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TEORIA

Pensando um pouco sobre o legado de Leon Trótski

Henrique Canary, da redação

Leon Trótski, nascido Liév Davídovitch Bronstein em 25 de outubro (07 de novembro, pelo novo calendário) de 1879 no vilarejo de Ianóvka, no sul da Ucrânia, foi, sem dúvida nenhuma, uma das figuras mais importantes do século 20: marxista revolucionário e militante clandestino desde os 18 anos, membro cooptado à redação do Iskra (“A Centelha”, órgão central do Partido Operário Social-Democrata Russo) em 1902, presidente do Soviete de São Petersburgo durante a Revolução de 1905 (o chamado “Ensaio Geral”), presidente do Soviete de Petrogrado (a cidade mudara de nome em 1914) em 1917, presidente do Comitê Militar Revolucionário (órgão que comandou os operativos para a tomada do poder pelos bolcheviques) em outubro de 1917, comissário do povo (equivalente a ministro) para Assuntos Estrangeiros da jovem república soviética, fundador e organizador do Exército Vermelho, presidente do Conselho Militar Revolucionário (espécie de Comando Maior do Exército) entre 1918 e 1925, comissário do povo para Assuntos Militares e Navais (espécie de ministro da Defesa) entre 1918 e 1925, comissário do povo para a Vias de Comunicação (espécie de ministro dos Transportes) em 1920, membro do Comitê Central do Partido Bolchevique entre 1917 e 1927, membro do Birô Político do CC bolchevique entre 1919 e 1926, membro do Comitê Executivo da Internacional Comunista entre 1919 e 1927, líder da Oposição de Esquerda a partir de 1923, fundador da IV Internacional em 1938. Perseguido por Stálin por se opor ao curso burocratizante do partido e do Estado, Trótski foi expulso de todos os seus cargos em 1927, exilado em Alma-Ata (Cazaquistão) no mesmo ano, expulso da União Soviética em 1929, teve sua cidadania soviética cassada em 1932, passando pelos exílios na Turquia, França, Noruega e México e foi finalmente assassinado por um agente stalinista infiltrado em seu círculo próximo em 1940. Somente a lista de posições decisivas ocupadas por este revolucionário incansável é o suficiente para desfazer toda a mitologia stalinista, que tentou apagar sua imagem de livros e documentos. O nome de Trótski está para sempre gravado na história da luta socialista do século 20. Com sua atividade, Trótski deu origem a um movimento minoritário no interior do comunismo internacional, mas que buscava manter vivo o legado da Revolução Russa e recuperar o caráter revolucionário do Estado soviético, ao mesmo tempo em que lutava contra a restauração capitalista promovida pela burocracia dirigente.

Mas Trótski não era apenas um prático. Era também um pensador profícuo. Excelente escritor na forma, mas também em conteúdo, “A Pena”, como era chamado em sua juventude devido ao seu dom literário, foi responsável por importantes contribuições teóricas ao marxismo: a Teoria da Revolução Permanente, formulada na cadeia quando o autor tinha apenas 26 anos, a Teoria do Desenvolvimento Desigual e Combinado, que explica os giros e reviravoltas na história de países coloniais e semicoloniais e fornece as chaves para a sua libertação. Trótski esteve no centro da formulação e redação de importantes documentos da III Internacional, como as Teses sobre o Parlamentarismo (1920) e as Teses sobre a Unidade da Frente Proletária (Frente Única), de 1922. Entre uma e outra inspeção do fronte durante a Guerra Civil, sentava-se em seu vagão blindado e escrevia sobre costumes, moral, literatura, arte, filosofia, linguagem, psicanálise, libertação feminina e, é claro, sobre os dilemas do movimento comunista internacional. Iniciado o processo de burocratização do partido e do Estado, Trótski não apenas lutou contra ele pela via política, mas inclusive formulou o problema teoricamente, o que lhe permitiu chegar a conceitos como o de revolução política e Estado operário burocraticamente degenerado, tópicos chaves em sua visão mais geral sobre a evolução do Estado e do partido sob o socialismo.

Trótski também cometeu erros. Afastou-se de Lênin em 1903 por razões insustentáveis e se deixou levar pela dinâmica fracional que predominava no interior do POSDR, executando fortes ataques contra o líder bolchevique, que, no entanto, eram devolvidos na mesma moeda; durante as negociações da paz de Brest-Litovski, em 1918, defendeu uma posição centrista, conhecida como “nem guerra, nem paz”, que acabou prevalecendo e provocando enormes danos à integridade territorial russa; na discussão sindical de 1921, entusiasmou-se com os métodos organizativos aplicados no Exército Vermelho e defendeu a militarização do trabalho e a incorporação dos sindicatos à estrutura de Estado, no que foi fortemente combatido por Lênin; também em 1921, defendeu, já junto com Lênin, a proibição das frações dentro do partido bolchevique, expediente que foi depois largamente utilizado pelo stalinismo para perseguir a Oposição de Esquerda; em meados dos anos 1920, caracterizou corretamente a fração stalinista como uma aglomeração centrista no interior do partido e do Estado, mas daí tirou a conclusão equivocada de que essa fração era uma mal menor em relação à fração direitista de Bukharin e por isso negou a possibilidade de uma frente entre a esquerda e a direita partidária contra o centro stalinista; demorou a iniciar a luta contra Stálin, temendo ser acusado de tentar ocupar o lugar de Lênin, e quando o fez, cometeu uma série de erros táticos que foram aproveitados por Stálin, um especialista extremamente qualificado na arte da intriga e da conspiração interna.

Mas os erros de Trótski foram factuais, de posição neste ou naquele debate, e não determinam a essência de seu legado. Muito mais abundantes são seus acertos. Ele viu a dinâmica da Revolução Russa antes de Lênin e formulou, ainda em 1906, a hipótese de que na Rússia pudesse ser instalada uma ditadura proletária muito antes do que nos países de capitalismo avançado; em outubro de 1917 também estava certo contra Lênin quando defendeu uma manobra tática em que o poder na capital russa seria tomado não pelos organismos do partido, como defendia Lênin, mas por organismos soviéticos com a justificativa da preparação do Congresso dos Sovietes; em 1920, defendeu a necessidade de introduzir mecanismos de mercado na economia russa, ideia que foi desenvolvida um anos mais tarde por Lênin e que passou à história com o nome de NEP (Nova Política Econômica); em 1922, ajudou a formular e lutou pelas Teses sobre a Unidade da Frente Proletária, ou seja, a Frente Única, uma tática fundamental em momentos de ofensiva capitalista, quando a classe operária precisa de toda unidade possível no enfrentamento contra o inimigo comum; em 1927, denunciou a subordinação do Partido Comunista Chinês ao movimento nacionalista burguês conhecido como Kuomintang, que acabou sufocando em sangue a rebelião operária e comunista de Xangai no mesmo ano; no início dos anos 1930, diante da ascensão do nazismo na Alemanha, defendeu a unidade entre o Partido Comunista Alemão e o Partido Social-Democrata Alemão para combater o hitlerismo, sem se importar com o histórico de traições e capitulações dos reformistas alemães; em 1936, chegou ao conceito de Estado operário burocraticamente degenerado para caracterizar a União Soviética, levantando um programa de defesa das conquistas deste Estado combinado com uma revolução política contra a casta burocrática dirigente; no mesmo ano, fez seu famoso prognóstico de que, ou a burocracia era derrubada pela classe operária consciente e organizada, ou o capitalismo seria restaurado na URSS. Cinquenta anos depois, sua previsão se cumpriu com trágica exatidão.

No entanto, as derrotas foram grandes e nos últimos anos se fizeram sentir. Todos os seus filhos morreram, sendo um deles em um campo de concentração stalinista e outro em condições extremamente suspeitas, logo após um procedimento cirúrgico simples em um hospital parisiense. A partir de 1936, todos os seus mais próximos colaboradores e aliados foram perseguidos, presos, exilados e fuzilados nos Processos de Moscou; sua honra foi atacada na mais poderosa campanha de calúnias que a história já conheceu, seu rosto foi apagado de fotos e filmes; seu nome, riscado de documentos históricos. A França o expulsou de seu território, depois a Noruega, até que amigos intermediaram um refúgio no México. Toda sua geração foi dizimada, restaram poucos colaboradores diretos e quase nenhum amigo pessoal. Ainda assim, Trótski se manteve firme. Em 1940, travou uma luta política sem trincheiras, desta vez dentro do próprio movimento trotskista, polemizando contra um grupo de companheiros que se recusava a reconhecer o caráter operário do Estado soviético e o igualava ao fascismo e ao nazismo.

As condições objetivas levaram Trótski a criar um movimento frágil e minoritário no interior do comunismo internacional, com uma direção muito jovem e inexperiente que mais tarde viria a cometer muitos erros, a se dividir e a adquirir traços cada vez mais sectários, antidefensistas, fracionais, autoindulgentes e satisfeitos com a marginalidade. Mas o mestre não pode ser culpado pelos atos de seus discípulos. O velho revolucionário legou também um programa, uma teoria, um método, uma visão de política e de moral revolucionária que passaram pela prova da história e devem ser incorporados como parte da concepção revolucionária e socialista do século 21.

Aos 83 anos de seus assassinato, é necessário discutir o legado de Trótski, tanto no sentido do que foi deixado por ele, quanto no sentido do que foi feito com essa herança pelo movimento trotskista. Por exemplo, pessoalmente, creio que predomina entre os trotskistas uma visão infantil sobre o conceito de “crise de direção do proletariado”, formulado por Trótski em 1938, e uma percepção dogmática sobre o Programa de Transição. Sustento também que a maioria dos trotskistas acabou desenvolvendo uma concepção de política simplista e objetivista, que ignora os fatores subjetivos da consciência e correlação de forças. Houve também o fenômeno oposto: daqueles trotskistas que se adaptaram pacificamente a distintos aparatos burocráticos e reformistas e acabaram diluindo suas organizações nesses movimentos. Também é preciso debater a hipótese da revolução política, saída programática levantada por Trótski para resolver a contradição do Estado operário degenerado, mas que nunca aconteceu na realidade. Era possível? Jamais saberemos com certeza porque só podemos saber o que houve. A teoria da revolução permanente, a lei do desenvolvimento desigual e combinado e a Frente Única, no entanto, passaram ilesas pelo crivo do tempo. São cada vez mais atuais, cada vez mais necessárias.

Os trotskistas não são “os” herdeiros do leninismo ou do marxismo. Há muitas outras tradições que precisam ser resgatadas, valorizadas e colocadas em movimento pelos socialistas no século 21. Mas os trotskistas têm de onde partir e o que entregar. Podemos e devemos operar sobre a herança de Trótski para encontrarmos o nosso lugar nesta nova etapa histórica, etapa de contradições, derrotas, guerras, lutas e reconstrução, mas não de revoluções socialistas vitoriosas. A questão colonial, a emergência climática, a luta contra as opressões, a reconstrução da subjetividade histórica do proletariado – tudo isso são enigmas colocados pelo novo século e cujas pistas (não as respostas completas) podem ser encontradas em Trótski.

Trótski jamais se considerou qualquer coisa além de um simples discípulo de Marx e Lênin e nunca desejou criar um movimento especificamente “trotskista”. Isso acabou acontecendo, mas foi uma contingência da luta, o resultado indesejado do esforço por criar um movimento mais amplo. O verdadeiro valor do legado de Trótski está justamente nisso: ele não é uma receita pronta como querem alguns trotskistas, mas uma guia para o pensamento e a ação que pode ser adaptado às novas condições. O stalinismo está vivo como corrente política, mas foi derrotado pela história porque conduziu à tragédia da restauração capitalista na URSS. Já o “trotskismo” passou a prova do tempo não no sentido de ser infalível, mas no sentido de sua plasticidade, de sua capacidade de apontar o caminho para a resolução de questões atuais. Cabe a nós realizar o enorme potencial dessa herança.