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A luta internacional das mulheres negras: um diálogo entre Lélia Gonzalez e Angela Davis

Letícia Lé

Letícia Lé é militante do movimento de juventude Afronte!, advogada formada na primeira turma de cotistas da Faculdade de Direito da USP e covereadora em São Paulo-SP pela Bancada Feminista do PSOL

Falar da luta internacional das mulheres negras é falar de importantes formas de organização dos movimentos sociais, que possuem origem ancestral. A organização, principalmente, de mulheres negras, as quais estão na base de uma estrutura desigual, envolve a articulação de estratégias para a sua sobrevivência.

A V Conferência Mundial sobre as Mulheres na China/Beijing, em 1995, ainda a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância na África do Sul/ Durban, em 2001 e, por fim, no Brasil, o I Encontro Nacional de Mulheres Negras (ENMN), em 1988, são alguns exemplos do ativismo organizado de mulheres racializadas.

Essa positiva movimentação de mulheres racializadas, especialmente no Brasil, com o movimento de mulheres negras, carregou como principal denúncia a sistemática discriminação de um grupo social. Sistemática, por envolver a análise de não só um, como diversos fatores estruturais envolvidos na lógica discriminante. Nesta seara, a articulação de pensamentos em torno de problemas centrais como raça, gênero e classe, em uma perspectiva conjunta, possui como uma de suas principais expoentes, no Brasil, a pensadora Lélia Gonzalez (1), a qual, com notável originalidade, destaca a necessidade da reflexão política acerca da discriminação.

No contexto das atividades articuladas pelas mulheres negras em seu ativismo, pode-se observar o desenvolvimento de uma compreensão política relativa aos lugares sociais anteriormente atribuídos a elas, tais como a figura estereotipada da “mãe preta”, da “mulata fogosa” ou da “doméstica quase da família”. Essa compreensão revela, de maneira impactante, as opressões interseccionais de raça, gênero e classe que fundamentam tanto a cultura contemporânea quanto as estruturas sociais.

Com o intuito de romper com esse lugar de subalternidade, as análises que procuraram investigar a discriminação por meio de uma perspectiva interseccional obtiveram destaque significativo no seio do movimento feminista negro. Nesse ponto, ou seja, no âmbito da interseccionalidade, encontramos um dos principais pontos de convergência entre Lélia Gonzalez e a intelectual estadunidense Angela Davis.

Antes de adentrar aos pensamentos das supracitadas intelectuais, importante ressaltar que a reprodução, seja no âmbito cultural ou intelectual, da subalternidade da mulher negra, nega a própria história nacional e internacional ao apagar a experiência desse grupo social enquanto protagonista de lutas e resistências, todas ligadas a uma memória ancestral, como explica Gonzalez (2020). No mais, tal apagamento significa contribuir para silenciar mulheres que, até os dias atuais, sobrevivem diariamente à base da expropriação socioeconômica, alicerce de projetos político-econômicos internacionais que ainda têm a comunidade negra como a massa explorada a serviço da economia exploradora.

Contudo, o elemento do racismo disfarçado, melhor elaborado na obra de Lélia González e que é fruto de uma formação social brasileira que sempre objetivou disseminar o mito da democracia racial, não é menor e ainda hoje impacta a organização dos negros e negras no nosso país. Apesar das consequências nefastas e violentas da opressão racial, inexiste, muitas vezes, a declarada assunção do racismo, de modo que os afetados, a população negra, encontram dificuldades para criticamente assimilá-lo. Não é por acaso que, apesar de sermos um país “orgulhosamente” multiétnico, o quadro político-nacional ainda é, quase que de maneira hegemônica, formado por homens brancos, que tipicamente “passam o bastão” de pai para filho há anos.

Assim, pensar os próximos passos para a organização das mulheres negras deve sempre ter como centro três aspectos que atravessam não somente as relações étnico-raciais, mas que marcam a estrutura política não só do Brasil, mas também em âmbito internacional: raça, classe e gênero. Justamente por essa posição tridimensional da situação da mulher negra, que sustenta a base sob a qual opera o atual mecanismo político-econômico de exploração, temos que o seu ativismo não altera somente a sua própria condição, como também atinge proporções sociais estruturais.

Nesse sentido, Angela Davis, em uma conferência realizada em Cachoeira/Bahia, em 2017, nos ensinou que: “quando as mulheres negras se movem, toda a estrutura política e social se movimenta”. É o centralismo da mulher negra na filosofia político-social de Lélia e Angela, a partir do reconhecimento da interseccionalidade, que constitui a maior contribuição das intelectuais à luta internacional – seja a geral, ou aquela adstrita às mulheres negras.

Lélia Gonzalez e Angela Davis são, então, e de certo modo, indissociáveis. Possuem, de maneira clara, um comum ponto de partida para as suas formulações teóricas, sendo ele a compreensão de que a população negra em diáspora está submetida a uma condição particular de opressão que afeta não somente sua realidade direta, mas também as estruturas sociais.

Em “Por um Feminismo Afro-latino-americano”, Lélia observa brevemente uma das principais diferenças dos aspectos nacionais em que elaboram as duas autoras. No Brasil, o movimento feminista teve, em um primeiro momento, uma relevante ascensão nos debates relativos à sexualidade, violência, classe e outros, os colocando em pauta perante as massas, mas deixando de lado um dos temas centrais quando devemos pensar a transformação social do Brasil: a raça. Esta condição explica a necessidade e dá origem à elaboração de um novo feminismo por Lélia Gonzalez e por tantas outras mulheres negras.

Já nos Estados Unidos, o surgimento do movimento feminista e da sua luta se dá como consequência das contribuições do movimento negro e, por isso, as questões podem ser pensadas de forma entrelaçada mais cedo pelos pensadores estadunidenses. Isso, de modo algum, significa que não houve o apagamento das mulheres negras em suas próprias histórias. Frederick Douglass, em sua autobiografia, diz que “quando a verdadeira história da causa antiescravagista for escrita, as mulheres ocuparão um vasto espaço em suas páginas; porque a causa das pessoas escravas tem sido particularmente uma causa das mulheres.”

Além disso, as contribuições da estadunidense Angela Davis impulsionam debates importantíssimos, dentre eles, um que é muito latente no Brasil, o tema do encarceramento em massa e a necessidade de abolição das prisões. Pensar a luta das mulheres negras hoje é, sem dúvidas, pensar o que tem sido o genocídio da juventude negra, ou o seu aprisionamento de forma sistemática. Principalmente através do mecanismo da guerra às drogas, as mulheres negras, quando não são elas mesmas as que estão sendo presas, têm visto seus irmãos, pais, maridos e filhos como alvo dessa política de extermínio.

Não à toa, uma das maiores potências em forma de organização de mulheres que são, em sua maioria, negras, no Brasil, são as Mães de Maio, que nas palavras de Débora Silva, uma das fundadoras do movimento, “o Mães de Maio é um movimento de mulheres donas de casas, mas que aprendeu, ao longo desses anos, a trabalhar com esse sistema. E quando as donas de casa saem de suas casas e começam a militar perante o Brasil, acabam ultrapassando as fronteiras. O nosso grito é um grito que tem que ecoar porque nosso país é um país omisso. É inaceitável que em maio de 2006, no espaço de uma semana, se matem mais de 600 pessoas”.

Esse tema é só mais um dos temas de encontro entre as leituras de Angela Davis e Lélia González e também das mulheres negras de diversos países, de modo que ambas análises culminam em uma conclusão: o movimento político de mulheres negras, seja qual for seu contexto, é catalisador de mudanças sociais a nível estrutural, de modo que não somente uma estrutura é atingida, como tantas outras.

É central, portanto, para que pensemos os próximos passos da luta feminista e do movimento negro, a compreensão do protagonismo de mulheres negras em lutas históricas, nacionais e internacionais. A ancestralidade e a identidade amefricana, resgatando o conceito de Gonzalez, carrega fulcral relevância no contexto político-econômico internacional, hasteado às mãos da população negra explorada economicamente. Nesta esfera, o engajamento e protagonismo das mulheres negras na preservação de memórias, tradições e narrativas africanas, assumem um ponto de resistência de marcante importância, transcendendo a inalienável relevância da luta política.

Neste 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, que não nos esqueçamos que nossos passos vêm de longe!

Notas

“Intelectual e ativista negra, Lélia de Almeida Gonzalez (1935-1994) destaca-se por sua produção e por intensa atuação política contra o racismo e o sexismo. Filha de uma empregada doméstica de origem indígena e de um homem negro, ferroviário, pertencente a uma extensa família operária, Lélia migra de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro em 1942, onde se forma em história e filosofia, tornando-se professora na rede básica de ensino e no ensino médio, lecionando em escolas públicas e privadas. Realiza mestrado em comunicação social e doutorado em antropologia, tornando-se professora e pesquisadora na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, entre 1978 e 1994. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/autor/l%C3%A9lia-gonzalez>