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MOVIMENTO

As divisões na esquerda radical e os meios para as conjurar

Por Manuel Afonso, do Semear o futuro, de Portugal

Juan Miró, Azul II

A ilusão é o alimento mais tenaz da consciência coletiva.
A história ensina, mas não tem alunos.
Antonio Gramsci[1]

A história da esquerda anticapitalista, em geral, e do trotskismo, em particular, mas não só, é recheada de divisões. Ao longo desta história criou-se, em muitos segmentos da esquerda, sobretudo na que se afirma mais revolucionária, um tipo de regime partidário que encara a divisão como a forma natural e inevitável de resolução das diferenças políticas. Isso é trágico, porque esse método torna impossível a construção de partidos de esquerda e anticapitalistas que não estejam em crise constante e que possam ter influência de massas.

Um regime de cisões permanentes e direções homogéneas é a prática normal de grande parte da esquerda, em particular da esquerda radical ­­― ainda que nem sempre tenha sido assim. Esse regime pode servir para manter grupos pequenos que têm como objetivo «manter a chama acesa» e se contentam em «não capitular ao reformismo» ― objetivos altamente defensivos. Mas não serve para unir as e os revolucionários, construir partidos de massas e derrotar o sistema capitalista. Portanto, este não é um problema qualquer. Nem é um problema específico de determinada organização: é um debate central sobre o futuro da luta anticapitalista. Todas e todos nela temos de nos olhar autocriticamente a essa luz.

Se analisarmos a história da esquerda radical e, em particular, mas não só, do trotskismo (do qual se reivindica o autor destas linhas) nos últimos 40 anos, verificamos que a maioria das cisões não acontece por questões programáticas, estratégicas ou de princípio. As divisões, muitas vezes, dão-se em torna de opções táticas que, por importantes que sejam a cada momento, são secundárias face aos objetivos de quem luta pelo socialismo.

Esta situação cria um problema. Quando há mudanças na situação política é natural que surjam diferentes explicações, interpretações e opiniões relativas ao modo de superar a crise ou como encarar a nova situação. Naturalmente, estas concretizam-se em diferenças de opinião sobre qual a melhor tática em relação à intervenção na realidade ou sobre as orientações de construção partidária. Contudo, perante essas divergências naturais e inevitáveis, em muitos casos, rapidamente se instala um ambiente de tensão e a perspectiva de cisões, o que contamina todo o debate. Surgida uma divergência tática, o espetro da divisão começa a rondar.

Em parte da esquerda, isso passou a ser encarado como natural. Os marxistas do passado tinham outra visão. Trotsky explica:

O surgimento de frações é inevitável, mesmo no partido mais maduro e harmonioso, a partir do momento em que ele estende a sua influência a novas camadas; devido ao aparecimento de novas questões; às viradas bruscas que se produzem na situação; à possibilidade que a direção possa cometer erros, etc.[2]

Lenine tinha uma opinião semelhante:

O crescimento e a extensão do movimento revolucionário, a sua penetração nas profundezas cada vez maiores no seio das diversas classes e camadas sociais, fazem necessário o nascimento incessante (e isto é o melhor) de novas tendências e nuances.[3]

Acrescenta que são

nuances sobre as quais pode-se e deve-se discutir, mas pelas quais seria absurdo e pueril separar-se […]. A luta das nuances dentro do partido é inevitável e necessária enquanto ela não conduza  à anarquia e à cisão, enquanto prossiga dentro dos limites aprovados, em comum acordo, por todos os camaradas e membros do partido.[4]

O Partido-Fração é uma máquina de fazer divisões

A concepção de regime que predomina hoje em grande parte da esquerda revolucionária leva à constituição de direções monolíticas de tipo partido-fração.

O que significa isto? Significa que se considera inevitável que toda a diferença se transforme numa tendência, uma tendência numa fração e uma fração numa cisão. Isto significa que as fronteiras das organizações deixam de ser definidas pelos princípios, estratégia e programa e passam a sê-lo por questões secundárias, muitas vezes táticas. Ir sozinho ou coligado a eleições? Como intervir nos novos movimentos? Em torno destas e doutras questões conjunturais começam a cristalizar-se agrupamentos no interior das organizações, que logo iniciam uma virulenta luta entre si. Na conceção fracional, o surgimento de discordâncias táticas é visto como o surgimento de outro projeto de partido, o que faz com que quem apresenta estas diferenças seja encarado como um perigo ― ou até um inimigo, mesmo que inconsciente ― da organização. Assim, a rutura com quem tem discordâncias é vista como justificável e até como imperativa.

Esta conceção encerra contradições, dado que as conjunturas mudam e, com elas, a política partidária. Por isso, se num primeiro momento, o partido-fração parece definir-se de acordo com uma tática específica, com o tempo, o eixo definidor deixa de ser a tática x ou y. Ele passa a ser a autoridade de uma direção de onde emanam a política e as táticas, vistas como incontestáveis. Assim, a definição do partido pelas táticas, aos poucos, transforma-se na definição do partido pela lealdade pessoal a uma direção ou a um conjunto de dirigentes ― às vezes um só. Desta forma, quando um conjunto de militantes contesta a político do núcleo-duro de dirigentes é encarado como quem contesta o próprio partido e a sua razão de ser.

As cisões permanentes não têm, então, muitas das vezes, origem no abandono das conceções estratégicas e de uma perspetiva revolucionária. Nem sequer nas discordâncias táticas em si. O problema central é a ideia de uma direção incontestável, que não pode ser posta em causa. Essa ideia não surge necessariamente de privilégios materiais que as direções possam ter ― basta ver que isto acontece sobretudo em organizações pequenas, onde nem há meios para alimentar eventuais privilégios. A tendência às cisões resulta, sim, da ideia que o núcleo dirigente ― e não o programa do partido ― é a garantia da sobrevivência da organização, dos acertos políticos e da não capitulação.

É por isso que os debates políticos rapidamente tomam a forma de lutas entre quadros, de lutas pessoais. Isto sucede porque o que se defende ― ou o que se contesta em muitos casos ― não são as ideias dos dirigentes, mas a sua autoridade. O problema reside, precisamente, numa conceção em que o uma organização se une não em torno de ideias, mas da autoridade de um punhado de dirigentes de onde emanam, supostamente, as únicas táticas «verdadeiramente revolucionárias».

Os métodos fracionais

Narrativas como a «pressão pequeno-burguesa vs. pressão operária»são usadas para justificar a luta fracional e a defesa (ou o ataque) a uma determinada liderança. A partir do momento em que determinada ala é taxada nestes termos ― pequeno-burguesa, reformista, liquidacionista, etc. ― todos os métodos passam a ser válidos, pois supostamente tais camaradas passam a ser «inimigos». A mentira, a calúnia, a deturpação das posições políticas ou mesmo o sequestro de meios partidários e o recurso à justiça burguesa passam a ser utilizados. Vale tudo. Devido a estes métodos, as relações de confiança quebram-se, os militantes desmoralizam e as ruturas tornam-se quase inevitáveis. Sobra um lastro de desmoralização: nada com futuro se constrói sobre essa base.

Isto começa logo na forma como se dão os debates políticos. Se se pode entender que, na discussão oral, existam alguns excessos, isso não é admissível na forma escrita, em que há tempo para refletir. Importa esclarecer que a questão do tom do debate não é secundária. O tom exaltado e agressivo obedece à lógica do Partido-Fração, está ao serviço de colocar quem discorda da direção (ou da sua maioria) como inimigo. Serve para apresentar a porta da rua como a serventia da casa.

É grave a caricatura de posições dos oponentes, imputando afirmações que estes não defendem. Balancear a atividade do partido de forma a demonstrar que todos os problemas resultam da existência de divergências ou são culpa de quem discorda é uma forma de fracionar o partido. Jogos de bastidores e manobras administrativas para conseguir mais ou menos influência têm o mesmo resultado. Porém, todos estes métodos são demasiado comuns em muitas organizações.

Encarar, de forma natural, as diferentes opiniões deveria ser normal. Seria um sinal de um regime saudável e de maturidade política, particularmente dos dirigentes. Encarar as diferenças como sinónimo da destruição, consciente ou inconsciente, do partido é incorrer nos erros crónicos de grande parte da esquerda do passado, seja de origem trotskista, estalinista, anarquista ou mesmo de outros campos. O resultado é conhecido.

Então, como unir as e os revolucionários?

Lembrava Trotsky:

O que é o Partido? Em que consiste a sua coesão? Esta coesão resulta de uma compreensão comum dos acontecimentos e das tarefas, e é esta compreensão que que representa o programa do partido.[5]

Este apontamento é da maior importância. O que garante a unidade da esquerda anticapitalista não é, não pode ser, a manutenção de determinada liderança à frente das organizações. Tampouco é o acordo entre os militantes de uma determinada organização sobre determinadas táticas, pois é normal que haja divergências nesse terreno e se possam tomar opções, de forma democrática, respeitando maiorias e minorias, sem que haja risco de divisões. O cimento que pode unir quem luta é o acordo programático.

É muito fácil as organizações quererem demarcar-se excessivamente por opções táticas ― sobre a forma de intervir em determinada luta, a propósito da tática a usar nas eleições, em torno da posição sobre determinado assunto conjuntural ― e, nesse afã, perderem o Norte. Mesmo entre as que se apregoam mais revolucionárias, muitas vezes perde-se o horizonte da luta contra os inimigos de classe e prima a luta contra o resto da esquerda ― ou mesmo de uma parte do partido contra a outra. Isso é apresentado como uma forma de «não capitular ao reformismo», demonstrando, na verdade, que tais organizações não confiam na sua solidez programática e estratégica.

Quando há solidez nos princípios de classe, nitidez da estratégia revolucionária e socialista e intervenção militante nas lutas de classe, no confronto com o capital e os seus governos (em vez de uma batalha permanente contra o resto da esquerda), não há a tentação do isolamento e alivia-se a doença fracionalista. Não são precisas «vacinas» contra a capitulação quando se acredita nas próprias ideias. Pelo contrário: é sobre a base desses pilares que é possível, inclusive, unir militantes anticapitalistas, de diversas origens e experiências, em organizações cada vez maiores. O fracionamento e as cisões (embora nunca possam ser, definitivamente, extintos, pois são inevitáveis em situações-limite) deixam de ser a norma. Pelo contrário, a unidade e até a união entre diversas organizações, coletivos e até partidos torna-se uma possibilidade real.

O que pode cimentar este caminho é, como já dissemos, a confluência programática e estratégica. Além de um regime partidário saudável, que aceite a divergência, decida democraticamente e intervenha de forma tão unitária quanto possível para fora, fazendo depois o balanço dessa intervenção.

É certo que o programa marxista não é uma realidade fechada. Ele deve ser permanentemente discutido e atualizado à luz das suas bases clássicas, das experiências do passado, mas sobretudo do estudo e da análise do presente. Assim, um programa socialista para o século xxi não pode ser encontrado nos livros de Marx, Lenin ou Trotsky, ainda que pistas essenciais deles emerjam. Temos de ter a coragem de pensar por nós próprios e fazer o debate programático debate coletivamente. Na sua décima primeira tese sobre Feuerbach,[6] o que Marx queria dizer não era apenas que há que abandonar uma posição de analistas e intervir militantemente; afirmava que a compreensão da realidade só se consegue mediante a intervenção nela. A militância revolucionária só pode elaborar um programa comum mediante intervenção política em comum.

O isolamento cega, o fracionalismo faz recuar a ambição revolucionária ― se a existência determina a consciência, a militância fracional turva a clareza estratégica. Por maiores que sejam as divergências entre nós, consciência de classe significa lembrar que o inimigo está lá fora. E é poderoso.

Assim, não se trata de, primeiro, elaborar, cada coletivo por si, um programa definitivo e depois cotejá-lo com a organização vizinha. Antes é necessário estabelecer espaços de debate e intervenção comuns, neles testar acordos, confluências e, quem sabe, fusões que resultem em organizações mais fortes.

É possível superar a via do fracionamento e da divisão. É possível unir a militância anticapitalista em organizações que façam política em grande escala. A marginalidade não é sina, menos ainda virtude. Assim, unir militantes revolucionárias de diversas origens e percursos, em torno de um programa socialista para o século xxi, pode ser uma realidade. Contudo, para tal, é necessário abandonar de vez a conceção de partido-fração.

[1] Antonio Gramsci, «Itália e Espanha» (https://www.marxists.org/portugues/gramsci/1921/03/11.htm)
[2] Leon Trotsky – Trotskismo e o PSOP” in Writings of Leon Trotsky 1938/39, 1ª ed. pg 129
[3] (Oeuvres, tome 8, p. 161)
[4] Lênin – Collected Works, vol. 7, pg 320.
[5] Conversas com Trotsky sobre o Programa de Transição;
[6] «Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.»

Publicado originalmente em Semear o futuro