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TEORIA

A radicalização da cisão entre ser humano privado e cidadão público como base da ascensão do neofascismo no século XXI

Euclides de Agrela, de Fortaleza (CE)

Depois da restauração capitalista protagonizada pelas burocracias stalinistas nos antigos estados degenerados e deformados de transição ao socialismo, a vida política como meio para garantir o direito à propriedade privada, bem como a segurança legal e militar deste direito para uma minoria cada vez mais insignificante encontrou seu ápice num mundo dominado por megacorporações mundiais. Esta minoria de super-ricos, quanto mais insignificante mais se esforça em se apresentar como representante e exemplo universal de toda humanidade.

Por conta do anterior, a cisão entre indivíduo privado e cidadão público chegou também no século XXI ao seu momento mais expressivo. Não apenas a contradição, mas a sobreposição do ser humano econômico, proprietário, egoísta contra o cidadão político, igual apenas formalmente perante a lei e pessoa moral está na base da nova onda neofascista que une ultraliberalismo no plano econômico, o ataque à democracia política e às liberdades democráticas, sobretudo contra os movimentos sociais, os sindicatos e os partidos de esquerda, com uma política de segurança pública que prega o armamento dos indivíduos e, por fim, mas não menos importante, uma brutal reação no campo dos direitos civis de mulheres, LGBT+, negros, indígenas e imigrantes.

A vida política como simples meio para defender a propriedade privada

Para entender o significado no século XXI do suprassumo da vida política como simples meio para garantir a propriedade privada a partir da cisão entre indivíduo privado e cidadão público é preciso revisitar Sobre a questão judaica (1843), de Karl Marx. Para Marx:

“O homem, na qualidade de membro da sociedade burguesa, o homem apolítico, necessariamente se apresenta então como homem natural. Os direitos do homem se apresentam como direitos naturais, pois a atividade consciente se concentra no ato político. O homem egoísta é o resultado passivo, que simplesmente está dado, da sociedade dissolvida, objeto da certeza imediata, portanto, objeto natural” (p. 53).

O ser humano apolítico, que se resume ao proprietário privado, seja ele apresentado como profissional especializado, técnico apolítico na área que propõe ocupar ou, pior ainda, o ser humano natural, comum, não versado na atividade consciente do ato político, o homem egoísta, objeto da certeza imediata vem sendo elevado à categoria de novo representante da extrema-direita no século XXI.

A elevação deste processo à ultima potência é o que explica a atual ascensão do neofascismo que se apresenta como um partido político apolítico, que busca não apenas negar a chamada política da direita e da esquerda tradicionais, mas atacar todas as instituições do Estado democrático de direito e da democracia representativa – particularmente os direitos civis, bem como as instituições eleitorais – para propor em seu lugar leis e instituições autoritárias que visam centralizar os poderes do Estado de maneira concentrada nas mãos de um candidato a bonaparte e de seu partido político.

Prossegue Marx:

“(…) o homem na qualidade de membro da sociedade burguesa é o que vale como homem propriamente dito, como homem em distinção ao cidadão, porque ele é o homem que está mais próximo de sua existência sensível individual, ao passo que o homem político constitui apenas o homem abstraído, artificial, o homem como pessoa alegórica, moral. O homem real só chega a ser reconhecido na forma de indivíduo egoísta, o homem verdadeiro, só na forma de cidadão abstrato” (p. 53).

Se não entendermos o anterior, ou seja, esta separação entre ser humano real (indivíduo egoísta) e ser humano verdadeiro (cidadão abstrato), e sua amplitude radical nos dias de hoje, será impossível entender a força e o apelo do perfil político do neofascismo.

O apelo ao ser humano privado para combater a corrupção e a ineficiência do Estado

A nova cara do fascismo no século XXI se apresenta como representante do ser humano propriamente dito, do ser humano privado em distinção ao cidadão, porque ele é o ser humano que está mais próximo de sua existência sensível individual, que vive em função da luta pela sobrevivência, que passa não apenas pela busca da venda da sua força de trabalho, mas aspira, sobretudo, converter-se ele mesmo em proprietário privado: primeiro, em pequeno e, depois, em grande proprietário. Por isso, a popularidade atual da desqualificação dos trabalhos assalariados e a promoção do chamado empreendedorismo, bem como a desqualificação dos serviços públicos e estatais e a popularidade de propostas radicais de privatização para pretensamente combater a corrupção política e a malversação das verbas públicas.

O canto da sereia é que o Estado não deve mais financiar equipamentos públicos supostamente de má qualidade que sugam grandes recursos estatais por serem objeto da corrupção política, como por exemplo, escolas e hospitais, mas possibilitar que os indivíduos através de seu mérito e esforço pessoal possam ascender socialmente e pagar o acesso a equipamentos privados supostamente de boa qualidade. Daí vem as propostas de fim dos serviços públicos e da assistência social, bem como de privatização de todas as estatais.

Esta é a mesma lógica que explica propostas estapafúrdias, como a venda de órgãos, na medida em que esses fascistas ultraliberais entendem que a primeira propriedade privada que dispõe o ser humano é o seu próprio corpo, que pode ser alienado no mercado como qualquer outra mercadoria (1).

Por outro lado, o político tradicional, seja ele liberal democrático ou da esquerda reformista, que defende o cidadão abstrato, que propõe políticas que se limitam a defender direitos abstratos, cada vez mais rebaixados a políticas sociais compensatórias para amenizar os efeitos nefastos do neoliberalismo, demonstra-se incapaz de se contrapor às políticas neoliberais propriamente ditas e a impor um novo paradigma que enfrente efetiva e realmente a concentração de riqueza nas mãos dos super-ricos, a desigualdade social, o sucateamento e privatização dos serviços e equipamentos públicos, bem como das empresas estatais.

Por isso, os velhos políticos e partidos liberais democráticos e da esquerda reformista acabam aparecendo perante as massas, depois de mais de 30 anos de políticas neoliberais, como hipócritas, mentirosos, corruptos, enfim, como o mais do mesmo. Por isso, os novos líderes e partidos neofascistas estão galgando uma ascensão meteórica em vários países, a exemplo da Europa e América Latina. Por isso, mesmo onde estes líderes e partidos neofascistas já tenham sido derrotados eleitoralmente, depois de governar por um período, como no Brasil, seguem sendo uma ameaça diante da possibilidade do fracasso dos novos governos de esquerda, caso estes se mostrem incapazes mais uma vez de enfrentar o capital financeiro e os interesses dos super-ricos.

A segurança da propriedade privada como questão social suprema

Não podemos esquecer também que o neofascismo do século XXI explora exponencialmente a questão da segurança da propriedade privada como uma questão social suprema. Ensina-nos Marx:

“A segurança é o conceito social supremo da sociedade burguesa, o conceito da polícia, no sentido de que o conjunto da sociedade só existe para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade”.

“(…) A segurança, é antes, a asseguração do seu egoísmo” (p. 50).

Propostas de uma segurança pública cada vez mais bélica, que criminaliza a pobreza, negros, indígenas e imigrantes, bem como transformam os territórios periféricos das grandes cidades em verdadeiras praças de guerra, colocam sob o fogo cruzado da polícia e do tráfico de drogas os moradores que vivem e trabalham nesses territórios.

Além disso, vimos nos últimos trinta anos o crescimento exponencial de empresas de segurança privada, que passam a ser reivindicadas pelos neofascistas como sinônimo de eficiência e possuem atualmente um contingente semelhante aos efetivos das forças de segurança pública. Mas isso não é tudo.

Outra norma para a asseguração desse egoísmo proposto pelo neofascismo é, junto com a facilitação da venda de armas para indivíduos que possam comprá-las sob a fachada de colecionadores e caçadores, a incorporação ou, no mínimo, o reconhecimento de organizações paramilitares, como as milícias formadas por policiais e ex-policiais no Brasil, como parte da política de segurança pública, ainda que informal e ilegalmente.

Desta maneira, a segurança pública, ao lado de um suposto combate à corrupção virou uma das maiores bandeiras do neofascismo no século XXI. O anterior também vai explicar não só o fetiche da segurança pública, mas inclusive o negacionismo dos genocídios, assassinatos e torturas perpetrados pelo nazismo, pelo fascismo e as ditaduras militares, bem como a utilização de medidas jurídicas altamente questionáveis como o lawfare e a proposta de resgatar esses regimes políticos autoritários como única forma de combater até o fim a corrupção política e os supostos crimes contra os homens de bem e suas sacrossantas propriedades.

A questão religiosa: o dinheiro como deus real

Há uma contradição aparente entre a proposta neofascista ultraliberal no plano econômico e a sua vinculação a um programa reacionário no plano dos direitos civis e dos costumes. Mas isso é apenas aparente, na medida em que, com a ascensão do Estado moderno:

“O homem se emancipa politicamente da religião, banindo-a do direito público para o direito privado. Ela não é mais o espírito do Estado (…); ela passou a ser o espírito da sociedade burguesa, a esfera do egoísmo, da guerra de todos contra todos. Ela não é mais a essência da comunidade, mas a essência da diferença” (. 42).

Como é possível verificar, a religião não é anulada pela sua separação do Estado moderno, mas se mantém e convive plenamente com ele e a propriedade privada no âmbito da sociedade burguesa. Ousamos dizer que, atualmente, a afirmação da religião como o espírito da sociedade burguesa encontrou o seu ápice nas igrejas cristãs neopentecostais e em ideologias como a chamada teologia da prosperidade, expressão contemporânea da divisão e do do distanciamento entre as pessoas que creem na prosperidade egoísta motivada pela aspiração à aquisição da propriedade privada, na sua transformação em empreendedores privados e que galgam essa posição social por mérito próprio, cujo principal componente é a crença em deus, e aquelas pessoas que, por não crerem com toda a sua força em deus, são desprovidas de mérito e, portanto, de prosperidade.

A promessa do reino dos céus após a morte foi finalmente substituída pela ideia de que eu posso realizar o reino dos céus na terra, através da aquisição da propriedade privada, que transforma o trabalhador assalariado em burguês com as bençãos do pai, do filho e do espírito santo. Portanto, a aquisição de dinheiro e a ascensão social do fiel à condição de empreendedor privado passa a ser a maior prova de que esta pessoa foi escolhida por deus.

Isto explica, inclusive, a disposição das pessoas em doar quantias elevadas para o dizimo das igrejas, como quem investe numa pirâmide financeira na esperança de mais cedo ou mais tarde colher seus dividendos com altas taxas de juros e lucros. Essa é a promessa e essa é a esperança alienada que a religião do deus-dinheiro hoje propõe. Por isso, ainda que efêmera, é cada vez maior a força do seu apelo perante as amplas massas, apelo que se torna cada vez mais ligado ao senso comum, à realidade egoísta da vida na sociedade burguesa, palpável e ao mesmo tempo volátil como uma nota de 200 reais, que tão pouca gente já teve em suas mãos…

A reação nos costumes e os direitos civis de mulheres, LGBTQIA+, negros, indígenas e imigrantes

Esses mesmos fascistas ultraliberais, apoiam-se na questão religiosa e na síntese de suas propostas como a teologia da prosperidade, para erguerem suas espadas contra a legalização do aborto como um direito inalienável da mulher, se oporem ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e à educação de questões de gênero nas escolas públicas. Da mesma forma, manifestam-se contra políticas de discriminação positiva, como a política de cotas, que favoreçam as comunidades quilombolas, indígenas e LGBTQIA+, bem como imigrantes.

Essas medidas não possuem nenhuma contradição com suas políticas ultraliberais, muito pelo contrário. Por um lado, buscam construir uma reserva de mercado para o ser humano egoísta e privilegiado, por excelência: os homens cis, brancos e heterossexuais, quer dizer, àqueles que estão no topo da pirâmide social.

Por outro lado, visam submeter mulheres, LGBTQIA+, negros, indígenas e imigrantes, no caso dos países ocidentais, à religião cristã dominante e a seus costumes reacionários, que são praticados hipocritamente por essa elite branca para escravizar e prostrar ideologicamente a grande maioria dos seres humanos, nomeadamente a classe trabalhadora assalariada que vive e mora nas periferias das grandes cidades, muitas vezes abandonadas pelo pode público e dominadas por facções criminosas e milícias.

O acordo entre o capital financeiro e as novas igrejas evangélicas, que não escondem a face do seu deus-dinheiro, é não só oportuno para ambos, como possibilita um apelo de massas à ideia predominante do homem egoísta na sociedade burguesa, sintetizada no versículo: “Quem examina cada questão com cuidado prospera, e feliz é aquele que confia no Senhor” (Provérbios 16:20).

E a questão da tecnologia da informação e das redes sociais?

Obviamente que Marx não versa a respeito das chamadas tecnologias da informação e as redes sociais em Sobre a questão judaica. Mas ele não deixa de tocar noutra questão mais cara que a anterior, que está na base da forma como são utilizadas as atuais tecnologias da informação e redes sociais: o tema caríssimo da alienação, do estranhamento do ser humano diante dos diversos aspectos da sua vida e trabalho na sociedade burguesa, que será melhor desenvolvido posteriormente nos Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844).

A própria divisão entre ser humano privado e cidadão público está no alicerce desta alienação contemporânea. O ser humano privado, econômico, proprietário é a antítese do cidadão público, político e formalmente igual perante a lei.

A configuração das atuais tecnologias da informação, em geral e das redes sociais, em particular, está baseada nesta divisão entre ser humano privado e cidadão público. As redes sociais, ao mesmo tempo que me permitem, enquanto indivíduo privado, atuar publicamente como cidadão, que opina sobre o humano e o divino de maneira muitas vezes violenta e ameaçadora contra outros indivíduos e instituições, garante indiscriminadamente que esse mesmo sujeito possa arguir em favor de seu direito privado, enquanto proprietário privado de sua conta ou canal de internet, para justificar uma pretensa liberdade de expressão contra tudo e contra todos, sem filtros e sem limites.

Na contradição descrita acima, o ser humano privado se sobrepõe ao cidadão público e a ele impõe seu egoísmo multiplicado ao absurdo. Por isso, posso desqualificar, ameaçar fisicamente e até de morte qualquer um que se contraponha às minhas opiniões e argumentos, por mais que sejam mentirosos, falaciosos, manipulados e manipuladores. Como é sabido, esse tipo de produção de conteúdos gera um enorme engajamento e possibilita a movimentação de muito dinheiro. Isso é o que vai explicar porque esse modus operandi foi elevado a um modelo de negócios altamente lucrativo pelas Big Techs.

Esse modelo de negócios se encaixa perfeitamente como parte do projeto da nova extrema-direita que, através dele, busca ganhar engajamento de milhões de pessoas nas rede sociais e assim angariar não somente apoio político, mas fazer dinheiro. Ao mesmo tempo ele é alimentado pelas Big Techs, que, não sem interesses políticos, esvaziam de engajamento as contas e canais da esquerda reformista e, sobretudo, da revolucionária.

Qual seria então o projeto alternativo da esquerda socialista a esta cisão radical entre ser humano privado e cidadão público?

O Estado moderno surgiu com o fim da sociedade feudal, que estava baseada no privilegio, e com o início da sociedade capitalista, que passou a ser alicerçada no direito abstrato, portanto, numa igualdade que se limita à igualdade política. Para Marx:

“O limite da emancipação política fica evidente de imediato no fato de o Estado ser capaz de se libertar de uma limitação sem que o homem realmente fique livre dela, no fato de o Estado ser capaz de ser um Estado Livre (república) sem que o homem seja um homem livre” (pp. 38 e 39).

O Estado, portanto, ficou livre das limitações dos privilégios dos estamentos feudais, com o fim desses privilégios levados a cabo pelas revoluções políticas capitaneadas pela burguesia, sobretudo, a revolução francesa de 1789. No entanto, a limitação da emancipação do ser humano ao terreno da política e do direito não possibilitou que este mesmo ser humano também ficasse livre dos novos limites da sociedade burguesa, demarcados pela propriedade privada dos meios de produção e pela lei do valor, que se funda como alicerce do Estado moderno. Explica Marx:

“No entanto, a anulação política da propriedade privada não só não leva à anulação da propriedade privada, mas até mesmo a pressupõe. O Estado anula a sua maneira a diferenciação por nascimento, estamento, formação e atividade laboral ao declarar nascimento, estamento, formação e atividade laboral como diferenças apolíticas, ao proclamar cada membro do povo, sem consideração dessas diferenças, como participante igualitário da soberania nacional, ao tratar todos os elementos da vida real de um povo a partir do ponto de vista do Estado” (pp. 39 e 40).

Assim, se, por um lado, o Estado moderno anula o privilégio da representação política exclusiva dos proprietários privados, permitindo a todos os seres humanos se tornarem cidadãos, sobretudo na democracia representativa, chamando para si a delimitação dessa igualdade política e jurídica em suas leis e instituições….

“Não obstante, O Estado permite que a propriedade privada, a formação, a atividade laboral atuem a maneira delas, isto é, como propriedade privada, como formação, como atividade laboral, e tornem efetiva a sua essência particular. Longe de anular essas diferenças fáticas, ele existe tão somente sob o pressuposto delas, ele só se percebe como Estado político e a sua universalidade só torna efetiva em oposição a esses elementos próprios dele” (p. 40).

Por isso mesmo, esses mesmos proprietários privados seguem concentrando toda a riqueza produzida coletivamente e têm no Estado político a salvaguarda da propriedade privada, que se torna o fundamento do próprio Estado político. Sintetiza Marx:

“A emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente, e, por outro, a cidadão, a pessoa moral” (p. 54)

A emancipação política possibilitada pelas revoluções burguesas limitou a igualdade ao chamado Estado de direito, cujo suprassumo, a cláusula pétrea é o direito à propriedade privada, que se encontra inclusive acima do direito à vida. Neste sentido, tudo que não avança retrocede. Na medida em que a emancipação política não se converte em emancipação social, portanto, humana, essa mesma emancipação política e o direito passam a ser ameaçados por projetos políticos neofascistas, como mais uma expressão da decadência da sociedade burguesa.

Um projeto alternativo à cisão entre ser humano privado e cidadão público não pode ser simplesmente a inversão das determinações entre ambos. Não é possível que o cidadão público se sobreponha ao ser humano privado, sem questionar e superar a forma burguesa desse último, por um simples motivo: ele carece de base real, na medida em que não passa de um ser abstrato, suspenso no ar, enquanto o ser humano privado está fundando na propriedade privada que é também, ao mesmo tempo, o alicerce do Estado político e, portanto, do próprio cidadão público.

Mas a pergunta que não quer calar é: qual seria então o caminho de uma síntese superior entre ser humano privado e cidadão público, se é que ela é possível? O caminho, mais uma vez, é apontado por Marx:

“Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizado suas forças próprias como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a força social na forma da força política” (p. 54).

O breve parágrafo acima, que encerra a primeira seção de Sobre a questão judaica (1843), representa uma importante síntese programática contemporânea da Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução (1944) e anterior ao Manifesto comunista (1848).

O exposto acima, trata-se de uma conclusão normativa, portanto programática, na medida em que propõe o transcrescimento da revolução política em revolução social, da emancipação política em emancipação humana, enfim, estipula o transcrescimento da revolução burguesa – que se limita a conceder direitos permanentemente ameaçados pela manutenção da propriedade privada e da lei do valor, bem como pela ocorrência das crises cíclicas de superprodução e destruição das forças produtivas – em revolução proletária, que estende os direitos políticos à esfera privada, tornando-os, efetiva e definitivamente reais e universais ao expropriar a propriedade privada.

Assim, a revolução proletária ao expropriar a propriedade privada dos meios de produção e convertê-la em propriedade coletiva, portanto, social, humana e universal, inicia a transição da sociedade burguesa, alicerçada no homem egoísta, à sociedade comunista, onde a comunidade dos meios de produção possibilitará não a extinção do indivíduo em geral, mas libertará cada ser humano do egoísmo burguês para que possa se desenvolver plenamente com ser universal. E isso, nenhuma fortuna monetária e nenhuma fé religiosa poderá nos possibilitar.

Referências:

Sobre a questão judaica, Boitempo Editorial, São Paulo, 2010.

Notas

1 https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/08/15/dinamitar-banco-central-venda-de-orgaos-e-fim-da-educacao-obrigatoria-as-propostas-radicais-de-javier-milei.ghtml