Ucrânia: o fim do Acordo de Grãos e as perspectivas do conflito

Henrique Canary, da redação

O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskóv, anunciou nesta segunda-feira (17) que a Rússia estava se retirando do “Acordo de Grãos” ou “Iniciativa do Mar Negro”, tratado que permitia a passagem de navios carregados com grãos ucranianos por um corredor humanitário especial no noroeste do Mar Negro. A informação foi logo confirmada pelo Ministério das Relações Exteriores da Rússia, se tornando, portanto, oficial.

Assinado em julho do ano passado entre a Turquia, a Rússia, a Ucrânia e a ONU, o Acordo de Grãos, que expirava esta semana, permitia que a Ucrânia exportasse seus produtos agrícolas pelos portos de Odessa e Nikoláiev com a garantia de que os navios não seriam bombardeados pela Rússia e depois seria permitida sua passagem pela Turquia através dos estreitos de Bósforo e Dardanelos (Mar de Mármara). A assinatura do acordo era considerada uma vitória diplomática da Turquia, que mediou as negociações. Ontem mesmo, no entanto, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan lamentou o fim do acordo e disse que o tratado “passava para a história”. Com o fim do arranjo, a Rússia já declarou que o noroeste do Mar Negro volta a ser zona insegura para embarcações e pode estar sujeito a ataques.

A Rússia alega que sua retirada do acordo deve-se ao fato de que ele não foi cumprido. Segundo o governo russo, dos 33 milhões de toneladas de grãos exportadas em um ano, apenas 30% foram para países pobres e em desenvolvimento, ao contrário do que fora prometido pela ONU quando da assinatura do acordo. Todo o resto acabou indo para Europa e Estados Unidos para aliviar a pressão inflacionária nos países membros da OTAN. A União Europeia nega. Além disso, foi prometido que o Rosselkhozbank, o banco agropecuário da Rússia, seria reconectado ao sistema SWIFT, o que também não ocorreu. Por fim, a Rússia acusa o Ocidente de traficar armamentos para a Ucrânia via corredor humanitário. Estes três elementos estariam na base da não-renovação do acordo.

Ontem mesmo Zelenski declarou que a Ucrânia está disposta a seguir com as exportações via noroeste do Mar Negro e solicitou ajuda da marinha turca para isso. Erdogan não se posicionou sobre este pedido específico, já que o envolvimento da Turquia em operações em águas consideradas perigosas poderia acarretar o enfrentamento direto com a frota russa.

A questão tem grande importância para a Ucrânia, dado o caráter exportador de sua agropecuária. O solo ucraniano é considerado um dos mais férteis do mundo, graças ao fenômeno da “terra negra”, “tchernossolo” ou “tchernoziom”. Além disso, uma parte importante das terras agricultáveis ucranianas está sob controle de empresas multinacionais, que pressionavam pela renovação do acordo.

A decisão de Putin de não renovar o tratado foi tomada em meio a novos fatos da guerra, principalmente o ataque realizado também ontem contra a Ponte da Crimeia, uma gigantesca construção de 19 quilômetros que liga a Rússia continental à península. A ponte foi bombardeada por drones no início da manhã e teve um trecho destruído. É o segundo ataque à construção desde o início da guerra. A Ponte da Crimeia tem importância não apenas prática, mas também simbólica. Ela foi construída em tempo recorde pela Rússia depois da reanexação da Crimeia em 2014 e se tornou um símbolo da presença russa na região.

Especialistas já apontavam que o mais provável era a não-renovação do acordo por parte da Rússia, sobretudo depois que a Ancara devolveu à Ucrânia vários comandantes do Batalhão Azov que estavam presos na Turquia, em descumprimento ao acordo firmado com a Rússia de que eles permaneceriam no país até o fim da guerra. Pesou também na decisão russa a resolução norte-americana de enviar à Ucrânia bombas de fragmentação.

De um modo geral, o fronte tem se mantido relativamente estável, com poucos ganhos por parte do exército ucraniano e, segundo todos os relatos, perdas importantes em material bélico e pessoal. A assim chamada “contraofensiva de primavera” (já estamos no verão europeu) tem sido mais difícil do que previram os especialistas.

Soma-se a isso a recente reunião da OTAN em Vilnius, Lituânia, que estabeleceu um plano, ainda sem prazo, para a Ucrânia se juntar à OTAN. Tudo isso tem contribuído para o acirramento das tensões e impedido qualquer ideia de negociações de paz.

Recentemente, o cientista político Serguei Karagánov, presidente do Conselho de Política Externa e de Defesa, uma espécie de think tank putinista com importante peso na Rússia, e reitor da Faculdade de Economia Mundial e Assuntos Internacionais da Escola Superior de Economia de Moscou, defendeu em artigo que a Rússia realize um ataque nuclear preventivo contra alvos ocidentais, com o objetivo de vencer a guerra. O ex-presidente da Rússia e atual vice-presidente do Conselho de Segurança da Federação Russa, Dmitri Medvédiev, também se manifestou no sentido de que uma guerra nuclear não somente era possível, como era uma das variantes mais prováveis do desenlace da atual crise. Em geral, pode-se afirmar que o discurso nuclear está bastante naturalizado na Rússia. Cada vez mais a vitória na guerra é dada como “existencial” para o país, o que promove a discussão sobre o Armagedon.

O que vemos, portanto, tem sido um acirramento dos ânimos e a destruição (simbólica e prática) das poucas pontes que existiam entre os lados beligerantes. Tudo aponta para a continuidade dessa dinâmica no próximo período.

Enquanto Europa e Estados Unidos reforçam o exército ucraniano com dinheiro e armanentos, a extrema-direita nos dois lados do Atlântico cresce vertiginosamente, entre outras coisas, graças a um discurso contra o esforço de guerra e de que é preciso encerrar o conflito, pois ele prejudica sobretudo os cidadãos comuns. Ou seja, a extrema-direita é o único lado que já venceu esta guerra. Isso inclui Trump nos Estados Unidos, Marine Le Pen na França, Orban na Hungria, a AfD na Alemanha e quem sabe outros.

Como mencionou Lula em sua atual viagem à Europa, o que estamos assistindo é o incremento da máquina de guerra de todas as maiores potências mundiais, com enormes recursos sendo retirados da esfera social e sendo direcionados para uma nova e intensa corrida armamentista. Mais do que nunca, é necessário um cessar-fogo que faça avançar negociações de paz, uma paz democrática, sem anexações, fundada na retirada das tropas russas das regiões ocupadas e da OTAN de todo o leste europeu.