Intervenção estrangeira no Níger será mais um crime colonial

Henrique Canary, da redação

Segue complexa a situação no Níger, onde no dia 26 de julho triunfou um golpe militar que derrubou o presidente eleito Mohamed Bazoum e instaurou um novo governo baseado em uma junta militar comandada pelo general Abdourahamane Tchiani. O Níger, uma ex-colônia francesa que se tornou independente em 1960, é hoje o sétimo maior produtor de urânio do mundo, com cerca de 48% de suas receitas provenientes do mineral. A maior parte desse urânio vai para a indústria nuclear francesa. Se a França esteve até agora relativamente à margem da crise energética que abala a Europa, isso se deve em grande aparte ao urânio do Níger. Por outro lado, o Níger segue sendo um dos países mais pobres do mundo e um dos mais importantes da região do Sahel, espécie de faixa de transição entre o deserto do Saara e a savana africana.

O golpe no Níger é o terceiro na região desde 2020 (Mali e Burkina Faso). Nos três casos, a retórica antifrancesa jogou um papel muito importante e ajudou a angariar apoio popular aos golpes. O próprio Bazoum, hoje sob custódia dos militares, mas com possibilidade de se comunicar com o mundo exterior, sempre foi considerado um aliado fiel de França e Estados Unidos. Ambas as potências mantém bases militares no país (1500 e 1000 soldados, respectivamente). A justificativa é de que essas tropas são importantes no treinamento do exército nigerino contra a Al-Qaeda e o Estado Islâmico. Acontece que uma das queixas dos militares nigerinos é exatamente a ineficiência da assessoria francesa e norte-americana no combate ao extremismo islâmico. A base norte-americana é de drones e uma das mais modernas do mundo, e a base francesa se localiza diretamente em Niamey, capital do país. Por aí se tem uma ideia da importância do Níger para esses dois países.

De um modo geral, a crise do Níger é um dos pontos altos da crise de toda a região do Sahel, onde até o início dos anos 1960 predominou a colonização francesa. Um sentimento muito difundido, sobretudo entre a juventude nigerina, é de que a França concedeu a independência ao país, mas continuou explorando a região, principalmente através de acordos econômicos desiguais. Um exemplo é a exportação de urânio para a França a preços questionáveis. Mas esse é o exemplo mais óbvio. Um fato menos conhecido é que o Níger tem suas reservas internacionais em francos centro-africanos (FCA), uma moeda utilizada por 14 nações africanas, controlada por Paris e atrelada ao Euro. Pelas regras impostas pela França, o Níger é obrigado a guardar pelo menos 50% de suas reservas internacionais no Banque de France, o que permite a Paris controlar remotamente a economia do país.

Macron já declarou que o golpe no Níger é inaceitável e que não poupará esforços para restabelecer Bazoum no poder. Neste sábado expirou o prazo dado pela Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao) para que a junta militar nigerina devolvesse o poder a Bazoum. A Cedeao, com a Nigéria à frente, mas capitaneada pela França e Estados Unidos, não descartou o uso da força e uma intervenção militar de larga escala. Como resposta, o Níger fechou o espaço aéreo até segunda ordem.

No domingo, um fato inusitado já havia acontecido. Cerca de 30 mil pessoas lotaram um estádio de futebol em Niamey para declarar apoio ao golpe. Como ocorrera na manifestação em frente à Embaixada da França logo depois do golpe, foram vistas bandeiras da Rússia e cartazes de apoio a Putin e pedidos de ajuda à potência eurasiática.

Aliás, a participação da Rússia em toda essa série de eventos é enigmática e uma dor de cabeça para França e Estados Unidos. Na semana que antecedeu o golpe, Putin promoveu em São Petersburgo a Cúpula Rússia-África. Vinte e um chefes de Estado africanos atenderam ao evento, que contou com um total de 49 delegações do continente. Putin se comprometeu a substituir o grão ucraniano por grão russo no mercado africano, inclusive com o envio gratuito de 50 mil toneladas para seis países africanos. Também foi discutida a colaboração tecnológica, principalmente na área da agricultura. Durante o encontro, o presidente de Burkina Faso, Ibrahim Traoré, um jovem militar de 34 anos que liderou o golpe no país em 2022, fez um discurso duríssimo contra o Ocidente e prometeu estreitar os laços com a Rússia, com quem, segundo ele, “compartilham uma história comum”. Traoré, que vestia um uniforme camuflado e uma boina vermelha ao estilo do revolucionário marxista e pan-africanista Thomas Sankara, terminou seu discurso citando Fidel Castro: “Pátria o muerte!”.

Ievgueni Prigójin, o conhecido chefe do Grupo Wagner, também se posicionou a favor do golpe no Níger e declarou que tudo o que estava acontecendo era fruto do colonialismo europeu e ocidental.

Ainda é bastante difícil ter uma caracterização final e estabeler um prognóstico para tudo o que está acontecendo no Níger, na região do Sahel e na África em geral. É preciso ver como evoluirão vários elementos: Haverá ou não intervenção estrangeira no Níger? Se sim, como se posicionarão Burkina Faso e Mali? Como serão as relações com a França, em particular a venda do urânio? Como evoluirá o regime interno do Níger em termos de direitos democráticos e independência das organizações de esquerda e dos trabalhadores? O que acontecerá com o extremismo islâmico? Qual a relação dos golpistas com o nacionalismo progressivo e o pan-africanismo dos anos 1960 e 1970? Ou seja, trata-se de um processo progressivo de avanço da independência do país ou apenas um realinhamento geopolítico? Isso realmente não está claro neste momento.

Duas coisas são certas: A primeira é que a África é um dos centros da situação mundial, um importante cenário da luta de classes e da disputa geopolítica. A segunda é que a intervenção imperialista no Níger (ainda que sob a máscara da Cedeao) segue na mesa como uma das possibilidades. Se isso acontecer, o país será jogado em um abismo similar àquele em que foram jogados Líbia, Síria, Iraque e Afeganistão. A região mergulhará numa guerra civil violentíssima e décadas serão perdidas. Esse é o resultado de todas as intervenções “democráticas” até aqui. Não será diferente agora.

Mais do que nunca, é preciso evitar a intervenção estrangeira. Os problemas do Níger devem ser resolvidos pelo povo nigerino consciente e mobilizado. Basta da tutela criminosa de Paris e Washington. Ao mesmo tempo, é preciso denunciar os pescadores de águas turvas, que se utilizam do legítimo sentimento antifrancês no Níger para promover a sua própria agenda, aqueles que fingem amizade e colaboração, mas que não levam em consideração os interesses do povo. A troca de uma potência colonial por outra não pode ser confundida com a verdadeira independência e autodeterminação.

Desde já, é preciso cercar o país de solidariedade. A solução para o conflito passa pelo fortalecimento do movimento sindical, democrático, progressivo e de esquerda. É preciso que os trabalhadores do Níger levantem sua voz e formulem suas próprias reivindicações. Os povos colonizados, subalternizados, explorados e oprimidos da Ásia, África e América Latina saberão ouvir.