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BRASIL

O STF e a classe trabalhadora: uma contradição federal

Fábio José de Queiroz, de Fortaleza (CE)
Valter Campanato/Agência Brasil

Depois do esmagamento da frente popular, traduzido na derrubada de Dilma e na prisão do Lula, uma reação poderosa se arrastou na esteira desses acontecimentos, expressa sobretudo em uma ofensiva brutal contra os direitos da classe trabalhadora.

A “reforma” trabalhista, realizada no governo do golpista Temer, e a da previdência, levada a cabo pelo inelegível, retiraram do arcabouço legal uma série de conquistas dos(as) trabalhadores(as).

Desde a época em que essas investidas contra a nossa classe foram ganhando vulto, a crítica aos governos e ao parlamento não deixou de ser um aspecto prioritário e necessário na pauta cotidiana dos sindicatos e de entidades afins. Muitas vezes, e de modo acertado, se disse cobras e lagartos do executivo e do legislativo, uma vez que eles eram sujeitos políticos identificáveis dos ataques.

Estranha-me, no entanto, o silêncio quanto à atitude do Supremo Tribunal Federal como parte das operações que, nessa quadra política em exame, são responsáveis por uma investida excepcionalmente cruel contra as conquistas e as proteções das pessoas que constituem o chamado mundo do trabalho.

É desse estranhamento que se nutre este artigo.

O STF e o esvaziamento dos direitos da classe trabalhadora

Se é com a análise concreta que se começa a política, como escreveu Trotsky, não custa analisar como o STF tem respondido aos reclames das representações sindicais quanto à proteção dos direitos violados por governos e patrões.

Não é difícil demonstrar como, em geral, a principal instituição do judiciário brasileiro atua no sentido de consolidar a política neoliberal de retirada ostensiva dos direitos adquiridos ao longo de décadas de lutas da classe que vive da venda de sua força de trabalho.

Irei me ater a quatro exemplos que dão materialidade às inclinações do STF no sentido de, em harmonia com os demais poderes do Estado, convalidar agressões contra os direitos da classe trabalhadora.

Dito isso, um exemplo palpável pode ser observado nos questionamentos à contrarreforma trabalhista. Uma das contestações apreciadas pelo STF referia-se ao regime de trabalho de 12/36, que, a partir da mencionada contrarreforma, poderia ser objeto de acordos individuais entre as partes e não mais o resultado de negociações coletivas. Pois bem, a mais alta corte do país tirou o sindicato do meio do caminho e deixou a estrada livre para que o empregador “negocie livremente” com o empregado.

Há quem diga que o STF está dividido entre os juízes “garantistas” e os “punitivistas”. Nesse caso, ficou nítido que as únicas garantias que são asseguradas pelo Supremo, quando refere-se às relações capital e trabalho, são as que dizem respeito aos interesses dos grandes capitalistas e de seus sócios menores. Sob os protestos de vozes virtualmente abafadas, o retrocesso promovido pela “reforma” trabalhista foi sacramentada pelos juízes da principal corte de justiça do Brasil. O punitivismo uniu todos eles.

Há um segundo caso, igualmente doloso. Trata-se do tema do valor da pensão por morte, que antes da Contrarreforma da Previdência, correspondia a 100% do benefício. O que fizeram o inelegível e o Congresso Nacional? Rebaixaram esse valor a 50% sobre o valor da aposentadoria, acrescida de cotas de 10% por dependente, que, evidentemente, não poderá ultrapassar 100%. Apesar desse acréscimo, o que de fato conta é que o valor da pensão por morte, em termos objetivos, foi reduzido pela metade, e um direito adquirido se viu gravemente lesado. A quem apelar? A questão alcançou o STF, que tomou o direito adquirido e lhe aplicou o golpe final, reconhecendo a legalidade da infâmia.

Mas essa postura do Supremo Tribunal Federal não se restringe às contrarreformas. Mesmo quando trabalhadores(as) arrancam uma conquista, a principal instância do judiciário nacional não se furta a um alinhamento inequívoco com os patrões e as políticas neoliberais, conforme se estabeleceu diante das controvérsias em torno do piso da enfermagem.

Aprovado pelo parlamento, depois de uma longa jornada de luta da categoria, “O piso estava suspenso desde setembro de 2022, por decisão liminar do ministro Roberto Barroso, depois confirmada pelo restante do STF, após uma provocação do setor patronal privado”. (Jornal Extra, 14/07/2023). Agora, finalmente, o Supremo se posicionou, piorando a lei, e não simplesmente a interpretando.

Os patrões da saúde terão 60 dias para negociar, ou seja, chorar pitangas, ameaçar, coagir, e, por fim, quem sabe, puxar o piso para baixo. De fato, só a União está obrigada a cumprir, sem reservas, a lei do piso, uma vez que Municípios, Estados e unidades de saúde que atendam 60% pelo SUS devem pagar o valor aprovado no Congresso Nacional à medida que recebam repasses federais para atender a esse fim.

Contou para realização dessa operação sinistra a firme unidade do “punitivista” Roberto Barroso e do “garantista” Gilmar Mendes com o bolsonarista Nunes Marques e o antibolsonarista Alexandre de Moraes. Em suma, na hora de demolir o edifício das proteções sociais e trabalhistas, as distintas alas do STF se unificam. Foi isso que, no caso do piso da enfermagem, assegurou uma goleada de 8×2 contra os profissionais da saúde, visto que se piorou o conteúdo da lei aprovada no parlamento.

Por fim, e não menos importante. Não custa recordar que a “reforma” trabalhista constituiu também uma “reforma” sindical, em que os sindicatos foram deixados aos tubarões, praticamente sem fontes de financiamento. Há conversações do movimento sindical com o governo Lula no sentido de dotar as entidades representativas dos(as) trabalhadores(as) de fontes de financiamento minimamente estáveis, mas ainda sem um arremate.

Muito bem. Enquanto as conversações prosseguem, o tema da “taxa” assistencial está nas mãos da alta corte de justiça. Nesse momento, a votação no plenário do Supremo está 5×0 para o reconhecimento da contribuição assistencial, mas não custa lembrar que tudo estava andando relativamente bem até o ministro Alexandre de Moraes fazer um pedido de vista, interrompendo assim o julgamento, que só agora retornou. Enquanto isso, os sindicatos esperam debaixo do sol.

O que fica nítido é que as críticas a Moraes por comandar o processo que acabou na inelegibilidade do ex-presidente da extrema-direita, deveriam voltar suas baterias em outra direção. Os juízes do TSE, cuja composição engloba integrantes do STF, tornaram o antivacina inelegível porque se convenceram da incompatibilidade entre o neofascismo e o funcionamento ordinário do judiciário, incluindo aí a integridade física de seus membros. Foi uma decisão de sobrevivência (o fato de Alexandre de Moraes – junto com a família – ser hostilizado no aeroporto de Roma é apenas um indício dessa circunstância).

Esse é um lado da questão. Mas há outro, que diz respeito à atitude de solidariedade do judiciário brasileiro, encabeçado pelo Supremo, em relação às forças de mercado e ao receituário neoliberal, que, em última hipótese, reforça a retórica de que melhores condições laborais representam uma perigosa ameaça às empresas. Calar a esse respeito, certamente, é tão inaceitável quanto criminoso.

Que conclusões extrair desta leitura?

A classe trabalhadora e suas organizações não devem assistir inertes aos conflitos que se desenrolam entre as instituições do Estado. Será sempre necessária uma análise concreta de cada situação, mas essa análise reclama posições políticas. Do contrário, os movimentos sociais e a esquerda se transformarão em meros expectadores. Nessa perspectiva, era correto se posicionar contra o inominável no tema da inelegibilidade. Era preciso fazer recair a responsabilidade sobre os seus ombros, sem perdão, sem anistia.

Isso significa renunciar em fazer as denúncias contra o poder que, momentaneamente, enfrenta o ex-presidente fascista, à medida que esse poder afronta os direitos da classe trabalhadora? Seguramente, não! É necessário descobrir com exatidão o ponto principal de seus ataques contra a nossa classe. Partindo daí, é essencial e urgente enfrentar esses ataques. O primeiro lance nessa direção passa por elucidar o papel de classe desempenhado por esse poder do Estado.