Na semana passada, a saúde mental brasileira recebeu uma boa notícia. Por meio da Portaria GM/MS nº 757, de 21 de junho de 2023, o Ministério da Saúde revogou a Portaria nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017, a qual instituiu uma série de retrocessos na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), sendo uma das principais normativas a configurar o que vem sendo denominado de Contrarreforma Psiquiátrica. Dentre as mudanças, podemos citar a revogação de normativas que sustentavam os seguintes serviços na composição da RAPS:
- Unidades Ambulatoriais Especializadas;
- Hospitais Psiquiátricos Especializados;
- Hospitais dia;
- CAPS AD IV.
Mas por que tal Portaria (3588/2017) e os dispositivos instituídos por ela na RAPS eram retrocessos? Primeiramente, porque ela inseriu o manicômio (Hospital Psiquiátrico) na RAPS e, no geral, reforçava um modelo de atenção (hiper)especializado, hospitalocêntrico e ambulatorial, em detrimento de uma atenção predominantemente extra-hospitalar, de base territorial-comunitária. Além disso, com ela – e a partir dela – foram reajustados e aumentados os valores para internações em tais dispositivos, fortalecendo-os ainda mais, com o dispêndio de verbas públicas.
Com tais constatações, não queremos dizer que dispositivos hospitalares e/ou ambulatoriais devam ser desconsiderados. Por exemplo, os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS) também pressupõem a assistência ambulatorial, mas vão além dela, pautando-se na construção de vínculos, inclusive com o território, e de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS), numa perspectiva de Atenção Psicossocial. E quanto à assistência hospitalar, que é fundamental em momentos de urgência e emergência, na atenção à crise, dentre outros casos, ela deve ser ofertada em hospitais gerais, e não em hospitais psiquiátricos, que segregam, asilam as pessoas – tal como preconizado na Portaria 3.088, de 2011, que institui a RAPS. Contudo, com a Portaria 3.588/2077, tais serviços e o que preconizam em termos assistenciais foram ainda mais enfraquecidos. Cabe ressaltar que uma das dificuldades vivenciadas pelos CAPS é justamente romper com a lógica ambulatorial, cenário esse que a Portaria referida não só não ajudava a melhorar, como piorava.
Outro retrocesso foi a criação dos CAPS AD IV. Eles têm o objetivo de atuar em locais de uso de crack nas grandes cidades – as chamadas “crackolândias” de maneira preconceituosa – podendo servir como porta de entrada para Comunidades Terapêuticas (CTs). Além de apresentarem características de pequenos hospitais psiquiátricos, a indicação era construí-los em locais de uso de drogas – o que, concretamente, significa a internação e segregação da população em situação de rua, numa perspectiva de higienização social (e racial). Isso afronta o princípio da territorialidade do tratamento e considera que a pessoa que usa drogas existe apenas na cena de uso (mormente em contextos de maior concentração de pessoas em situação de rua, de maior pobreza etc.), ignorando o território de sua moradia, de seu trabalho e de seus vínculos familiares. Grosso modo, apesar do nome, tais serviços se opõem e descaracterizam o que é (ou deveria ser) um CAPS, sendo mais um exemplo da remanicomialização que ganhou força nos últimos anos no campo da saúde mental, álcool e outras drogas, nos marcos da Contrarreforma Psiquiátrica.
Portanto, a revogação da Portaria 3.588/2017 e a retirada desses componentes da RAPS sinaliza uma política de saúde mental em conformidade com a Reforma Psiquiátrica, com ênfase em serviços substitutivos de caráter territorial-comunitário, os quais visam o cuidado em liberdade. Contudo, a própria RAPS traz consigo na sua configuração inicial as Comunidades Terapêuticas (CTs), no nível de Atenção Residencial Transitório. Isso é uma contradição flagrante, de modo que, para que a Reforma Psiquiátrica seja retomada na sua totalidade e essência, superando a Contrarreforma Psiquiátrica, é necessário retirar as CTs da RAPS e extinguir o financiamento público delas.
Além disso, estados e municípios precisam seguir os mesmos princípios antimanicomiais da Reforma Psiquiátrica. Nesse sentido, trazemos – e questionamos – o caso concreto do Distrito Federal (DF), como forma de ilustrar a necessidade de mudanças não apenas no nível federal, mas que elas sejam acompanhadas também nas outras esferas federativas. Por exemplo, a Portaria GM/MS nº 757, de 21 de junho de 2023, evidencia ainda mais o caráter contrarreformista e manicomial que a política de saúde mental do DF vem apresentando há anos. Além da Lei Distrital nº 975/1995, que tornou ilegal a existência de hospital psiquiátrico no DF desde o ano de 1999, agora a própria RAPS voltou a desconsiderar esse tipo de hospital entre seus componentes.
Então, ficam os questionamentos: por que o Governo do Distrito Federal (GDF) ainda mantém em funcionamento o Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), hospital psiquiátrico não apenas público, mas, diante da Lei 975/1995, ilegal? Por que o GDF, a partir da sua Secretaria de Saúde, custeia internações em hospitais psiquiátricos (privados)? Mais, por que o GDF, via Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania (SEJUS), e com aval do “controle social” do Conselho de Política sobre Drogas do Distrito Federal (Conen/DF), financia CTs? Sabemos que tal realidade não é exclusividade do DF, se alastrando nacionalmente, o que, por sua vez, só reforça a Luta Antimanicomial a partir das características locais (municipais, estaduais e distrital), mas circunscritas ao âmbito nacional, o qual não só compõem e expressam, mas também conformam e produzem.
Por fim, é por conta desta iniciativa, dentre outras, que o Ministério da Saúde não pode ser rifado ao dito “centrão”, que, no campo da saúde mental, álcool e outras drogas, tem sido um dos principais responsáveis pela manicomialização, mercantilização e privatização da assistência, moralismo e conservadorismo que constituem os pilares da Contrarreforma Psiquiátrica. Assim, fazemos coro à permanência da ministra Nísia Trindade no Ministério da Saúde e apontamos para a necessária continuidade do revogaço dos retrocessos no campo da saúde mental, álcool e outras drogas. Por isso #FicaNisia.
Fernanda Pereira Ribeiro Periles é graduanda em Psicologia na UnB. Integrante do Grupo Saúde Mental e Militância no Distrito Federal (GSMM-DF)
Pedro Henrique Antunes da Costa é professor de Psicologia na UnB. Coordenador do Grupo Saúde Mental e Militância no Distrito Federal (GSMM-DF). Militante da Resistência DF.
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