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Quatro notas de viagem a Buenos Aires  

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

                                                                                           A coragem é a força de resistir

                                                                                      A coragem é a luz da adversidade

                                                                                           Ditados populares portugueses

1. Não há, por enquanto, informações disponíveis para uma previsão, fora de imensa margem de erro, de quem se posiciona na condição de favorito para as eleições de outubro. Prevalece a incerteza, admitida pelas empresas de pesquisas de opinião que identificaram a hesitação dos eleitores. O voto é obrigatório na Argentina, mas o sistema eleitoral é diferente do brasileiro. Embora o comparecimento eleitoral tenha tradição de ser maciço, este ano está colocada a possibilidade de uma abstenção muito elevada que, tendencialmente, prejudica mais o peronismo que a direita. O primeiro turno das eleições gerais, para prefeito de Buenos Aires, governadores na maioria das províncias e, também, a presidência, além do Congresso e dos deputados do Parlamento do Mercosul, acontecerá em 22 de outubro. No caso de ser necessário um segundo turno, que eles denominam balotaje, ele acontecerá no dia 19 de novembro. 

2. Mas antes e, muito diferente do Brasil, no próximo dia 13 de agosto, os argentinos irão escolher através de uma eleição primária aberta, simultânea e obrigatória (as Paso) quem serão os candidatos de cada partido. As quatro principais forças são:

(a) a coalizão de direita Juntos por ele cambio, onde Patrícia Bulrich, ex-ministra do governo de segurança do governo Macri, e linha dura reacionária, disputa indicação com o prefeito de Buenos Aires Horacio Larreta, mas o desfecho permanece muito indefinido;

(b) a frente União pela Pátria onde Sergio Massa, favorito inquestionável, porque tem o apoio das muitas alas do peronismo, inclusive de Cristina Kirchner, concorre contra Juan Grabois, liderança no Movimento dos Trabalhadores Excluídos (MTE), do movimento Pátria Grande, e que visitou Lula na prisão em nome do Papa, representante do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral do Vaticano;

(c) a coalizão de extrema-direita La Libertad Avanza liderada pelo perigoso Javier Milei, um candidato extravagante que centra a campanha na defesa da imediata dolarização da economia;

(d) a FIT, Frente da Esquerda e dos Trabalhadores, que tem quatro deputados nacionais, pela qual concorrem Myriam Bregman do PTS (Partido dos Trabalhadores Socialistas), com apoio da IS (Isquierda Socialista) e favoritismo, e Gabriel Solano do PO (Partido Obrero), com apoio do MST (Movimiento Socialista de los Trabajadores) de Vilma Ripoli. Outros partidos de esquerda também participarão das PASO, como Manuela Castanheira pelo Nuevo MAS, e Marcelo Ramal pela Política Obrera, mas só poderão concorrer na eleições de outubro aqueles que alcançarem 1,5% dos votos nas PASO.

3. Ainda que se possa estabelecer paralelismos dos ciclos políticos, eleição de Alfonsín e posse de Sarney, eleição de Menem e de FHC, eleição dos Kirchner e de Lula, a situação na Argentina é muito distinta da brasileira por, pelo menos, cinco grandes fatores: 

(a) o primeiro é a longa decadência do seu capitalismo periférico, com uma dramática desindustrialização, que mergulhou 40% da população abaixo da linha pobreza, empobreceu aquela que já foi a mais robusta classe média do continente, e se manifesta hoje em uma superinflação superior a 100% ao ano, e numa impagável dívida externa com o FMI, ou seja, comparativamente, embora a renda per capita argentina ainda seja 30% mais elevada que a brasileira, vem caindo ininterruptamente; 

(b) o segundo é uma relação social de forças estrutural que impõe um impasse estratégico sobre os destinos da nação, que se traduziu na colossal rebelião popular do final de 2001 e início de 2002, que derrubou de forma fulminante o governo De La Rua, um ano depois de eleito, a desconcertante sucessão de ouros quatro presidentes em uma semana e, sobretudo, na força social de choque do movimento operário e sindical, com taxas de filiação próximas a 40% (enquanto no Brasil está em 11%), de realizar quarenta greves gerais nos últimos quarenta anos, entre as mais disciplinadas e impactantes, contra todos os governos, inclusive os peronistas de Menem e dos Kirchner, além da potência do mais organizado movimento de trabalhadores desempregados do mundo, as várias organizações populares de piqueteiros, um arrebatador movimento de mulheres que levou às ruas gigantescas mobilizações feministas em defesa da legalização do direito ao aborto, um dinâmico movimento dos povos originários, como ficou provado na recente explosão de protestos de massas em Jujuy, por exemplo; 

(c) o terceiro é que o crescimento da extrema-direita, embora, ideologicamente, assustador e, politicamente, vertiginoso tem um teto eleitoral mais baixo, qualitativamente, que aquele alcançado pelo bolsonarismo no Brasil, porque se mantém viva a memória e o repúdio dos crimes da ditadura militar que se expressa, todos os anos, no dia 24 de março, na realização, em todo o país, de manifestações colossais, na escala de centenas de milhares, que se explicam porque  na sequência da desmoralização das Forças Armadas na derrota da guerra nas Malvinas, a Argentina viveu um processo de ruptura democrática que passou pela condenação à prisão, em 1985, dos chefes das Juntas que estiveram à frente dos governos da ditadura militar e, ainda que durante o governo Alfonsin tivesse sido votadas as leis de Punto final e Obediência devida, depois da semi-insurreição do ano 2001/02 ocorreu a revogação destas leis e a abertura de investigações contra os crimes, que prosseguem até hoje, com a identificação na semana passada, pelo movimento das mães e avós da Plaza de Maio, de um neto da família Santucho; 

(d) o quarto é a permanência tardia, porém, vigorosa do peronismo, um nacionalismo burguês progressista, contemporâneo do falecido getulismo no Brasil que foi deslocado pelo PT e pelo lulismo, unindo diversas e, aparentemente, incompatíveis correntes desde reacionários, neoliberais, social-democratas e até socialistas, como o movimento político que mantém maior influência nas camadas populares e recolhe, eleitoralmente, a maioria dos votos da classe trabalhadora;

(e) o quinto é que a representação político-eleitoral conservadora da direita da burguesia, embora em crise depois da derrota de Macri para Alberto Fernandez em 2019, e muito pressionados pela violência ideológica do discurso de Javier Milei, não desmoronou como aconteceu, no Brasil, com o MDB/PSDB e ainda é feita, essencialmente, por lideranças e coalizões de partidos tradicionais que priorizam a preservação do regime liberal e aceitam a disputa nos limites do respeito à alternância no governo;

4. Outra importante diferença é a força do trotskismo argentino, um dos maiores do mundo, ainda que sectário e muito fragmentado, hegemonizando o espaço à esquerda do peronismo, sobretudo, quando estão no poder, com capacidade de colocar em movimento algo em torno de dez mil militantes, entre os ativistas mais combativos, com implantação na classe operária, forte presença sindical, enorme influência no movimento piqueteiro, audiência no movimento feminista e presença no movimento estudantil, e uma Frente Eleitoral, a FIT que garante representação eleitoral nas principais cidades, províncias, além de quatro deputados nacionais no Parlamento, que se destacam no apoio às lutas populares e fiscalização dos governos, e prestígio político-intelectual, embora com pouco “instinto político de poder”. Esta peculiaridade se explica por, pelo menos, cinco fatores:

(a) porque se apoia em uma classe trabalhadora muito combativa, sindicalmente, classista, que resiste na defesa de seus direitos, e está concentrada na Grande Buenos Aires, diante do poder, uma megalópole, desproporcionalmente, imensa, onde vive mais da metade da população do país;

(b) porque o peronismo sobrevive há mais de meio século, mas os limites do “populismo”, um progressismo burguês abre um espaço político à esquerda, sobretudo, quando está no poder;

(c) porque o Partido Comunista na Argentina entrou em crise crônica e desmoralizou, em função de sua imperdoável localização durante a ditadura militar, porque as organizações inspiradas em variantes de guevarismo foram para a luta armada e destruídas pela repressão genocida, e o maoismo permaneceu, politicamente, marginal;

(d) porque tem audiência nos meios intelectuais como a principal corrente teórica marxista, e conseguiu atrair uma parcela importante dos melhores quadros na inteligência jovem há várias gerações;

(e) por último, mas talvez, mais importante, porque a subjetividade conta muito, tem uma longa e heroica tradição, formou muitos milhares de quadros sérios e abnegados, nos últimos cinquenta anos, e conquistou uma implantação social legítima. Merece respeito.