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TEORIA

A luta de Clara Zetkin pela frente única

A rigor, é razoavelmente conhecido o papel de Clara Zetkin como formuladora teórica do feminismo, além de organizadora e dirigente do trabalho partidário entre mulheres proletárias. Contudo, Zetkin também foi uma figura de bastante relevância no desenvolvimento da política da Frente Única Operária. Por ocasião dos 90 anos da morte dessa grande revolucionária, no próximo dia 20 de junho, apresentamos aos leitores do portal Esquerda Online a tradução do ensaio Clara Zetkin’s struggle for the united front, de John Riddell.

John Riddel (Tradução por Bruno Rodrigues e Daniel Kraucher)

Acesse aqui todos os artigos da Série 100 anos da Frente Única Operária: gênese e atualidade

Genossinnen und Genossen!  Era assim que Clara Zetkin começava seus discursos. Em alemão, significa “camaradas mulheres e camaradas homens”. Poucos socialistas usavam essa saudação em sua época, e havia poucas mulheres em suas reuniões. Mas isso estava começando a mudar, e Zetkin fez parte dessas mudanças.

Clara Zetkin foi uma líder revolucionária que, ao longo de sua longa vida, participou de muitas lutas e de muitas questões. Este artigo considerará apenas uma pequena parte de sua atividade, que foi fundamental para a tragédia do comunismo alemão na década de 1920.

Nosso tópico de hoje é a política da frente única – uma parte crucial de nossa herança política da era da revolução russa. Essa política, adotada pelo movimento comunista mundial em dezembro de 1921, propôs que os socialistas revolucionários deveriam pressionar pela unidade com outras forças políticas na ação por demandas que beneficiassem os trabalhadores. O caráter dessa frente única era um tópico de disputa entre os socialistas na época, e continua sendo até hoje.

Vamos examinar essa política pelos olhos de Zetkin.

Clara Zetkin foi a destacada líder comunista da década de 1920 e é mais conhecida hoje como uma apóstola da emancipação das mulheres. No entanto, ela também ajudou a moldar a política do movimento comunista sobre a unidade de ação. Ela favoreceu uma abordagem ampla e apartidária, visando a unidade com correntes não revolucionárias, a ação no interesse da classe trabalhadora como um todo e os esforços para conquistar camadas sociais fora da classe trabalhadora industrial. Ela enfatizou a necessidade da política comunista alcançar as camadas menos radicais de trabalhadores e produtores. Ela se opôs ao foco nas preocupações da vanguarda revolucionária.

Zetkin – uma marxista pioneira

Quando a Internacional Comunista (Comintern) adotou a política da frente única em 1921, Zetkin, aos 64 anos, era mais de uma dúzia de anos mais velha do que qualquer outro de seus principais líderes [1]. Amiga de Engels, mais tarde formou uma estreita parceria com Rosa Luxemburgo para defender a herança revolucionária desse partido e se opor à sua corrente de direita, que buscava fazer as pazes com o estado capitalista da Alemanha.

Nesse período, as mulheres eram quase totalmente excluídas da vida política. Zetkin e Luxemburgo foram as primeiras mulheres a lutar para chegar à liderança central dos partidos socialistas. Até hoje, poucas mulheres conseguiram segui-los nesse caminho.

Zetkin liderou o trabalho da Internacional Socialista entre as mulheres e, nessa função, convocou a primeira conferência socialista internacional em oposição à Primeira Guerra Mundial [2]. Essa guerra foi encerrada pelas revoluções na Rússia e na Alemanha em 1917 e 1918. Em 1919, Zetkin ingressou no recém-formado Partido Comunista Alemão, o KPD. Nesse mesmo ano, a maioria dos líderes centrais do partido, incluindo Rosa Luxemburgo, foi vítima de uma onda de terror do governo.

Zetkin foi uma figura influente na nova liderança do partido e, a partir de 1921, na Internacional Comunista, a união mundial de organizações revolucionárias formada dois anos antes em Moscou.

Origem da política de frente única

Após a revolução alemã de 1918, os líderes social-democratas lideraram e organizaram a restauração do poder capitalista no país e foram notoriamente cúmplices do terror contra os trabalhadores revolucionários. Apesar disso, eles mantiveram o apoio da maioria dos trabalhadores, enquanto os comunistas lideravam uma pequena minoria.

Em março de 1920, quando os extremistas de direita organizaram um golpe militar, os social-democratas desempenharam um papel importante na greve geral maciça que derrotou o golpe. Como o ímpeto dessa vitória poderia ser mantido?

No final daquele ano, uma iniciativa frutífera para romper o impasse veio dos metalúrgicos revolucionários da base de Clara Zetkin, Stuttgart. Foi lá que os ativistas operários, seis anos antes, convenceram Karl Liebknecht a lançar uma oposição socialista aberta na Alemanha à guerra mundial imperialista [3].

Em dezembro, uma assembleia dos metalúrgicos de Stuttgart, agindo por iniciativa de ativistas do Partido Comunista, adotou uma resolução pedindo à liderança de seu sindicato e de todos os sindicatos que lançassem uma luta conjunta por melhorias concretas nas condições dos trabalhadores. Essa campanha, segundo a resolução, deveria exigir as cinco demandas a seguir “compartilhadas por todos os trabalhadores”:

  • Redução dos preços dos alimentos e dos itens essenciais da vida.
  • Abertura dos registros financeiros dos capitalistas e maiores benefícios para desempregados.
  • Redução dos impostos sobre os trabalhadores e aumento dos impostos sobre os ricos.
  • Controle pelos trabalhadores da produção e distribuição de matérias-primas e alimentos.
  • Desarmamento das gangues reacionárias e armamento dos trabalhadores [4].

De forma surpreendente, as reivindicações de Stuttgart abrangiam não apenas questões de pão e salário, mas também os passos iniciais em direção ao poder dos trabalhadores. Esse foi um dos primeiros exemplos do conceito comunista de demandas transitórias, que se baseiam em necessidades imediatas, mas apontam para o governo dos trabalhadores.

Os social-democratas, então organizados em dois partidos, primeiro ignoraram e depois rejeitaram esse apelo, alguns dizendo que as exigências eram muito agressivas, outros que não iam longe o suficiente. Mas os comunistas fizeram uma campanha para angariar apoio para o apelo de Stuttgart, e muitos conselhos sindicais votaram seu apoio [5].

A carta aberta

Um mês depois, em janeiro de 1921, o escritório central do Partido Comunista Alemão fez um apelo mais abrangente a todas as organizações de trabalhadores, incluindo os social-democratas, para que agissem em conjunto. Zetkin era um dos principais membros desse órgão, mas o principal autor do apelo foi o co-presidente do partido, Paul Levi.

Conhecido como Carta Aberta, esse apelo incluía os cinco pontos de Stuttgart, de forma mais detalhada, além de exigências para a libertação de prisioneiros políticos e a retomada das relações comerciais e diplomáticas da Alemanha com a república soviética russa.

A Carta Aberta também foi rejeitada pelas lideranças nacionais social-democratas e sindicais. As autoridades sindicais começaram a expulsar os apoiadores do apelo. Mas, dessa vez, a campanha para angariar o apoio das bases foi mais ampla e bem-sucedida, a ponto de a confederação sindical nacional se sentir obrigada a emitir contrapropostas. As negociações subsequentes, embora não tenham chegado a um acordo, mostraram que negociações frutíferas entre social-democratas e comunistas eram possíveis [6].

Crise das reparações

O mês de janeiro de 1921 também viu a Grã-Bretanha, a França e outros vencedores da guerra mundial fazerem suas exigências de reparações. Eles exigiram que a Alemanha pagasse uma quantia equivalente a uma dúzia de vezes a receita anual total do estado alemão, que estava quase falido, e ameaçaram com ocupação militar em caso de não pagamento. Todos os matizes da opinião alemã consideravam as reparações impagáveis, e uma onda de indignação tomou conta do país [7].

Os comunistas responderam elaborando o último ponto de sua Carta Aberta e pedindo que a Alemanha fizesse uma aliança com a Rússia Soviética. Clara Zetkin já havia feito esse apelo em seu primeiro discurso no Reichstag, ou parlamento alemão, em 2 de julho de 1920 [8]. Quando a crise das reparações chegou ao ápice, ela voltou a fazer essa exigência no Reichstag, em 24 de janeiro de 1921, como “a única maneira de conseguir uma revisão do Tratado de Versalhes e, por fim, rasgá-lo”.

Ao promover uma ação unificada em relação a essa demanda, Zetkin procurou apontar a indignação das massas alemãs contra o Tratado de Versalhes em uma direção socialista. O estabelecimento do poder dos trabalhadores, disse ela, será “a hora em que a nação alemã nascerá, o nascimento de um povo alemão unificado, não mais dividido em senhores e servos” [9].

Uma tempestade de controvérsias

A iniciativa de Stuttgart e da Carta Aberta marcou uma mudança radical na direção do Partido Comunista. Em vez de simplesmente denunciar o curso pró-capitalista dos social-democratas, os comunistas agora estavam propondo um teste em ação da capacidade dos social-democratas de lutar por demandas consistentes com o programa formal dos social-democratas.

Essa mudança alarmou muitos comunistas alemães, que sentiram que seu partido estava minimizando o objetivo de derrubar o governo e se concentrando em demandas moderadas mais aceitáveis para os socialdemocratas. Eles temiam que a invocação de Zetkin de uma Alemanha dos trabalhadores como uma nova nação desse margem ao nacionalismo reacionário.

As iniciativas de Levi, Zetkin e seus aliados também enfrentaram objeções no exterior. Uma corrente liderada por comunistas húngaros, como Béla Kun, conclamou os comunistas a aprimorar seus slogans e iniciar ações minoritárias que pudessem levar os trabalhadores hesitantes à ação – a chamada Teoria da ofensiva. Embora criticado por Lenin, esse conceito encontrou algum apoio no Comitê Executivo da Internacional Comunista (CEIC), sediado em Moscou, inclusive de Nikolai Bukharin e Gregory Zinoviev [10].

Inicialmente, o CEIC criticou a Carta Aberta. No entanto, Lênin a apoiou, e o assunto foi encaminhado ao congresso mundial seguinte [11].

Classe trabalhadora dividida

A disputa sobre a política da frente única estava enraizada em um dilema enfrentado pela classe trabalhadora alemã. Ela havia sido derrotada, com pesadas baixas, na guerra civil organizada contra ela pelos líderes social-democratas em 1919. Nos anos seguintes, a fome e a miséria se espalharam: o consumo médio de grãos era agora pouco mais da metade dos níveis anteriores à guerra; o consumo de carne foi reduzido em dois terços. Choviam ataques dos capitalistas e o movimento dos trabalhadores estava na defensiva.

No final de 1920, os comunistas haviam se tornado um partido de massa, com mais de 400.000 membros, mas contavam com o apoio de menos de 20% dos trabalhadores que votavam como socialistas [12].

Isso gerou uma divisão entre os trabalhadores alemães. Uma vanguarda comunista estava frustrada e impaciente para agir, enquanto a maioria dos trabalhadores estava pessimista e passiva. Nas palavras de Zetkin, os trabalhadores estavam “quase desesperados”, mas “sem vontade de lutar” [13].

Zetkin e seus colegas insistiram nos esforços para unir os trabalhadores em uma luta defensiva, na qual eles pudessem recuperar a confiança necessária para retomar uma ofensiva coordenada pelo poder proletário. No entanto, seus oponentes de esquerda dentro do partido pediam uma ação minoritária para provocar uma crise. Como um deles comentou mais tarde, “Um pântano estagnado estava por toda parte. Um muro de passividade estava se erguendo. Tínhamos que rompê-la a qualquer custo” [14].

Era necessário ter liderança para controlar a impaciência e buscar um trabalho consistente de unidade na ação, mas isso não existia, nem em Berlim nem em Moscou.

A “Ação de Março”

As tensões no KPD (Partido Comunista da Alemanha) explodiram devido a uma questão não diretamente relacionada à questão da frente unida. No congresso de janeiro de 1921 do Partido Socialista Italiano, até então filiado à Internacional Comunista, uma ala de apoiadores do Comintern saiu para formar um partido comunista – com forte apoio dos representantes da CEIC (Comissão Executiva da Internacional Comunista), Mátyás Rákosi da Hungria e Kristo Kabakchiev da Bulgária. Um grupo maior e menos radical, que afirmava apoiar o Comintern, mas se opunha a uma ruptura imediata com a minoria reformista de direita do partido, permaneceu no Partido Socialista.

Durante uma discussão subsequente entre os líderes do KPD, Levi e Zetkin argumentaram que a divisão, embora inevitável, foi conduzida de forma agressivamente inflexível pelos representantes da CEIC, o que desnecessariamente dividiu as forças pró-Comintern. Karl Radek, que na época representava a CEIC na Alemanha, defendeu as ações na Itália, conquistando o apoio da ala radical da liderança do KPD. A disputa se intensificou, gerando tensões no KPD em relação à política da frente unida, à teoria da ofensiva e ao papel da CEIC.

O Bureau Central do partido adotou uma moção de Zetkin que amenizou as diferenças, mas logo as tensões ressurgiram.

Durante uma reunião do Comitê Central do KPD em 22 de fevereiro, Rákosi, representando a CEIC, reabriu o debate, chegando ao ponto de sugerir que uma divisão semelhante à ocorrida na Itália poderia ser necessária também na Alemanha. Por uma votação de 28 a 23, o Comitê Central apoiou Rákosi e rejeitou a posição de Levi. Em protesto, Levi, Zetkin e outros três membros renunciaram ao Bureau Central, o órgão de liderança do dia a dia. Eles foram substituídos por novos líderes mais radicais, que haviam sido críticos em relação às iniciativas de frente unida do partido. Zinoviev, ao se dirigir ao congresso do partido russo, saudou a mudança de rumo [15].

Existiam precedentes na história comunista para a demissão demonstrativa de Zetkin. Zinoviev ele próprio havia renunciado ao Comitê Central Bolchevique dessa maneira apenas alguns dias antes da insurreição de outubro de 1917, que estabeleceu o poder soviético. No entanto, a renúncia de Zetkin e seus aliados na liderança alemã teve resultados desastrosos. A nova liderança considerou-a desleal – um ato de deserção. Além disso, colocou Zetkin fora das discussões de liderança do dia a dia durante os eventos decisivos que se seguiram.

Em março, o KPD, com forte incentivo dos enviados da CEIC, colocou em ação o conceito de “ofensiva”, tentando lançar uma greve geral insurrecional baseada apenas nas forças do partido. A chamada “Ação de Março” foi um fracasso custoso, mas os líderes do partido mantiveram seu curso. Paul Levi publicamente denunciou a conduta do partido como um “golpe”, uma ação pela qual ele foi expulso.

Correção no Congresso Mundial

Isso deixou Zetkin como a mais proeminente defensora da linha da frente única no KPD e na Internacional. Na reunião de 7 e 8 de abril do Comitê Central do KPD, ela condenou o Bureau do partido por ter abandonado a Carta Aberta e a aliança com a Rússia Soviética e por lançar o partido em um curso de confronto que excluía as massas. “As campanhas do partido podem preparar o caminho para a ação das massas, podem fornecer metas e liderança para elas, mas não podem substituí-las”, afirmava a resolução proposta por ela [16].

No entanto, Zetkin estava quase sozinha, cercada por “um muro frio de rejeição, desconfiança e hostilidade” e marcada como “oportunista” e “renegada”, escreve a biógrafa Louise Dornemann. Zetkin “sentiu-se terrivelmente sozinha, como nunca antes em sua vida” [17].

Quando o Congresso da Internacional reuniu-se em Moscou, em junho, Zetkin encontrou apoio. Lênin e Leon Trotsky lançaram uma campanha para derrubar a ultraesquerdista Teoria da Ofensiva e conquistaram a Internacional para uma linha semelhante ao que Zetkin havia defendido.

Enquanto isso, a disputa entre os comunistas alemães se acirrou no congresso, com Zetkin liderando os críticos da Marzaktion. Em sua opinião, os líderes do partido não haviam demonstrado nenhum senso de realidade. “Eles trataram (…) as tendências como fatos já existentes”, disse ela. “Concentrando-se no que era concebivelmente possível, eles ignoraram o que era real. Eles acreditavam que uma resolução elaborada em um tubo de ensaio (…) poderia dominar a situação e reorientar instantaneamente as fileiras do partido”, que estavam totalmente despreparadas [18].

Em uma decisão de compromisso, o congresso adotou a essência da linha política que Zetkin havia defendido. Esse resultado abriu as portas para a adoção da política de frente única pela Internacional em dezembro de 1921. Isso permitiu que Zetkin realizasse dois anos de trabalho frutífero como o liderança não russa mais conhecida da Internacional.

Frente única na prática

Como líder do trabalho da Internacional Comunista entre as mulheres, Zetkin procurou imbuí-las dos conceitos da frente única. Esse trabalho nunca foi uma alta prioridade para os líderes do partido, e as mulheres representavam, no máximo, 10% do total de membros. Ainda assim, a Communist Women’s International tinha suas próprias publicações e conferências, tanto internacionais quanto nacionais, que iam muito além dos membros do partido. Zetkin “queria conquistar não apenas as mulheres operárias [industriais], mas também as mulheres que trabalhavam em escritórios, camponesas, funcionárias públicas e intelectuais”, escreve o biógrafo Gilbert Badia. “Ela preferia apelar para as mulheres social-democratas, deixando de lado as invectivas para conseguir uma audiência.” [19]

Em meados da década de 1920, quando a Internacional foi burocratizada por Stalin, a Internacional das Mulheres Comunistas foi uma das primeiras vítimas. Em 1925, a revista internacional das mulheres de Zetkin foi fechada por ser “muito cara”; no ano seguinte, apesar das objeções de Zetkin e de suas colegas, o secretariado das mulheres foi dissolvido e a formação de outras organizações de mulheres foi proibida, em meio a avisos sobre “feminismo” e “métodos socialdemocratas”. [20]

Zetkin também estava entre os líderes centrais de duas organizações criadas para coordenar a solidariedade além das fronteiras: International Workers Aid, que fornecia ajuda humanitária, e International Red Aid, que defendia as vítimas de perseguição política. Criada para ajudar a combater a fome na Rússia em 1921, a Workers’ Aid logo teve 200.000 pessoas sob seus cuidados; em seguida, forneceu fundos para o desenvolvimento industrial equivalentes à metade do que o governo soviético conseguiu com seus próprios recursos. Esse grande esforço se baseou em doações de trabalhadores e também em contribuições de amigos mais abastados da Rússia Soviética; até mesmo alguns bancos foram induzidos a conceder empréstimos [21].

Esses esforços foram organizados em uma base apartidária; entre os patrocinadores estavam Anatole France e Albert Einstein [22]. Porém, mais tarde, na era de Stalin, o princípio apartidário não conseguiu sobreviver. Apesar dos protestos veementes de Zetkin, essas organizações foram expurgadas no final da década de 1920, eliminando todos os críticos de Stalin, inclusive seus colaboradores mais próximos. [23]

Zetkin era um expoente do conceito de um governo dos trabalhadores, ou seja, um governo baseado no movimento de massa dos trabalhadores e que agia de acordo com seus interesses. Essa foi uma aplicação da frente única que se originou na Alemanha e se tornou parte do conjunto de ferramentas políticas dos comunistas na época de Lênin. Deixo esse tópico para uma discussão separada [24].

Unidade com os camponeses

As políticas agrárias dos bolcheviques, que visavam forjar uma aliança com os agricultores explorados e de pequena escala, haviam suscitado objeções de muitos marxistas de outros lugares da Europa, inclusive de Rosa Luxemburgo. Zetkin, no entanto, em um discurso em novembro de 1922, no quinto aniversário do poder soviético, enfatizou as conquistas dos bolcheviques em alcançar o campesinato. Na passagem a seguir, ela expressa um pensamento que não encontrei em nenhum outro lugar da literatura comunista mundial da época.

“Entre os camponeses pobres russos”, disse Zetkin, “há tradições antigas e profundamente sentidas de comunismo indígena nas aldeias que não desapareceram totalmente. Elas têm sido sustentadas e reforçadas por sentimentos religiosos primitivos que veem toda propriedade como proveniente de Deus, como propriedade de Deus…. E esses primórdios do entendimento comunista são sistematicamente incentivados e promovidos pelas medidas do estado proletário” [25].

Essa concepção remonta a ideias de Marx que eram desconhecidas na época de Zetkin e avança até as posições de José Carlos Mariátegui, do Peru, e dos marxistas de hoje em relação às sobrevivências do comunismo original entre os povos indígenas.

Unindo produtores criativos

O evento dominante na política europeia na década de 1920 foi a ascensão do fascismo, que triunfou na Itália em 1922 e estava ganhando força na Alemanha. Zetkin fez uma importante contribuição para o entendimento do marxismo sobre esse fenômeno sem precedentes.

Zetkin acreditava que, nessas condições de crise social generalizada, a frente única dos trabalhadores deveria ser estendida para muito além do proletariado industrial. Sua abordagem diferenciada é indicada por uma palavra usada por ela, e somente por ela, com referência às forças que devem ser unidas: die Schaffenden, uma palavra alemã que combina o significado de “produtores” e “criadores”. Os Schaffenden, diz Zetkin, são “todos aqueles cujo trabalho, seja com a mão ou com o cérebro, aumenta o patrimônio material e cultural da humanidade, sem explorar o trabalho de outros” [26]. Eles incluem muitos que não são trabalhadores assalariados explorados – sejam eles pescadores, artistas ou médicos – mas que, mesmo assim, são vítimas do capitalismo que o proletariado deve lutar para conquistar.

Ao comentar sobre uma greve de funcionários públicos alemães que trabalhavam nas ferrovias, ela a considerou sintomática da desintegração do Estado alemão. Os comunistas deveriam “desenvolver seus laços entre todos os funcionários públicos – não apenas ferroviários e trabalhadores dos correios, mas professores, funcionários do judiciário, etc” [27].

Dirigindo-se a uma conferência antifascista de frente única em 1923, Zetkin explicou que “amplas camadas de pequenos burgueses e intelectuais perderam as condições de vida do período anterior à guerra. Eles não estão proletarizados, mas empobrecidos”. Suas esperanças na democracia capitalista foram traídas; ela não produz mais reformas. Mas o proletariado lhes oferece um caminho a seguir, porque “somente a luta de classes revolucionária conquista reformas” [28].

A luta contra o fascismo

O conceito de produtores criativos de Zetkin dá profundidade à sua análise do fascismo. Diferentemente de outras formas de ditadura de direita, o fascismo é sustentado “não por uma casta estreita, mas por amplas camadas sociais, grandes massas que chegam até o proletariado”, disse ela em uma conferência do Comintern em 1923. “Não podemos derrotá-los apenas por meios militares” [29].

Ela considerava o fascismo como “uma expressão da decadência e desintegração da economia capitalista e um sintoma do colapso do Estado burguês”. Nessas condições sociais, continuou Zetkin, não apenas o proletariado é levado à pobreza, mas também as camadas pequeno-burguesas, os camponeses e os intelectuais são proletarizados [30].

Essas camadas “perderam a fé não apenas nos líderes reformistas [social-democratas], mas no próprio socialismo”.

O fascismo oferece um “refúgio para os politicamente sem teto e socialmente desenraizados, que estão desiludidos e privados da base para viver”. No entanto, “os interesses vitais dessas camadas estão em crescente contradição com a ordem capitalista”, assim como seu “anseio de ascender a um nível cultural mais elevado”. Essas “camadas desesperadas precisam de esperança, de uma nova visão de mundo”, que o proletariado pode proporcionar [31].

Essas ideias foram adotadas pelo Comitê Provisório Internacional contra o Fascismo, formado em 1923, tendo Zetkin e o autor francês Henri Barbusse como co-presidentes [32].

Zetkin no Comintern de Stalin

Esse início promissor foi desfeito no ano seguinte, quando a Internacional Comunista e seu KPD voltaram a uma versão mais extrema do ultraesquerdismo do período da Teoria da Ofensiva. A social-democracia passou a ser vista como uma “ala do fascismo alemão” ou, nas palavras de Stalin, sua “gêmea”. O termo “frente única” ainda era usado, mas agora era para ser uma “frente única a partir de baixo”, ou seja, nada de apelos aos líderes de outras correntes políticas; em vez disso, tentativas de conquistar os trabalhadores comuns para os movimentos liderados pelos comunistas.

Essa inversão foi ditada pelas necessidades táticas de uma facção burocrática que governava em Moscou, no primeiro estágio de um processo que rapidamente levou à degeneração da Internacional Comunista.

Exceto por uma pausa parcial em 1926-27, Zetkin agora se tornou um oposicionista, expressando suas opiniões mais profundas somente em cartas particulares, reuniões fechadas e memorandos confidenciais.

A então dominante facção de esquerda do KPD estava alinhada com o presidente do Comintern, Gregory Zinoviev, e em 1926 eles o seguiram na Oposição Unida, liderada por Zinoviev e Trotsky. Zetkin permitiu que sua animosidade com a ultraesquerda alemã influenciasse sua avaliação dessa nova oposição. Ela se alinhou com Nikolai Bukharin, então aliado de Stalin, em uma combinação que estava promovendo a burocratização da Internacional. Tragicamente, em 1927, ela apoiou veementemente as medidas para expulsar os partidários da Oposição Unificada.

Apenas dois anos mais tarde, Zetkin apoiou a corrente liderada por Bukharin, a chamada “Oposição de Direita”, em sua rebelião contra uma guinada à ultraesquerda nas políticas de Stalin. A tendência de Bukharin foi derrotada, e seus apoiadores foram expulsos ou forçados a se retratar. Zetkin, sozinha, permaneceu em seu posto, nunca se retratando de suas opiniões e proclamando-as quando podia em cartas, memorandos e discussões pessoais. Ela não escondia seu desprezo por Stalin, uma vez escrevendo sobre ele, na linguagem chauvinista da época, como “uma mulher esquizofrênica usando calças masculinas” [33].

Durante esses anos de tormento, sua saúde, que nunca foi boa, cedeu. Problemas circulatórios impediam cada vez mais que ela andasse. Ela sofreu as consequências da malária e, em seus últimos anos, ficou quase cega.

Ela mantinha a esperança de que a Internacional Comunista pudesse ser reformada, assim como Bukharin, Trotsky e quase todos os oposicionistas comunistas da época. Ela não abandonou o movimento comunista oficial. Mas não conseguiu impedir que Stalin utilizasse seu enorme prestígio para seus próprios fins.

Em uma ocasião, ela conseguiu afirmar na imprensa que discordava da linha da Internacional. Duas de suas críticas à política stalinista, com argumentos muito bem elaborados, de alguma forma chegaram a periódicos socialistas independentes, que as publicaram.

A maior preocupação de Zetkin era a ascensão do fascismo alemão. Diante dessa ameaça, a Internacional Comunista recuou para o sectarismo, rotulando os social-democratas de fascistas, rejeitando uma ampla aliança contra o hitlerismo e não fazendo nenhuma tentativa de preparar uma resistência concertada contra o fascismo.

Zetkin era a favor de uma resposta de frente única, uma posição semelhante à defendida por Trotsky e pela Oposição de Esquerda.

Quando o parlamento alemão se reuniu novamente em 1932, era direito de Zetkin, como seu membro mais velho, abrir oficialmente a sessão. Ao ouvir isso, ela exclamou: “Eu farei isso, viva ou morta”. Os nazistas prometeram matá-la se ela aparecesse. Já perto da morte, ela foi carregada em uma cadeira até a plataforma dos oradores, para enfrentar uma multidão arrogante de deputados nazistas uniformizados. Sua voz, fraca no início, cresceu em volume e paixão, [34] expressando tanto seu desafio quanto sua visão de como a ameaça fascista poderia ser derrotada:

“A tarefa imediata mais importante é a formação de uma Frente Única de todos os trabalhadores para fazer o fascismo retroceder… Diante dessa necessidade histórica imperiosa, todas as opiniões políticas, sindicais, religiosas e ideológicas inibidoras e divisoras devem ficar em segundo plano” [35].

No entanto, o movimento dos trabalhadores alemães foi derrotado sem tomar uma posição. Nos primeiros meses de 1933, os nazistas tomaram o poder e esmagaram o Partido Comunista e o movimento dos trabalhadores.

Clara Zetkin morreu em julho daquele ano. Foi um período de derrota e desmoralização. Se ela tivesse v’ivido mais alguns anos, teria testemunhado a Internacional Comunista se voltar bruscamente para a direita, abraçando a aliança com as forças burguesas em defesa do capitalismo, enquanto Stalin organizava o assassinato de quase todos os seus amigos e colegas que viviam na União Soviética.

O que Clara Zetkin nos diz hoje? Gostaria de sugerir três pontos:

1. As condições políticas e as relações de classe mudaram enormemente desde a época de Zetkin. Mas sua insistência na necessidade de unidade de ação no caminho em direção ao poder dos trabalhadores continua válida.

2. Como líder comunista, Zetkin se distinguiu por sua atenção e sensibilidade aos humores dos trabalhadores mais atrasados e mais privilegiados. A liderança de um partido revolucionário não deve consistir apenas de tais líderes. Por outro lado, essa liderança precisa abranger essa perspectiva. O exemplo de Zetkin ilustra a necessidade de inclusão e amplitude na liderança de um partido revolucionário.

3. Clara Zetkin estava sempre errada, às vezes de forma trágica. No entanto, ela conseguiu contribuir enormemente para a luta pela libertação humana em sua época. Ela é um exemplo do que nós, trabalhando juntos, podemos alcançar nas próximas décadas.

*O ensaio Clara Zetkin’s struggle for the united front é baseado em uma palestra apresentada por John Riddell em junho de 2009 em Chicago. Ele foi publicado pela primeira vez na edição de novembro e dezembro de 2009 da International Socialist Review.
A tradução deste ensaio ficou a cargo de Bruno Rodrigues, membro da equipe editorial do portal, e contou com a revisão Daniel Kraucher, colaborador do portal.
Notas
[1] Lenin, a quem os comunistas russos frequentemente chamavam de “o velho”, nasceu 13 anos depois de Zetkin.
[2] Veja John Riddell, ed., A Luta de Lenin por uma Internacional Revolucionária (Nova York: Monad Press, 1984), 276-79.
[3] Riddell, A Luta de Lenin, 172.
[4] Pierre Broué, A Revolução Alemã 1917-1923 (Londres: Merlin Press, 2006), 468-69; Arnold Reisberg, An den Quellen der Einheitsfrontpolitik (Berlim: Dietz Verlag, 1971), 50-51.
[5] Reisberg, 51-53.
[6] Reisberg, 53-62, 65-67.
[7] Sigrid Koch-Baumgarten, Aufstand der Avantgarde: Die Märzaktion der KPD 1921 (Frankfurt: Campus Verlag, 1986), 99-101.
[8] A conquista do sufrágio feminino foi uma das conquistas da revolução alemã de 1918; somente então Zetkin foi elegível para concorrer às eleições.
[9] Reisberg, 71. A declaração de Zetkin lembra um trecho do “Manifesto Comunista”: “Os homens trabalhadores não têm país. Não podemos tomar deles o que eles não têm. Desde que o proletariado deve antes de tudo adquirir a supremacia política, deve se elevar para ser a classe líder da nação, deve constituir-se a nação, é assim, até certo ponto, nacional, embora não no sentido burguês da palavra”. Karl Marx e Friedrich Engels, Obras Escolhidas (Moscou: Progress Publishers, 1984), 502-503.
[10] Koch-Baumgarten, 81. Lenin, ” ‘Kommunismus,’ ” em Obras Escolhidas, vol. 31 (Moscou: Progress Publishers, 1960-71), 165-67.
[11] Broué, 473.
[12] Reisberg, 97; Koch-Baumgarten, 87.
[13] Zetkin, “Die Lehren des deutschen Eisenbahnerstriks,” in Kommunistische Internationale 20 (1922), 1.
[14] Citado por Trotsky em Protokoll des III Weltkongresses der Kommuinistischen Internationale (Hamburgo: Verlag der Kommunistischen Internationale, 1921), 274.
[15] A complexa história da divisão italiana e seu impacto nos comunistas alemães é bem contada por Broué, 474-90.
[16] Reisberg, 125.
[17] Luise Dornemann, Clara Zetkin: Leben und Wirken (Berlim: Dietz Verlag, 1973), 423.
[18] Protokoll des III Weltkongresses, 601.
[19] Gilbert Badia, Clara Zetkin, féministe sans frontières (Paris: Les Éditions Ouvrières, 1993), 256.
[20] Badia 257; Bernhard Beyerlein, “Zwischen Internationale und Gulag. Präliminarien zur Geschichte der internationalen kommunistischen Frauenbewegung(1919-1945). Teil 1.” em The International Newsletter of Communist Studies Online, vol. 12 (2006), nº 19, 38-42.
[21] Protokoll des Vierten Kongresses der Kommunistischen Internationale (Hamburgo: Verlag der Kommunistischen Internationale, 1923), 550, 555.
[22] Badia 265.
[23] Badia 267.
[24] Veja Zetkin, “Die Arbeiterregierung,” Die Kommunistische Fraueninternationale 9-10 (1922): 651-57; tradução para o inglês disponível em http://www.workersliberty.org/story/2009/02/20/clara-zetkin-workers-government-1922.
[25] Protokoll des Vierten Kongresses, 250.
[26] De um discurso no Reichstag alemão, em 7 de março de 1923, publicado naquele ano pelo KPD e citado em Tânia Puschnerat, Clara Zetkin: Bürgerlichkeit und Marxismus (Essen: Klartext Verlag, 2003), 346.
[27] Zetkin, “Die Lehren des deutschen Eisenbahnerstriks,” in Kommunistische Internationale 20 (1920), 8.
[28] Zetkin, “Kampf gegen den internationalen Faschismus,” in Internationale Presse-Korrespondenz 52 (1923), 418.
[29] Protokoll der Konferenz der erweiterten Executive der Kommunistischen Internationale Moscau 12-23. Juni 1923 (Hamburgo: Verlag Carl Hoym, 1923), 205.
[30] Protokoll der Konferenz, 205-209.
[31] Protokoll der Konferenz, 222.
[32] Puschnerat, 283.
[33] Puschnerat, 374.
[34] Badia, 302-303.
[35] Philip S. Foner, ed., Clara Zetkin: Selected Writings (Nova York: International Publishers, 1984), 174.