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BRASIL

17ª Conferência Nacional de Saúde: a saúde na luta por uma outra sociedade

Balanço e perspectivas para seguir na luta pela saúde socialmente determinada e pelo SUS 100% público e estatal

Por Tatianny Araújo e Paulo César de C. Ribeiro

Sob o lema “Garantir direitos, defender o SUS, a vida e a democracia – Amanhã vai ser outro dia”, a 17ª Conferência Nacional de Saúde, que aconteceu entre os dias 02 e 05 de julho, em Brasília, deverá ficar registrada como a maior da história. Nela estiveram presentes cerca de 4 mil delegados e 6 mil participantes no total, tendo sido marcada pela diversidade. Teve ampla participação dos setores historicamente oprimidos de nossa sociedade, como mulheres, negros e negras, comunidade LGBTIQI+, indígenas e pessoas com deficiência. Como reflexo do momento social e político que atravessamos, embora em menor número, contou também com a presença de representantes do neofascismo e do conservadorismo, que apesar de sua tentativa, foram fortemente combatidos e flagrantemente derrotados.

Os intensos embates e debates ocorridos nos 04 dias de evento ficarão marcados na memória dos que ali estiveram. Num balanço preliminar, a partir das discussões realizadas nos 48 grupos de trabalho, que discutiram as diretrizes e propostas vinculadas aos 04 eixos gerais da 17ª, e das votações da Plenária Final, é possível afirmar que a pauta defendida pelos movimentos sociais e partidos de esquerda foi amplamente vitoriosa. Merecem especial destaque a aprovação da legalização do aborto, a derrubada das propostas que defendiam o estatuto do nascituro, e a descriminalização das drogas, com ênfase especial na legalização da maconha e seus usos terapêuticos.

Foram reafirmadas também: a defesa do SUS 100% público e estatal e o combate a todas as formas de privatização da saúde; a necessidade de aumento do financiamento ao SUS e o fim dos repasses do fundo público para o setor privado; a pauta da luta antimanicomial e os princípios da reforma psiquiátrica, com o fim das comunidades terapêuticas; as questões relativas a saúde do trabalhador e da trabalhadora; a necessidade de aprofundar as políticas de saúde das mulheres, dos negros e negras, população LGBTQI+, dos povos originários, pessoas com deficiência e dos idosos.

Nísia fica: amplo apoio da Conferência e compromisso assumido por Lula

Tanto durante a Cerimônia de Abertura quanto no momento em que o Presidente Lula esteve na Conferência, junto com outras ministras e ministros, como Sônia Guajajara e Marina Silva, foi tônica por parte da ampla maioria dos presentes a defesa da permanência da Ministra Nísia Trindade a frente do Ministério da Saúde, num momento que as forças conservadoras que compõem o governo, contando com o apoio de alguns setores do próprio PT, pleiteiam assumir o Ministério. Entoando palavras de ordem em defesa da permanência da Ministra, a militância reafirmou a saúde como um direito e não uma mercadoria, que precisa ser comandada por alguém comprometida com sua pauta histórica e não deve ser moeda de troca em nome de um falso apoio dos partidos burgueses e neofacistas. Em sua fala, Lula afirmou que a Ministra Nísia pode dormir tranquila, pois a indicação para o Ministério da Saúde é dele, dando a entender que a permanência de Nísia está assegurada.

Ainda durante a participação de Lula, o Presidente e a Ministra afirmaram que será garantida para a categoria da enfermagem, no âmbito federal, a aplicação do piso nacional retroativo a maio, indo em direção às reivindicações da categoria que, ainda assim, deverá seguir sua luta para implementação do piso em todos os locais onde atuam e níveis federativos.

Conferências Livres: acertos e contradições

A ampla e diversa participação foi fortalecida pela correta decisão do Conselho Nacional de Saúde, que aprovou e estimulou a realização de Conferências Livres, que puderam enviar suas propostas e eleger delegados diretamente para a etapa nacional.

Tendo sido realizadas desde o ano de 2022, essas Conferências ajudaram a ampliar e diversificar a participação. Essa novidade se deu em muito pelo reconhecimento do processo de burocratização que tomou conta dos Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde, que acabam por restringir a participação de diversos movimentos sociais e organizações, favorecendo a participação dos conselheiros destes níveis federativos e dos movimentos mais burocratizados e familiarizados com as instâncias formais do controle social. Ainda que não sendo um objetivo direto, serviu também, ainda no ano de 2022, para aglutinar forças políticas que ajudaram a enfrentar o último ano de governo Bolsonaro e acumularam forças e propostas entre os partidos de esquerda que compuseram a aliança eleitoral que elegeu Lula e disputaram a formulação do programa de campanha para área de saúde, tendo contado com direta participação do Setorial de Saúde Nacional do PSOL.

Por outro lado, é fundamental estarmos atentos às contradições advindas da criação das Conferências Livres e como devemos lidar com elas, destacando duas. A primeira é o fato de que a ampliação veio, em muitos casos, acompanhada da fragmentação dos debates, que se afastaram das questões mais estruturantes da pauta da saúde. Neste sentido, restringiram-se suas necessárias articulações com a determinação social do processo saúde/doença, que está diretamente ligada com as lutas mais gerais da sociedade, pautadas, em última análise, nas contradições da relação capital/trabalho. A segunda é o fato de que, ainda que em muito menor número, foram através destas Conferências que setores diretamente ligados ao capital e defensores do repasse do fundo público ao setor privado enviaram suas propostas diretamente para os debates na Conferência Nacional. Este é o caso do chamado terceiro setor, ligado às Organizações Sociais (OSs), e até mesmo associações ligadas à indústria farmacêutica, que se organizaram para tal intervenção.

Setorial Nacional de Saúde do PSOL: participação ativa e aguerrida

É preciso destacar a intervenção do Setorial Nacional de Saúde do PSOL durante a Conferência, sempre pautando a defesa do SUS 100% público e estatal, da saúde socialmente determinada e o combate às pautas da direita e do conservadorismo. Além da realização de uma Conferência Livre em 2023, que gerou o envio de propostas para 17°, o Setorial participou de forma organizada, tendo realizado, durante o evento, um encontro com os seus militantes presentes. Esta reunião serviu para articular a distribuição do material próprio feito para a 17ª, a atuação nos grupos de trabalho e na Plenária Final, além da sua intervenção coletiva durante a Cerimônia de Abertura da Conferência e no ato público realizado próximo a Esplanada dos Ministérios, onde empunhou suas faixas e palavras de ordem em defesa da saúde.

 

O Setorial esteve também articulado com os demais partidos de esquerda que compuseram a campanha presidencial de 2022, tendo participado da elaboração e distribuição de material impresso produzido em conjunto com essas forças. Atuou também junto com a Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde (FNCPS), importante movimento que reúne fóruns estaduais e municipais em defesa da saúde pública e do SUS, sempre na perspectiva anticapitalista, suprapartidária e de defesa dos princípios originais da reforma sanitária brasileira. A Frente vem, já há alguns anos, tendo destacada participação e intervenção durante as Conferências Nacionais de Saúde, além de estar presente nas diversas lutas da saúde.

As militantes do PSOL presentes na conferência, também participaram ativamente das atividades autogestionadas de mulheres e na construção da intervenção em prol da legalização do aborto e pela garantia do que temos hoje previsto em lei, a fim de evitar retrocessos conservadores contra a vida das pessoas que gestam. A atuação das companheiras se deu através de uma frente única feminista, que atuou de forma organizada em todos os dias da conferência e é parte da organização nos estados e a nível nacional das campanhas pela ampliação e garantia do aborto legal e contra a criminalização das mulheres e pessoas que abortam.

O movimento feminista e ativistas da luta pela vida das mulheres e pessoas que gestam marcaram presença e foram parte do ato público da Conferência. Tatianny Araújo (Resistência/PSOL), representando a Rede de Assistentes Sociais Pelo Direito de Decidir, deixou resgistrado no ato a defesa da ampliação do direito ao aborto e a garantia do aborto legal (nos casos já previstos em lei, estupro, anencefalia e risco de vida para a pessoa que gesta), sua garantia via SUS a fim de reduzir as mortes causadas pela clandestinidade e a construção de políticas públicas que promovam a prevenção de gravidez indesejada e da violência sexual. Acreditamos que a prevenção e conhecimento do corpo e dos variados métodos contraceptivos é fundamental para o exercício livre e seguro da sexualidade a partir das escolhas de cada pessoa. Podemos dizer, que na 17ª CNS as mulheres, maioria em presença, marcaram a disputa contra os retrocessos e a moralização do debate sobre o direito pleno e integral à saúde.

O saldo é positivo, mas ainda precisamos avançar

Apesar do inegável saldo positivo, é preciso apontar alguns problemas sobre o processo das Conferências que precisam ser enfrentados. A gama de propostas aprovadas, que tem caráter amplamente alinhado às pautas de saúde da esquerda, não se refletem, da mesma forma, em muitos outros espaços institucionais, que se mostram pouco permeáveis. É o caso dos poderes legislativo e executivo em todos níveis federativos, onde a correlação de forças nos é desfavorável, tornando muitas das pautas aprovadas de difícil implementação. Já a algumas Conferências, se tornou prática corrente por parte dos governos que as políticas concretas aplicadas sigam em sentido contrário ao aprovado nas Conferências, mesmo que as propostas aprovadas integrem os Planos de Saúde municipais, estaduais e federal e o Plano Plurianual do Governo Federal, sendo relegadas a letra morta.

É também importante atentar ao fato de que a realização quadrienal da Conferência, embora de grande mobilização e participação devido ao movimento ascendente pela realização das etapas municipais, estaduais e das Conferências Livres, é seguido por uma desmobilização das forças que ali se encontraram, debateram e articularam.

É preciso avançar em formas mais regulares de aglutinação destas forças, para resultar em salto qualitativo na organização dos diversos movimentos que integram esse processo. É também necessário pensar em momentos intermediários entre as Conferências Nacionais, com o intuito de acompanhar e cobrar a implementação das decisões vindas das Conferências. E, o mais importante: favorecer a ampliação da mobilização e organização da classe trabalhadora; o avanço de suas lutas e conquistas, tanto na especificidade das pautas saúde quanto na sua necessária articulação com a lutas mais gerais e; a busca pela superação das relações de exploração entre as classes, causa última de todos os males em nossa vida, tendo sempre como objetivo uma sociedade igualitária, com equidade e liberdade, e o socialismo como norte (ou melhor, sul!).

*Assistente Social, Mestranda do PPGSS/UERJ, Assessora parlamentar (Chico Alencar/PSOL RJ), Militante da Resistência Feminista, da Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde (FNCPS) e da Rede de Assistentes Sociais Pelo Direito de Decidir
**Trabalhador da Fiocruz, Cientista Social (UERJ), Mestre em Políticas Públicas (PPFH/UERJ), Doutorando em Serviço Social (PPGSS/UFRJ) Militante da Resistência/PSOL e da Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde (FNCPS)