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Governo Lula, o que está em disputa?

O maior desafio é a derrota da extrema-direita, em especial, a ala neofascista. Nada é mais prioritário, nada, absolutamente nada, se é que queremos aprender algo dos últimos anos

Ricardo Stuckert

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Não declares que as estrelas estão mortas só porque o céu está nublado
                                            A hora mais escura do dia é a que vem antes do sol nascer
Provérbios populares árabes
A paciência é amarga, mas o seu fruto é doce
 Provérbio popular português

1. Há três posições na esquerda sobre o governo Lula, portanto, sobre o que está em disputa. Aqueles partidos, correntes e lideranças que aceitaram a estratégia da Frente Ampla, primeiro com a indicação de Alckmin, depois com a integração do MDB de Simone Tebet, o PSD de Kassab e até uma fração do União Brasil de Alcolumbre e, finalmente, com setores do PP de Lira e dos Republicanos da Igreja Universal, preferem deixar indefinido o que está “em disputa”. O que sugere que “tudo” estaria em disputa. O que legitimaria a participação no governo. Estão errados. Não é sequer razoável a fórmula de “governo em disputa” sem explicitar quais são os limites de um governo de Frente “Amplísima”. Esses limites são grandes porque os partidos de esquerda que integram o governo são muito moderados, mas, também, porque o governo Lula é um governo de colaboração de classes.

2. Uma Frente Ampla que articula partidos que representam distintos interesses de classe significa um compromisso em que o denominador em comum é a posição mais recuada. A participação no Ministério impõe lealdade e disciplina de governo, que é maior que a disciplina de partido. Nem Alckmin, nem Tebet, nem Lira são dirigentes distraídos. MDB, PSD, e outros são partidos ao serviço dos capitalistas. Lula é a maior liderança popular de esquerda, e o PT é o partido com maior audiência entre os trabalhadores e o povo oprimido, mas o governo representa um pacto. Tem limites muito evidentes. O principal deles é a preservação da estratégia de contenção da dívida pública. Ou seja, não haverá ruptura com o tripé macroeconômico de metas de inflação, câmbio flutuante e superávit fiscal. Isso não está em disputa. Se viesse a ocorrer uma ruptura com este acordo, as lideranças burguesas romperiam. Existem, é verdade, alguns líderes empresariais e intelectuais que flertam com ideias neodesenvolvimentistas, semikeynesianas. Mas são pouco representativos.

3. Mas tampouco estão certos aqueles que concluem que “nada” está em disputa. Dela decorre a conclusão que o lugar da esquerda combativa deve ser, desde já, na oposição. Premissa falsa e conclusão precipitada. Tudo que existe está em disputa, na medida em que é contraditório. Não é verdade que nada está em disputa. O governo Lula, ainda em janeiro, diante do levante golpista decidiu intervir na segurança pública do Distrito Federal, e prender os bolsonaristas concentrados em frente ao Quartel General do Exército. Não o fez na noite de domingo dia 8 de janeiro, o que facilitou, seguramente, muitas fugas. Mas o fez na manhã do dia 9. Decidiu realizar, também, uma intervenção militar em Roraima para expulsar os garimpeiros e madeireiras e defender a reserva do povo Yanomami. Os exemplos são muitos e seria desonesto não o reconhecer. O governo potencializou o Bolsa- Família, relançou o Minha Casa Minha Vida e o Mais Médicos, restaurou o programa de vacinação pública, reajustou a tabela do Imposto de Renda e para as bolsas dos pesquisadores universitários, deu um alívio para as perdas salariais do funcionalismo federal, reposicionou o Brasil, internacionalmente, ao contrariar, mesmo que de forma parcial, os interesses dos EUA na guerra da Ucrânia. Ignorar estas medidas progressivas, embora sejam limitadas, seria “miopia”. Existem muitos outros desafios colocados, e que estão em disputa.

4. O maior desafio é a derrota da extrema-direita, em especial, a ala neofascista. Nada é mais prioritário, nada, absolutamente nada, se é que queremos aprender algo dos últimos anos. A ilusão temporária de que o bolsonarismo é uma página do passado, só porque está na defensiva, é uma perigosa armadilha. O mais importante de tudo o que está em disputa é saber se o governo será um aliado na luta até ao fim contra os neofascistas. Essa luta passa pela condenação de Bolsonaro. A inelegibilidade do capitão já será uma vitória enorme, mas insuficiente. Bolsonaro deveria ser condenado à prisão. Eis, portanto, a questão tática: o governo poderá cumprir um papel neste desafio central em função da relação social de forças? A resposta justa é, talvez, sim. E isso não é pouca coisa. Está em disputa, e terá que ser pressionado, mas é um governo que tem alinhamento com a defesa do regime da Nova República. Esse é um dos significados da Frente Amplíssima. Alckmin e Tebet são liberais reacionários, mas antibolsonaristas. Na medida em que defende as liberdades democráticas, o governo cumpre um papel progressivo. Poderá não ter a coragem política de enfrentar a questão militar que é decisiva. A luta contra os fascistas exige investigar e condenar os golpistas e, pelo menos, passar para a reserva os oficiais cúmplices que fiaram “na moita”. O papel da esquerda anticapitalista é ajudar a radicalizar a luta antifascista até o fim. Só o poderá fazer se tiver a lucidez estratégica e a inteligência tática de construir espaços de Frente Única de esquerda para construir mobilizações de massas. Nesse terreno, manter a independência, fazer as críticas necessárias, mas, sobretudo, permanentemente, as exigências e ir em frente e até o fim.

5. Mas, este desafio estratégico, a necessidade de impor uma derrota irreversível à extrema-direita, não esgota, evidentemente, a análise da natureza do governo. O marxismo prioriza como critério apreciações de classe. Um bom marxismo não reduz tudo às análises de classe. Muitos outros conflitos estão presentes na luta social. Mas o governo Lula não é um ponto de apoio para a luta pelo socialismo. Lula não é Fidel Castro. O governo Lula é burguês. Ou seja, não tem antagonismo com o capitalismo. É um governo que pode impulsionar algumas reformas sociais progressivas, mas não será uma alavanca para transformações estruturais. Não haverá, tampouco, ruptura com os “ditames” neoliberais. Reconhecê-lo, contudo, não é o bastante. Porque é também, um governo burguês “anormal”. A maioria dos trabalhadores e do povo oprimido o considera o seu governo. E a massa da burguesia ainda bolsonarista está na oposição e o condena. Esse paradoxo é central para a definição da tática da esquerda combativa. Aqueles na esquerda radical que ensaiam se posicionar como oposição, abraçando uma tática de denúncia sistemática, estariam flertando com uma linha Fora Todos, desprezando uma relação social de forças desfavorável. Já vimos esse perigo antes. Podemos ser melhores e aprender com erros do passado. Isso exige firmeza de princípios e flexibilidade tática. E muita paciência.