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MUNDO

Dez teses provisórias sobre o motim do Grupo Wagner e a guerra na Ucrânia

Henrique Canary
Serviço de Imprensa/Telegrama de Prigozhin

1) A importância dos acontecimentos deste sábado exige da esquerda brasileira e mundial a maior seriedade e cuidado na análise. Respostas rápidas e prognósticos contundentes rendem muitos cliques nas redes sociais, mas costumam desmoronar pouco depois dos eventos, à medida que os fatos esfriam, a situação se estabiliza e os detalhes vêm à tona. Além disso, muito frequentemente, as posições são formuladas levando-se em consideração unicamente materiais de propaganda, quer do lado russo, quer da OTAN. Assim sendo, é recomendada cautela na caracterização da correlação de forças e formulação de hipóteses. É melhor uma análise sóbria feita com alguns dias de atraso do que a embriaguez do “calor dos acontecimentos”, que em geral só conduz ao impressionismo otimista ou pessimista. Nossa marginalidade e distância dos eventos exige essa humildade. Como dizia Trótski, o leninismo é, entre outras coisas, “máximo realismo”. Esse deve ser o espírito que nos move.

2) Os eventos de sábado 24.06.23 caracterizam um motim de uma empresa militar privada contra medidas específicas do Estado russo no marco da atual situação política e militar do país. Não foi uma tentativa de golpe de Estado nem o início de uma guerra civil. O Grupo Wagner e seu dirigente Ievguêni Prigójin não demandaram em nenhum momento a queda de Putin ou qualquer mudança mais profunda no governo (com exceção do Ministério da Defesa), regime político ou equilíbrio das instituições. Assim, o poder de Putin em nenhum momento esteve ameaçado. 

3) O motim de Prigójin ocorreu como reação à decisão, tomada pelo governo, de submeter todas as organizações militares atuantes no país ao comando direto do Ministério da Defesa. Tais medidas vinham sendo anunciadas há algum tempo, o que já havia provocado atritos entre Prigójin de um lado e o ministro da Defesa Serguei Shoigú e o chefe do Estado Maior Valeri Gerásimov de outro. No caso da Tchetchênia, onde também há uma força armada separada baseada na fidelidade pessoal ao líder tchetcheno Ramzan Kadírov, a subordinação ao Ministério da Defesa foi aceita sem maiores problemas. No caso de Prigójin, explodiu no motim que vimos no sábado, já que a obrigatoriedade de assinatura de contrato entre o combatente e o estado Russo acarretaria, na prática, em uma enorme perda de poder do Grupo Wagner como empresa, além da perda de receita, já que o pagamento seria feito diretamente ao soldado. Para se ter uma ideia, segundo fontes oficiais do governo russo, somente entre maio de 2022 e maio de 2023, o Estado russo repassou ao Grupo Wagner RUB 86,2 bilhões ou mais de USD 1 bilhão. Essa mudança no sistema de segurança do país ameaçava o fim do Grupo Wagner como poder militar paralelo, e isso foi entendido por Prigójin. 

4) O estopim para a revolta foi a acusação, feita por Prigójin nas redes sociais, de que o Ministério da Defesa russo teria bombardeado posições de retaguarda do Grupo Wagner nas regiões ucranianas ocupadas, fato difícil de ser confirmado. Isso se somou à já antiga reclamação por mais munição e equipamentos pesados. Prigójin então declarou que estava organizando a “Marcha da Justiça”, que iria até Moscou garantir à força a destituição de Shoigú e Gerásimov, e deslocou parte de seu contigente estacionado nas regiões ocupadas para a cidade de Rostov sobre o Don, onde ocupou a sede do Comando Militar do Sul e permaneceu por várias horas. Mais tarde, começou efetivamente um deslocamento pela Magistral M-4, que liga o sul da Rússia a Moscou. No caminho, houve confronto entre a coluna de Prigójin e seis helicópteros do Ministério da Defesa, além de um avião de radiolocalização. Prigójin levou a melhor no confronto e a morte de alguns pilotos de helicóptero foi oficialmente reconhecida pelo governo russo, além da perda de material bélico e destruição parcial de trechos da M-4. Prigójin perdeu apenas uma caminhonete de combate. Em Moscou e outras localidades foi decretado o Regime de Operação Antiterrotista, caracterizado pelo policiamento e ocupação ostensiva de prédios e objetos por tropas federais e maior controle por parte do Estado sobre a circulação e atividades da população em geral. Um inquérito foi aberto contra Prigójin por motim armado. À noite, Putin fez um pronunciamento oficial à nação, no qual denunciou as ações de Prigójin como traição à Pátria e disse que os amotinados seriam duramente reprimidos. No domingo 25.06.23, por intermédio do presidente da Belarus Aleksander Lukachenko, foi feito um acordo baseado no encerramento da perseguição jurídica contra Prigójin por motim e na permissão para que ele se desloque para Belarus.  

5) Os eventos em torno ao Grupo Wagner provocaram um abalo na imagem interna e externa de Putin, tanto pelo motim em si, quanto pelas duras críticas que Prigójin vinha fazendo a Shoigú, Gerásimov e à própria guerra em vídeos e materiais de internet. Mas o significado desse fato não deve ser exagerado. Em nenhum momento o presidente russo perdeu o controle sobre as forças armadas ou os serviços de segurança e inteligência como a FSB (ex-KGB) e outros. Prigójin não contou com o apoio de nenhum setor oligárquico, a não ser o ex-proprietário da petrolífera Yukos Mihail Khodorkóvski, que no entanto se encontra fora do país e bastante isolado politicamente. A ausência de repressão ou combate armado contra a coluna do Grupo Wagner parece ter sido muito mais uma opção consciente do que reflexo da falta de força do regime. Caso o governo russo partisse para o combate frontal, a situação poderia ter escalado, representando, aí sim, o início de um conflito interno que poderíamos chamar de guerra civil. Não foi o caso.

6) O motim do Grupo Wagner alimentou as esperanças ucranianas em uma desorganização do fronte russo. De fato, com a notícia do motim, o exército ucraniano intensificou os ataques em vários pontos do fronte. No entanto, esses ataques, segundos fontes sérias como o Instituto para o Estudo da Guerra (ISW), insuspeito de simpatias por Putin, parecem não ter atingido os objetivos estabelecidos. Em geral, os ataques ucranianos foram repelidos a partir de posições bastante bem firmadas pelos russos e mais técnica ocidental foi perdida pelos ucranianos em combate. De um modo geral, a contraofensiva ucraniana parece já há algumas semanas esbarrar em uma importante resistência russa. Como admitiu The Economist em sua edição de 24.06.23: “Após duas semanas, a contraofensiva da Ucrânia está aquém do planejado. Suas forças retomaram algum território, mas sofreram perdas e ainda não penetraram em profundidade os vários quilômetros de campos minados russos, armadilhas de tanques e trincheiras. Mesmo se eles romperem algumas linhas, correm o risco de serem imobilizados e destruídos pela artilharia inimiga e drones”. 

7) Até agora o acordo promovido por Lukachenko tem sido cumprido, mas não há nenhuma garantia de que o seja no futuro, quando Putin se sentir mais forte. Outro problema é que não se sabe até agora seu conteúdo completo. Aparentemente, trata-se de um acordo de curto prazo, para encerrar uma crise aguda, mas que não dá garantias de médio e longo prazo para Prigójin e sua empresa. Tudo se baseia na fiança pessoal de Lukachenko, sem nenhuma consolidação jurídica. Além disso, a principal demanda – demissão de Shoigú e Gerásimov – nem de longe esteve colocada, pois representaria uma desmoralização completa de Putin perante a opinião pública e acarretaria uma vitória simétrica de Prigójin. Em seu pronunciamento de ontem (26.06.23), Putin reiterou que os soldados do Grupo Wagner poderão assinar contrato com o Ministério da Defesa ou seguir para Belarus, mas não admitiu de nenhuma forma a continuidade da atuação como grupo independente. Ao que tudo indica, pelo menos em médio prazo, o Grupo Wagner deve perder poder e pode até mesmo deixar de existir. Não está descartada uma saída intermediária, onde Prigójin seja impedido de atuar na Rússia e no fronte ucraniano, mas mantenha suas posições – ou parte de suas posições – na África, Ásia e Oriente Médio (o Grupo Wagner presta serviços para governos dessas regiões). 

8) A vitória parcial e relativa de Putin consistiu em mostrar para dentro e para fora que a alternativa a seu governo é o caos fascista. As potências da OTAN parecem ter entendido o recado bem rápido e, em geral, se moveram com bastante cuidado durante os eventos, certamente temerosas de que uma escalada na situação pudesse fazer com que as armas nucleares russas caíssem em mãos inesperadas. Apenas uma ou outra figura se comportou como “pescador de águas turvas”. Se isso significará ou não um fortalecimento de Putin em médio prazo – eis uma questão a ser estudada. O que se pode afirmar com certeza – porque já está acontecendo – é que a partir de agora todo e qualquer questionamento interno da guerra será ainda mais fortemente associado à traição nacional e à rebelião, aumentando o grau de repressão interna e acentuando o caráter bonapartista do regime. Com uma oposição liberal e de esquerda ainda mais acuada e um setor putinista fanático exigindo a cabeça de Prigójin, Putin aparecerá para a massa da população como a única alternativa viável. Seus índices de aprovação pessoal já são os maiores desde setembro de 2017, segundo o instituto Levada Center, de inclinação liberal. As ações do exército russo na Ucrânia também são apoiadas por até 73% da população, enquanto a apatia em relação à guerra aumentou, sobretudo entre os jovens.  

9) Enquanto isso, o imperialismo já discute sobre o que deve acontecer como a Ucrânia quando a guerra acabar. Analistas ligados ao The Economist, por exemplo, defendem o que chamam de uma “Ucrânia 2.0”. Segundo eles, o país deve ter acesso garantido à OTAN e à UE como forma de pressão pela consolidação das instituições liberais e democráticas e como um elemento de luta contra a corrupção, a herança soviética e a influência russa. Além disso, defendem um investimento massivo de capitais, de maneira a transformar a Ucrânia em uma espécie de “modelo anti-Rússia” no marco da nova Guerra Fria. Lembra um pouco o que foi a Coréia do Sul para a Coréia do Norte e a Alemanha Ocidental para a Alemanha Oriental durante a segunda metade do século 20. É o sonho de Zelenski. A questão é se Estados Unidos e Europa terão dinheiro para isso ou não. A população desses países já começa a questionar o apoio financeiro e militar dado por seus governos à Ucrânia, tudo isso no marco de uma importante crise inflacionária e energética. Claro, tudo seria pago com a enorme infraestrutura industrial e energética da Ucrânia e com a produtividade acima da média de sua agricultura, graças ao milagre geológico da “Terra Negra” ou “Tchernozemie”. 

10) A confiança praticamente ilimitada que Putin depositava em Prigójin é típica de sua educação stalinista. Não esqueçamos que Stalin confiou até o último minuto que Hitler não iria invadir a URSS, e por isso firmou com a Alemanha nazista um pacto de não-agressão que esteve em vigor de setembro de 1939 até junho de 1941. Putin achou que a montanha de dinheiro despejada sobre o Grupo Wagner nos anos anteriores seria o suficiente para controlar Prigójin. Criou a própria cobra que abocanhou seu calcanhar. Em seu pronunciamento de sábado, comparou o motim fascista de Prigójin com a legítima oposição de Lênin e dos bolcheviques às atrocidades da Primeira Guerra Mundial, chamando esses dois fatos completamente diferentes de “traição” e “punhalada nas costas” da Pátria e do povo. Isso deveria alertar certas organizações de esquerda que hoje confiam no próprio Putin e delegam a ele a intransferível tarefa de enfrentamento da ordem imperialista.

Mas se não é correto delegar a Putin a tarefa de combater o imperialismo norte-americano, também não é correto delegar a um fascínora como Prigójin a tarefa de derrubar Putin. Mais do que nunca, é preciso um cessar-fogo que acabe com o sofrimento do povo ucraniano e russo e abra o caminho para a paz na região. Uma paz democrática, sem anexações, sustentada pela retirada das tropas russas do território ucraniano e da OTAN do leste europeu. Infelizmente essa paz ainda está distante, e somente os povos russo, ucraniano, europeu e do mundo inteiro podem obtê-la.