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A história não está do lado do Brasil

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Comboio com veículos blindados e armamentos passa pela Esplanada dos Ministérios

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Experiência é o que fica, depois de se perder tudo o resto.
A experiência que não dói muito pouco ou nada aproveita.
Provérbio popular português

 

O grande sonho da nossa esquerda no século XX foi o desenvolvimentismo. A “utopia brasileira” era o matrimonio da democracia com um capitalismo de “justiça social”. Abraçaram o projeto de que, através das pressões sociais dos trabalhadores e juventude, no marco de um regime liberal-eleitoral, seria possível aproximar o país dos padrões de vida material e cultural que foram construídos na Europa, após a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.

Prevalecia a esperança de que um progresso linear, ainda que lento, iria abrir o caminho para a erradicação da miséria. A aposta política era que a coexistência pacífica entre os EUA e a URSS, na arena internacional, favorecia a continuidade de investimentos estrangeiros na industrialização. A confiança de que “a história estava a nosso favor” alimentava o projeto de modernização da “nação tropical”.

A ditadura militar, precipitada na sequência da vitória da revolução cubana, e do pânico burguês do perigo “iminente” da influência do comunismo derrotou esse sonho durante vinte anos. Mas não o enterrou.

Mesmo depois da tragédia do golpe de 1964, que abateu uma geração educada pela influência majoritária do PCB, este programa ainda inspirou a geração seguinte, liderada por Lula e PT. Esta estratégia reformista se apoiou na aprovação da Constituição de 1988, na ampliação de direitos sociais que prometia a universalização da educação e da saúde públicas, a elevação ininterrupta do salário mínimo, o pleno emprego em uma economia em crescimento pela expansão do mercado interno, e a redução da desigualdade social obscena.

Durante vinte e cinco anos esta expectativa se manteve viva. Nunca existiu um intervalo tão longo de regime democrático estável no Brasil, com sete eleições presidenciais sucessivas, alternância de governos e, mesmo depois da restauração capitalista e do fim da URSS, quatro delas com ininterruptas vitórias do PT, o maior partido de esquerda da América Latina.

Durante treze anos predominou o otimismo, ainda que moderado: crescimento e concertação social, e implantação de um conjunto de reformas que reduziram a pobreza extrema pareciam confirmar que, lentamente, o Brasil melhorava. O “melhorismo”, ou reformismo “fraco” foi ideologizado. Mas a “história” não tem uma país de “estimação”. O PT não teve disposição de desafiar os limites da concertação com os grandes capitalistas, mas a burguesia não teve pudores de romper com o governo Dilma Rousseff.

Veio o golpe institucional de 2016 para garantir uma ajuste econômico-social neoliberal de emergência, e impedir uma provável eleição de Lula em 2018 para um quinto mandato. Na sequência trágica dos sete anos seguintes foram acumuladas derrotas políticas e sociais que reverteram os direitos conquistados na intensa luta de classes da década de oitenta: reforma trabalhista que precarizou as relações de trabalho, reforma previdenciária que destruiu conquistas, arrocho salarial e privatizações.

No “laboratório” da história se confirmou que a classe dominante brasileira não tinha compromisso com o regime democrático-liberal. Ao contrário, a massa da burguesia se deslocou, apoiada na radicalização da maioria das camadas médias, vertiginosamente, do apoio a uma direita dura, para a defesa do bolsonarismo, uma corrente neofascista.

Há várias hipóteses de explicação para este giro. Duas delas, elaboradas por campos político-sociais opostos, demonstraram-se erradas: (a) a necessidade de impedir a precipitação de uma situação revolucionária, três anos depois de 2013, afinal, o impulso progressivo de inícios de Junho já tinha sido derrotado, e não havia mais este perigo; (b) a necessidade de conter a operação LavaJato que ameaçava não somente o PT, mas o conjunto dos partidos do regime, como o PSDB, MDB, PFL e seus satélites porque, se  foi decisiva para legitimar o golpe, não foi interrompida com a posse do governo Michel Temer.

As três hipóteses mais interessantes, e não excludentes, são: (a) a econômica, ou a necessidade de provocar uma recessão, e um ajuste fiscal de emergência, para recuperar a taxa média de lucro, e controlar a inflação; (b) a política, ou a necessidade de impor a alternância no governo, ou impedir uma quinta vitória eleitoral do PT; (c) a estratégica, ou a necessidade de reposicionar o Brasil no mercado mundial e no sistema internacional de Estados, atraindo investimentos externos.

O que nos remete ao lugar do Brasil no mundo. Nenhum país periférico saiu da condição de dependência sem guerra ou revolução. A ordem mundial imperialista é rígida. Na periferia do capitalismo há formas variadas de inserção entre os países dependentes. Existiu uma peculiaridade na posição do capitalismo brasileiro. Singular, porque atípica na América do Sul, o Brasil pode ser compreendido como uma semicolônia privilegiada e, ao mesmo tempo, como submetrópole regional: um híbrido.

A chave de interpretação da ideia de híbrido deve ser procurada na ideia de síntese entre semicolônia e submetrópole. Ou de síntese entre a condição de dependência econômica, limitada pela necessidade de importação de capitais, e a posição subimperialista de potência regional, exportadora de capitais. Por isso, o Brasil tem um estatuto híbrido ou complexo. Porque a posição do país se explica como um amálgama estranho que só o desenvolvimento desigual e combinado poder elucidar. Um híbrido é algo de uma qualidade diferente tanto de uma semicolônia privilegiada, quanto de uma submetrópole regional. Combina qualidades de ambos.

O Brasil é um país dependente, ou uma semicolônia privilegiada porque, apesar das dimensões de sua economia, permanece um país atrasado em toda a linha. Alguns dos países vizinhos são muito mais atrasados, outros menos, mas o Brasil permanece arcaico. Sobrevivem, entre nós, relações econômicas obsoletas, privilégios sociais absurdos, e tradições políticas grotescas.

Sempre dependemos da importação de capitais e tecnologia, e temos uma burguesia resignada a um papel subordinado a Washington no sistema de Estados. Alinharam-se até com Trump. O Brasil mantém uma histórica vulnerabilidade externa: embora somente 20% do PIB esteja em relação direta com o mercado mundial, a condição de dependência estrutural se expressa na tendência de um déficit crônico no balanço de pagamentos, que só se equilibra com a entrada anual de IED (Investimento Externo Direto) que gira em torno de 4% do PIB.

Não obstante, o Brasil é um país dependente e periférico muito especial, porque privilegiado. Tem um dos maiores mercados internos de consumo de bens duráveis do hemisfério sul, e a acumulação de capitais ganhou escala, de tal forma, que se formou uma burguesia nacional, ainda que associada, estruturalmente, aos interesses imperialistas. Existe, também, uma poderosa burguesia interna. A fração compradora da classe dominante é minoritária.

Essa inserção peculiar se expressou, ao longo de décadas, de distintas formas. Quando da crise da superinflação provocada pela inadimplência da dívida externa, por exemplo, ao contrário de muitos vizinhos, a economia brasileira nunca foi, plenamente, dolarizada. Manteve-se o controle monetário através de um sistema bancário nacional muito sofisticado.

Ao mesmo tempo, o Brasil é uma submetrópole, porque o gigantismo da economia brasileira ofereceu dimensão, e projetou presença de algumas grandes empresas nos mercados de países vizinhos da América do Sul transformando-se, também, em plataforma de exportação de capitais e serviços. Mas não é um país imperialista, porque sua pujança econômica não se traduziu em domínio político: o projeto do Mercosul garantiu superávits comerciais, porém, permaneceu, politicamente, estéril e acéfalo.

Não se trata, portanto, de uma simples sobreposição de estatutos. É um fenômeno diferente. Mas não é único no mundo. O lugar Brasil não é equivalente ao da Argentina, em função da decadência dos últimos cinquenta anos. Mas a fantasía de que o papel do Brasil seria semelhante ao da Índia está, também, errado. O tema é discutido no mercado, na ONU e na academia e foram elaboradas fórmulas como “Brics” e “emergentes”. Marxistas de outras tradições conceituaram subimperialista (Ruy Mauro Marini), ou economia associada capital-imperialista periférica (Virgínia Fontes).

A hipótese do híbrido – semicolônia privilegiada, submetrópole periférica ou dependência especial – é a mais fértil, embora permita leituras com nuances variadas ou ênfases distintas. O papel do Brasil no mercado mundial não tem correspondência direta com seu papel no sistema internacional de Estados. O Brasil obteve um lugar no mercado mundial superior à sua presença no sistema de Estados. Tem mais importância econômica que poder político.

A aposta política numa grande concertação desenvolvimentista com a classe dominante, apoiada no respeito burguês à democracia, em um país da periferia, permanece uma ilusão. Os EUA apoiaram até um monstro como Pinochet. Insistir na mesma estratégia reformista e esperar resultados diferentes não é sensato. A história não está a favor do Brasil. A história está em disputa.

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