticou publicamente o fato de Lula não convocar os atos e não ir às manifestações, o que diminuiu o potencial das mobilizações de rua.

Outra expressão da linha esquerdista ocorreu nas eleições de 2022. Já no início do ano passado, era previsível que a única candidatura com condições de derrotar Bolsonaro nas urnas seria a de Lula. Com a blindagem do Centrão no Congresso, era certo que o desfecho do governo de extrema direita se daria nas eleições. Também era previsível que Lula buscaria ampliar ao máximo suas alianças, tanto que atraiu Alckmin para ser o vice em sua chapa.

A Resistência defendeu que o PSOL, diante do perigo de reeleição de Bolsonaro, deveria abrir mão da sua candidatura própria para apoiar Lula eleitoralmente desde o 1° turno. Por uma pequena maioria, o PSOL aprovou essa linha e pôde, assim, ter um acerto tático histórico. Ao mesmo tempo, a Resistência se opôs publicamente à aliança com Alckmin e outros setores de direita, deixando nítida sua linha de independência de classe. O PSOL apresentou seus eixos programáticos próprios nas eleições, assim como os candidatos da Resistência. Outra vez, se demonstrou que é possível combinar a flexibilidade tática para lutar contra o fascismo com a preservação de uma política de classe, sem capitulação política e programática.

Jones Manoel e o PCB-RR, por sua vez, sustentam a correção do lançamento da candidatura própria do PCB numa eleição em que por muito por pouco o líder fascista não ganhou e não deu um golpe de Estado. Pode ser que a linha tática de lançar uma candidatura presidencial, eleitoralmente muito pequena, tenha servido para fazer propaganda do próprio partido. Contudo, certamente, passou longe de ser útil à classe trabalhadora na luta política mais difícil e dramática que vivemos no Brasil no último período histórico. Ao invés de estar com a candidatura de Lula para derrotar Bolsonaro — e dentro dela apresentar seu programa, linha política e críticas às alianças com Alckmin e a direita — o PCB preferiu ficar distante da grande batalha política que dividiu o país ao meio. Mas fica pior. Porque Jones e seu agrupamento também se posicionam veementemente contra as alianças eleitorais que o PCB fez no passado até mesmo com o PSOL!

Desse modo, a tática da candidatura própria, uma opção válida, se torna uma estratégia permanente, um dogma. Já a tática de conformar alianças eleitorais com outros partidos de esquerda é vista, em todas circunstâncias, como expressão de oportunismo e capitulação. Outra vez, o esquerdismo salta aos olhos.

No que se refere à política para o atual governo Lula, o quadro não muda muito de figura. A Resistência se posicionou contra a entrada do PSOL no governo de frente ampla, para que o partido mantivesse sua independência. Ao mesmo tempo, foi terminantemente contra a adoção de uma linha sectária perante o novo governo, que mal tinha completado uma semana e sofreu uma tentativa de golpe. Por compreender que a extrema direita segue com enorme força política e social no país, embora tenha sido derrotada eleitoralmente na disputa presidencial, nos colocamos contra o PSOL se apresentar como oposição de esquerda, o que confundiria o partido, aos olhos da classe trabalhadora, com a oposição bolsonarista.

A Resistência considera que o PSOL, sem ocupar cargos no executivo, deve defender o governo Lula dos ataques da extrema direita; apoiar as medidas progressivas sempre exigindo um passo além; criticar as políticas regressivas, como foi no caso do Arcabouço Fiscal; e manter um perfil político e programático próprio.

A Resistência considera que o PSOL, sem ocupar cargos no executivo, deve defender o governo Lula dos ataques da extrema direita; apoiar as medidas progressivas sempre exigindo um passo além; criticar as políticas regressivas, como foi no caso do Arcabouço Fiscal; e manter um perfil político e programático próprio. Argumentamos que o pacto com o Centrão e com setores do grande capital vai comprometer a capacidade do governo de cumprir suas promessas eleitorais para com o povo trabalhador. Alertamos que a opção por fazer um governo a frio, pela governabilidade conservadora, sem construir mobilização social de massas por um programa de mudanças estruturais, é um perigo ainda maior em tempos de neofascismo com influência de massas. Afirmamos também que a esquerda precisa apostar prioritariamente na construção da organização e das lutas sociais, em frente única, para vencer a extrema direita e arrancar conquistas. O eixo que ordena nossa linha política para o governo são exigências em torno das demandas mais sentidas pelo povo trabalhador e os setores oprimidos. Desse modo, buscamos articular flexibilidade tática para o diálogo com amplos setores das massa e da vanguarda, que depositam esperanças no governo de conciliação de Lula, com a linha estratégica baseada na independência de classe.

Jones Manoel e o PCB-RR, por seu turno, centram fogo nas denúncias do governo Lula e buscam se apresentar como oposição de esquerda. Tal opção tática, feita num momento em que a extrema direita ainda tem muita força e que Lula, por sua vez, detém alta popularidade junto à parcela do povo que o elegeu, acabar por ser prejudicial tanto para a luta contra o bolsonarismo, como para a crítica à conciliação de classes. Essa postura sectária, centrada nas denúncias, afasta uma parcela importante de trabalhadores e da juventude que poderia abrir seus ouvidos às criticas necessárias ao governo, se elas fossem feitas de outra forma. Por outro lado, acaba facilitando a agitação dos setores do PT que defendem a frente amplíssima, até mesmo com o Centrão, de que qualquer crítica ao governo é fazer o jogo do bolsonarismo. Além da linha geral sectária perante o governo, parecem desconsiderar a necessidade da frente da única para lutar contra a extrema direita e pelas reivindicações concretas da classe trabalhadora e das camadas oprimidas.

A política geral de Jones Manoel e do PCB-RR sugere a escolha pela oposição generalizada às táticas unitárias para enfrentar os inimigos comuns, a começar pelo bolsonarismo. Preferem a autoproclamação do próprio grupo. Isso nada tem a ver com o leninismo. Se Jones insiste na linha política clássica do ultraesquerdismo, poderia ao menos abrir mão do método da falsificação no debate de diferenças com Valério Arcary e a Resistência.