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MOVIMENTO

Dia internacional dos Povos Indígenas: Ancestralizar o Futuro para Transformar o Presente!

Porakê Munduruku
Rovena Rosa/Agência Brasil

Desde 1995, celebra-se o Dia Internacional dos Povos Indígenas no 9 de Agosto. Mais de meio milênio de invasão colonial e duas guerras mundiais não foram suficientes, levaria ainda meio século para que a ONU, fundada em 1945, instituísse a data, e outra dúzia de anos para que a cúpula das potências mundiais publicasse a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, em 2007, deixando finalmente clara sua intenção de estender a nós, povos indígenas, os direitos promulgados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

E, apesar de todas as alegadas boas intenções e declarações bem intencionadas, seguimos contando apenas com nossa própria consciência ancestral, disposição de luta e capacidade de auto-organização para resistir ao etnocídio, ao roubo de nossas riquezas naturais e culturais e à brutal exploração que nos é imposta pelo capitalismo. Não por acaso, estivemos na vanguarda da luta contra o fascismo durante todo o governo Bolsonaro e, mesmo com Lula, seguimos enfrentando graves ameaças, como o Marco Temporal, a exploração do petróleo na foz do Amazonas e o avanço da grilagem de terras públicas através da indústria do crédito de carbono. 

Ainda assim, datas como essa são valiosas oportunidades para refletirmos sobre: o que é ser indígena? Quais os principais desafios da luta indígena na atualidade? E qual a contribuição que temos a dar para a superação das tragédias que ameaçam o futuro de toda a humanidade?

Quem é indígena, afinal?

Foi o colonizador quem criou o noção de “indígena” e certamente não foi para nos ajudar. Para trazer este conceito para o lado da luta anticolonial, precisamos resignificá-lo.

Serve aos interesses do colonizador restringir ao máximo a identidade indígena, pois assim, além de apagar nossa diversidade sob um rótulo genérico, fica muito mais fácil controlar poucos, sobretudo, quando estes poucos estão restritos a territórios delimitados e, de preferência, bem distantes, nos rincões das terras que o colonizador tomou de nossos ancestrais. Também é do interesse do colonizador dividir a resistência anticolonial entre indígenas nos territórios e indígenas em contexto urbano, e entre “indígenas puro-sangue” e “mestiços autodeclarados”.

É fácil deixar de ser indígena, basta sair do território, ou nascer fora dele, ou esquecer as línguas que o colonizador se esforçou em apagar, ou ter um ancestral não indígena. Fazer o caminho de volta é que é difícil, para muitos, impossível. As conveniências do sistema colonial-capitalista tornaram a identidade indígena, que nos é imposta, muito restrita e excludente. 

Afinal, ainda que a escravidão indígena siga sendo invisibilizada pela história, pelo menos desde a criação do Diretório dos Índios pelo Marques de Pombal, em 1758, fomos submetidos a uma lógica de integração forçada que nos empurra para o não-lugar de uma identidade cabocla, mestiça ou parda.

Assim, por muito tempo, enquanto os filhos mestiços de mães negras continuavam sendo negros e, portanto, escravizados e sem direitos. Os filhos mestiços de indígenas deixavam de ser considerados indígenas, tornando-se súditos de segunda classe das coroas lusitana ou brasileira, as custas do apagamento de suas identidades. Estas diferentes estratégias coloniais de submissão de corpos racializados, nos impuseram uma identidade negra inclusiva e uma identidade indígena exclusiva, o que perdura mesmo hoje. 

Ao ponto de que muitos de nós nem sequer se dão conta de que é tão absurdo negar o pertencimento de descendentes indígenas fora de áreas demarcadas, quanto seria impor a ideia de que apenas quilombolas são “negros de verdade”, e todos os demais afrodescendentes deveriam ser considerados não-negros.

As consequências dessa identidade indígena excludente saltam aos olhos quando observamos que, no século XIV, estima-se que havia algo em torno de 3,5 milhões de indígenas nos territórios que viriam a formar o Brasil, enquanto, em Portugal, a população era de pouco mais de um milhão de habitantes. Atualmente, dados oficiais nos informam que, mesmo diante do crescimento de 88% da população brasileira que se autodeclara indígena entre os censos de 2010 e 2022, ainda somos menos de 1% da população do pais. 

Foi o colonizador quem nos impôs um conceito restritivo de indígena, para sua própria conveniência. Mas somos nós que precisamos refletir: O que faremos com tal conceito? Será uma palavra para unir e organizar nossas lutas ou uma forma de nos deixar subjugar pela lógica excludente do colonizador? Que sentido faz culparmos as vítimas da violência que sofremos, legitimando o apagamento de suas ancestralidades?

Todo indígena é autodeclarado! Afinal, o desejo do colonizador é declarar extintos todos nós. A afirmação da identidade indígena é sempre uma ação de resistência. 

Não importa o que digam os puristas, a questão do pertencimento é sempre uma questão subjetiva, antes de mais nada, política. Na Espanha, por exemplo, La Ley de Memoria Democrática, aprovada pelo senado espanhol em 2022, permite aos netos e bisnetos de espanhóis a obtenção da cidadania espanhola, independente do território onde tenham nascido. Já em Portugal, segundo a Lei de Nacionalidade de 1981, bisnetos de portugueses, nascidos no estrangeiro, tem direito à cidadania portuguesa, desde que seus pais também requeiram a dupla cidadania. Por que para o colonizador o reconhecimento formal dos vínculos com a ancestralidade é tão facilitado, enquanto o pertencimento de descendentes indígenas nascidos fora dos territórios soa tão absurdo? Quem se beneficia deste apagamento?

Raça e etnia: duas dimensções da identidade indígena

Raça e etnia são conceitos diferentes, que se combinam de forma deliberadamente confusa na identidade indígena que nos é imposta.

Raça se refere a uma categoria supostamente biológica, embora a ideia de raças humanas não encontre qualquer respaldo na biologia. A raça segrega as pessoas por sua aparência, segundo padrões estéticos, social e historicamente construídos. É a noção de que para ser indígena é necessário ter um determinado tom de pele, tipo de cabelo, formato de olhos e características como a escassez de pelos corporais. 

Já etnia é uma categoria assumidamente histórico-cultural, que segrega as pessoas em função de especificidades como: língua, cosmovisão e modo de vida. É a visão de que para ser indígena é necessário viver em uma aldeia, conhecer a língua originária de seu povo, preservar as práticas culturais e a visão de mundo de seus ancestrais. 

Quando o tema é a identidade indígena, não por acaso, estes conceitos costumam ser combinados da maneira menos inclusiva possível. Não basta ter uma aparência indígena, é exigido que se saiba a língua, se conheça a história e se mantenha as práticas ancestrais. Mas tão pouco basta conhecer a cultura de seu povo de origem, é necessário ter nascido ou vivido em uma aldeia reconhecida, além de se enquadrar na aparência estereotipada, para não ter seu pertencimento permanentemente questionado.

Nem todo indígena é aldeado, da mesma forma que nem todo o negro é quilombola. Há indígenas das mais diversas aparências e vivências. O recente censo de 2022, revela que nove em cada dez cidades brasileiras possui moradores indígenas. Após mais de meio milênio de apagamento, muitas pessoas que são lidas como indígenas tiveram seu pertencimento étnico apagado pela violência colonial. Assim como, há pessoas que, apesar de vivenciarem em seu cotidiano a cultura indígena, jamais conhecerão a dura realidade da segregação racial na própria pele, por serem lidas socialmente como pessoas brancas. A consciência do que nos une e do que nos difere também é consciência ancestral e nos afasta dos apagamentos patrocinados pelo colonizador. 

A retomada ancestral e a luta indígena no contexto urbano

“Dividir para conquistar”, segue bradando o colonizador. Foi ele quem nos impôs a visão caricata de indígenas como seres exóticos, místicos e primitivos. Nesta farsa que nos é imposta, a ciência, a tecnologia e a civilização seriam monopólios do colonizador. Mas a verdade é que nós sempre tivemos nossa ciência, nossa tecnologia, nossa própria perspectiva de civilidade e até nossas próprias cidades. E as novas possibilidades para o futuro, que nos exige o presente, só serão possíveis, retomando as lições da ancestralidade sobre outras possibilidades de estar no mundo.

Nas periferias urbanas há muitos parentes que jamais perderam o vínculo com sua ancestralidade, alguns de nós foram apenas forçados a migrar de seus território tradicionais em busca de oportunidades ou simplesmente foram acossados pela violência colonial, enquanto outros viram suas aldeias e cidades ancestrais serem tomadas e transformadas pelo colonizador. Somos exilados em nossa própria terra. Ainda assim, nós, que vivemos no contexto urbano, costumamos ser invisibilizados, tanto pelo poder público, quanto pelo movimento indígena mais tradicional, ficando a margem das políticas públicas voltadas para as populações indígenas. 

Por outro lado, nas últimas décadas, têm crescido a importância da retomada da identidade indígena no contexto rural, entre grupos de ribeirinhos, de extrativistas e de campesinos, que tiveram seu pertencimento originário violentamente apagado por políticas públicas de integração forçada ao longo de séculos.

Por vezes, estes dois fenômenos, a retomada ancestral e a presença indígena em contatos urbanos, se combinam, então temos a retomada ancestral no contexto urbano, entre descendentes indígenas que sobrevivem nas periferias das cidades e que apesar de serem vítimas do apagamento do vínculo com a cultura de seus ancestrais, agora buscam se reconectar com essa ancestralidade. 

O colonizador usa essas e outras diferenças entre nós para tentar segregar nossos interesses e conquistas e nos colocar uns contra os outros, tentando nos domesticar pela lógica da miséria, onde vale a máxima: “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Serve aos interesses do colonizador que os direitos que nos são assegurados estejam submetidos à lógica de uma identidade restrita e restritiva. Muitos de nós foram convencidos que, no fim das contas, é até bom que sejamos poucos e segregados, pois assim há menos pessoas com quem dividir o que já conquistamos até aqui. 

Desgraçadamente, tem alguns parentes que não consideram quilombolas, ribeirinhos, comunidades extrativistas e mesmo indígenas em retomada ou no contexto urbano, como iguais. Esses parentes se sentem ameaçados se direitos forem assegurados a todas essas categorias, pois sem perceber, foram dominados pela catequese colonial e se tornaram vítimas de um egoísmo mesquinho que não acolhe aliados, mas reproduz a perigosa noção de um suposto purismo étnico ou racial. Zelam de forma ciumenta pelos rótulos que o colonizador nos impôs. Ignoram que a luta exige união, união sem apagamentos, mas união. E que a luta segue sendo a única saída para todos nós.

Nos territórios ou nas cidades, qual a luta dos povos indígenas?

A existência material de corpos indígenas em diáspora, tanto nos territórios, quanto no contexto urbano, nos apresenta duas frentes distintas e complementares de luta: nos territórios a luta central é por demarcação e pela preservação de formas de sociabilidade alternativas àquelas impostas pelo colonizador; enquanto no contexto urbano o cerne da luta indígena é a autoafirmação de uma identidade étnico-racial que nos permita unificar resistências e promover a autoconsciência histórica e o protagonismo de descendentes indígenas desaldeados, de quem tudo foi tirado, até mesmo a identidade. Em ambos os casos o objetivo último é o mesmo, a conquista de uma vida plena, com harmonia entre nós e com a natureza.

Estas duas frentes, que podem e devem ser complementares, em geral, são tratadas como concorrentes. Assim, nos é imposta uma hierarquia, onde a luta nos territórios se apresenta como superior ou mais legitima que a luta no contexto urbano, embora a maioria de nós jamais tenha vivido em territórios demarcados, mas sobreviva nas periferias dos centros urbanos, invisibilizados sob o rótulo de mestiços, caboclos ou pardos.Este quadro gera trágicos conflitos entre nós, onde quem ganha é sempre o colonizador. 

Superar essa situação é uma necessidade que não será alcançada com nenhuma forma de apagamento ou silenciamento. Pois a verdadeira união se baseia no diálogo e no reconhecimento das diferenças. Uma vez que, de cima para baixo é imposição, de baixo para cima é submissão e só entre iguais pode haver troca e respeito. Só assim nos fortaleceremos mutuamente, em torno do que de fato nos une: nosso respeito pela natureza e pela ancestralidade, nossa resistência ao sistema colonial-capitalista e nossa necessidade de superar o lugar de subalternidade que ele nos reserva.