Em seu recente artigo na +972, o Prof. Menachem Klein discutiu as características sociológicas do campo pró-reforma judicial em Israel e da oposição. Seu artigo incluiu argumentos inovadores sobre a capacidade de mobilização política de cada campo, mas gostaria de focar aqui nos aspectos ideacionais apresentados.
Segundo Klein, “os defensores da reforma judicial recorrem à política de identidade. Eles justificam a reforma judicial com a necessidade de preservar a identidade judaica do estado e a supremacia judaica sobre não-judeus, sejam eles cidadãos, residentes ou súditos do regime. Por outro lado, os opositores da reforma judicial falam em um discurso de direitos”, que Klein afirma “fundamentar sua identidade democrático-liberal”.
A extensa literatura sobre identidade foca em uma variedade de elementos, incluindo definições internas e externas; percepções sobre o passado, presente e futuro; sentimentos; como a identidade orienta o comportamento; e como a identidade é formada em primeiro lugar. No entanto, essas teorias raramente lidam com a correlação entre, por um lado, a coerência da identidade e a energia política de um grupo – expressa, por exemplo, na capacidade dos membros do grupo de se unirem para lançar uma luta coletiva eficaz – e o projeto político que o grupo se esforça em alcançar, por outro.
Conforme a coerência interna de uma identidade aumenta, também aumenta sua energia política. E quanto maior for o grau de compatibilidade entre essa identidade e o projeto político escolhido, maior será a capacidade de estabilizar, preservar e direcionar essa energia para uma realidade social e política. Essa é provavelmente uma das lições mais importantes que podemos aprender da Primavera Árabe, onde o fracasso em canalizar os impressionantes surtos de energia para um projeto político impediu sua tradução em uma realidade política democrática.
Nesse sentido, a identidade etnocêntrica dos defensores da reforma judicial – baseada, como Klein observou corretamente, na supremacia judaica entre o rio Jordão e o Mediterrâneo – é imensamente mais forte do que a identidade “liberal-democrática” da oposição. A identidade dos apoiadores desfruta de um alto nível de coerência interna, o que, por sua vez, fornece energia política aos seus membros. O zelo ideológico-colonial dos colonos na Cisjordânia, ou os membros dos “núcleos da Torá1” que se estabelecem em chamadas “cidades mistas2” dentro de Israel, são bons exemplos disso.
De fato, os líderes dos apoiadores do golpe estão tentando aumentar a correlação entre a identidade do grupo, a energia política e o projeto político, promovendo sua unificação dentro de um regime de real supremacia judaica – e não apenas uma interpretação antiliberal de um regime etnocêntrico judaico.
Por outro lado, mesmo que o campo que se opõe ao golpe judicial tenha sucesso em gerar uma energia política impressionante, será muito difícil estabilizá-la a longo prazo. Isso se deve ao baixo grau de coerência interna de sua identidade e à falta de correlação entre a identidade “pró-democracia” do campo e o modelo político ao qual aspira – ou seja, uma interpretação liberal de um regime etnocêntrico judaico.
Afinal, e ironicamente, em sua luta pela democracia liberal – que é conduzida sem convidar e até mesmo rejeitando os líderes dos cidadãos palestinos de Israel – os “líderes dos protestos” estão apenas fortalecendo o componente judaico do estado, agindo como um veículo para uma determinada comunidade que se considera com direito a moldar o rosto do estado de acordo com seus princípios fundadores.
Essa contradição é ainda mais evidente quando consideramos a ditadura militar imposta aos palestinos nos territórios ocupados. No geral, a oposição israelense é composta apenas por uma identidade etno-liberal e etno-democrática que carece de qualquer consistência, especialmente quando comparada aos seus rivais.
Conciliando o Dilema
No entanto, há uma saída. Para alcançar uma coerência interna baseada em valores liberais e democráticos, que gerará e preservará energia política suficiente para resistir aos arroubos de supremacia judaica do campo oposto, o movimento de protesto deve decidir afastar-se do apoio a uma etnocracia sob o disfarce de um estado “judeu e democrático” e caminhar em direção a um estado de todos os seus cidadãos. Essa decisão exige a criação de uma identidade nacional cívica.
O campo pró-governo já percebeu isso, muito antes dos opositores. Por exemplo, ao falar sobre a reforma judicial no canal de direita 14, o apresentador Yaakov Berdugo disse: “Estamos em outro evento, que é muito maior do que a reforma legal… uma luta entre um estado judeu e um estado de todos os seus cidadãos. A reforma é apenas o gatilho.” Ao analisar a paisagem política, Berdugo supôs que um movimento israelense que adota e enfatiza um discurso liberal-democrático inevitavelmente acabará rompendo suas barreiras étnico-cognitivas e adotará uma identidade verdadeiramente igualitária alcançada apenas em um estado de todos os seus cidadãos.
Essa não é uma ideia nova e enfrenta inúmeros obstáculos, mesmo além da incapacidade do movimento de protesto de abandonar sua compreensão etnocêntrica do estado. Em 2013, a Suprema Corte de Israel rejeitou um pedido de um grupo de israelenses para declarar que eram membros da “nação israelense” e permitir que mudassem a nacionalidade em seus cartões de identidade de “judeus” para “israelenses”. Os juízes decidiram que “não foi comprovado, legalmente, que existe uma ‘nação israelense’ e [que] não é apropriado incentivar a formação de novos ‘fragmentos’ de uma nação”.
Como era de se esperar, a Suprema Corte decidiu que o reconhecimento da nacionalidade israelense vai contra o caráter judaico do estado, prejudicando também seus laços com a diáspora judaica. No entanto, o raciocínio mais interessante da corte, que recebeu menos atenção, é que o reconhecimento da nacionalidade israelense também vai contra o caráter democrático do estado, uma vez que reconhecer tal identidade nacional cívica também pode prejudicar os cidadãos árabes do país.
“A adoção oficial, ou mesmo não oficial, do termo ‘o povo israelense’ pode, em vez de incluir a minoria árabe do ponto de vista nacional, excluí-la do ponto de vista cívico”, argumentou a decisão. “Muitos no público árabe evitarão, ou mesmo se recusarão expressamente, a se definirem como israelenses devido à ‘falta de neutralidade’ nacional deste nome, ou simplesmente por razões políticas”.
Se essa é a posição que a Suprema Corte – o “bastião do liberalismo” de Israel – toma em relação a tal questão, como se pode esperar que a oposição tente conciliar o dilema de uma identidade nacional cívica unificada? Até mesmo os próprios cidadãos palestinos enfrentam dificuldades para responder a essa pergunta, tendendo a criar uma desconexão pouco convincente entre a estrutura de um estado igualitário e o nacionalismo cívico unificado que ele promoverá.
Para superar o projeto de supremacia judaica, é necessário adotar o modelo do estado cidadão. Mas para isso acontecer, a questão israelense precisa ser respondida primeiro – ou seja, como criar um nacionalismo cívico igualitário que conecte a estrutura do estado cidadão com seu conteúdo nacional-cívico apropriado. Não é suficiente apenas criticar, mesmo que de forma justificável, a líder do protesto antirreforma judicial Shikma Bressler e seus amigos por sua incoerência política e moral e a cegueira de sua identidade liberal-democrática. Em vez disso, é preciso mostrar a eles a alternativa à supremacia judaica.
Para criar essa alternativa, precisamos realizar uma conversa bi-nacional sobre a questão israelense, levando em consideração as características religiosas, étnicas e nacionais dos dois grupos, a estrutura colonial da qual surgiram e foram moldados – e, acima de tudo, a necessidade de acabar com o sofrimento dos palestinos e a ditadura militar nos territórios ocupados.
1 Antigo Testamento
2 Cidades em que há uma quantidade importante de palestinos dentro de Israel, em particular Haifa, Beersheba e Jaffa.
Publicado originalmente em +972Magazine
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