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CULTURA

A atualidade de um clássico de Trotsky 90 anos depois

Entrevista com Dainis Karepovs sobre a edição de “Revolução e Contrarrevolução na Alemanha”, de Leon Trotsky, com organização e prefácio de Mário Pedrosa, recém-lançada

Fundação Perseu Abramo
Marcio De Marco/FPA

Dainis Karepovs em entrevista. Acima Angela Mendes de Almeida e Isabel Loureiro.

A Fundação Perseu Abramo em parceria com a editora Veneta lança Revolução e Contrarrevolução na Alemanha, de Leon Trotsky, com organização e prefácio de Mário Pedrosa. A edição conta com introdução e notas históricas de Dainis Karepovs.

Lançado em 1933, a primeira edição deste livro teve grande repercussão, principalmente entre os militantes de esquerda da época, mesmo os não trotskistas. É desse período de ascensão do nazismo e do fascismo, as ações e projetos para combatê-los, assim como a atualidade dessa obra, 90 anos depois, que trata esta entrevista com Dainis Karepovsresponsável pela edição atual. Doutor em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e com pós-doutorado em História realizado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Karepovs é coautor, com Fulvio Abramo, de Na Contracorrente da História (Sundermann, 2015) e autor de Pas de Politique Mariô! Mario Pedrosa e a Política (Ateliê; Editora da Fundação Perseu Abramo, 2017).

Para esta conversa convidamos as professoras Angela Mendes de Almeidadoutorada em Ciências Políticas na Universidade de Paris VIII, ex-professora universitária em Lisboa (ISCTE) e na UFRRJ, autora de Do Partido Único ao Stalinismo (Alameda Editorial); e Isabel Loureiro, doutora em Filosofia pela USP, professora aposentada do Departamento de Filosofia da Unesp, colaboradora da Fundação Rosa Luxemburgo, autora de Rosa Luxemburgo — os dilemas da ação revolucionária e de A Revolução Alemãambos pela editora Unesp. Contamos também com a participação de Rogerio de Campos, editor da Veneta.

Isabel Loureiro: Parabéns, Dainis, pela introdução e pelas notas de rodapé que você fez ao livro, porque é um texto em parte muito centrado na época e sem as notas acabaria sendo mais difícil a compreensão. No caso da introdução, me chamou a atenção as citações que você faz que são da imprensa brasileira da época, elogiando Hitler. E aí eu não consegui evitar fazer um paralelo com a ascensão e chegada de Bolsonaro ao poder. Como a nossa imprensa também abriu o caminho para ele a ponto de ter demorado tanto a tomar uma posição crítica. Você até faz uma referência rápida a ele. A minha pergunta é justamente sobre essa semelhança entre o presente e aquele passado. O que fez você voltar a esse livro e reeditá-lo?

Dainis Karepovs: É importante mencionar que neste ano, em março, a primeira edição desse livro completou 90 anos, pois foi lançado em 1933. Pode-se dizer que, ao longo das sucessivas edições que teve, foi o best-seller no campo da esquerda. E não sem razão, essas reedições sobreviveram a ditaduras: Estado Novo, ditadura militar de 1964 e, vamos chamar assim, uma vontade louca de ressuscitar isso desse último governo que nos deixou. Em todos os textos ali reunidos destaca-se a compreensão desse fenômeno do fascismo que tem em Trotsky um analista firme, capaz de perceber ao seu tempo o perigo que isso representava para a humanidade e que ele tentou até o último momento evitar que esse desastre tivesse acontecido. Enfim, são muito vivas as lições que podemos tirar desse livro. Claro que são coisas de mais de 90 anos atrás, mas que têm nesse livro em germe a compreensão até do que se passa hoje. É possível compreender o papel de figuras como Bolsonaro, e também dessa classe média enlouquecida que temos hoje. Obviamente, não havia “redes sociais” naquele momento, mas tinha uma mídia disponível para fazer propaganda dessa gente. Continua muito atual. No essencial, as ideias, o retrato que Trotsky faz do fenômeno fascista, continuam muito atuais. Por isso é uma obra que continua tendo a sua validade. Não esqueçam, tem 90 anos!

Angela Mendes de Almeida: Quero cumprimentá-lo pela bela ideia de fazer essa publicação agora e pela introdução, que é extremamente detalhista e quase um outro pequeno livro. Trata de alguns assuntos com profundidade e precisão de um livro. Sobre a imprensa de esquerda, como também o movimento da Liga Comunista Internacionalista daquele período, que é relativamente curto e tem pouca bibliografia, a primeira coisa que me chamou a atenção foi a sua ideia de usar a opinião de várias personagens da época sobre o novo fenômeno. Lembrei-me, embora possa parecer desfocado, da metodologia utilizada por Lucien Febvre para seu ensaio sobre Rabelais: fazer o levantamento do estado geral dos conhecimentos à época do seu autor para comparar. Pois havia uma espécie de mistério, desconhecimento, sobre o que seria exatamente o nazismo. Então, foi muito boa a ideia de pegar no Brasil, na imprensa, o que as pessoas estavam pensando, considerando que o país não tinha acesso a muita bibliografia, não como na Europa. Mas o que as pessoas poderiam pensar sobre o que iria acontecer? E você começa a fazer um levantamento para mostrar que Mário Pedrosa, vindo do universo da oposição de esquerda internacional, era o único que estava prevendo o que poderia acontecer de gravíssimo. E eu fiz essa analogia de como você usa essa metodologia, que é muito importante em história, que é saber qual posição seria possível naquele momento. O que eles poderiam pensar e qual seria o pensamento mais avançado, quais elementos estavam disponíveis naquele momento. A entrada que você dá ao tema é extremamente interessante.

Dainis Karepovs: Eu acho que, como você tratou, essa entrada é importante para situar… Na verdade, o que está por trás dessa entrada – não quis ser panfletário – e a imprensa brasileira com relação ao Bolsonaro é o mesmo tipo de coisa. Era a expectativa de que o maluco Mussolini de bigodinho [Hitler], como alguns dos contemporâneos o chamavam, podia subir no poder, fazer coisas malucas, “mas nós vamos controlar esse cara”. É a mesma coisa, não muda nada. Então a minha ideia foi de trazer isso. Como se diz, “nada se cria, tudo se copia”. Essa introdução tem essa perspectiva. Não quis anunciar o Bolsonaro ali porque não vale a pena, mas é fácil compreender que tanto Hitler como Bolsonaro são anomalias de momentos históricos – Hitler em uma escala muito maior – que levaram a humanidade para um lugar de onde não se esperava que ela fosse mais capaz de voltar.

Aqui também, estamos com praticamente seis meses do novo governo, em que a principal atividade tem sido reconstruir o que foi destruído. Estamos tentando hoje estabelecer uma base sólida para tentar começar a crescer de novo, fazer esse país andar, mas a destruição foi grande. E quando eu tratei desses personagens dos anos 1930, a maioria deles completamente esquecidos, foi para trazer à vista dos leitores de hoje que no fim isso não é nada novo.

Na verdade, a ideia de reeditar o livro não é minha. Ela me foi proposta pelos companheiros Carlos Henrique Árabe e Rogério Chaves. Eu abracei a causa imediatamente, porque atrás dela tem um personagem que é o Mário Pedrosa, ao qual eu dediquei muito tempo. Participei da construção do arquivo que leva o nome dele, Centro de Documentação do Movimento Operário Mario Pedrosa (Cemap), e me dediquei a recuperar sua trajetória, que este livro também traz.

Fui muito amigo de outro militante, o Fulvio Abramo, que trabalhou na editora Unitas, que publicou a primeira edição deste livro. Uma coisa que eu também ressalto nessa minha introdução é o fato de a primeira publicação ser um trabalho coletivo dessa geração, um grupo de 90, 100 pessoas, que estavam de um lado criticando Revolução Russa, que tinha acontecido há 20 e poucos anos… Estava viva na memória das pessoas. Obviamente ficaram estigmatizadas por isso. Então eles apontavam quais eram os problemas daquela revolução, que caminhos ela estava tomando, estavam abandonando as ideias originais que resultaram na revolução… Era uma luta muito difícil. E, além disso, eles se debatiam com outro problema, que era o fato de que tinham um preparo muito maior que o maioria dos dirigentes e membros do partido naquela época. Então têm uma preocupação muito grande também com a difusão do marxismo, que no Brasil era muito rala. Naquela época começou a se difundir o que mais tarde seria conhecido como “marxismo leninismo”, contra o qual eles lutavam.

Há uma blague do professor da Unicamp João Quartim de Morais dizendo que, na verdade, o comunismo chegou antes do marxismo no Brasil. Então, as pessoas assimilaram o marxismo à ideia de um estado… e marxismo mesmo, nada. E essa pequena editora infelizmente não conseguiu fazer isso porque acabou falindo, mas mostrou empenho em fazer esse trabalho, essa luta em prol também do aprimoramento desses dirigentes que buscavam fazer revolução, mas que conseguiu ir além de repetir as fórmulas que vinham prontas de Moscou. Essa editora com todos os problemas que teve se dedicou a difundir o marxismo no Brasil. E com uma característica peculiar, que era o fato de ser o trabalho de um grupo.

Embora todos digam que esse livro foi organizado por Mário Pedrosa, que ele traduziu tudo, pelo menos as traduções, ao fazer este trabalho, eu percebi que não foram todas dele. Dá para notar que tem uma parte dos textos que foi traduzida de outra fonte e por outra pessoa. Parece que os textos em inglês eram traduzidos por outra pessoa. Havia coisas do tipo, uma parte era Internacional Comunista (de origem francesa) e outra era Comintern (de origem inglesa).

Mas isso não importava a ele, o importante era o trabalho coletivo que estavam fazendo. O Mário ficou com a fama de ter feito tudo, se destacava porque aparecia na imprensa, dava entrevistas, mas era um trabalho de grupo. Raramente nas edições que eles fizeram têm os nomes do tradutor, de quem fez a apresentação, organizou, por exemplo. Esse livro não tinha essa informação, que vem de contemporâneos, é uma tradição oral, digamos. Eles estavam preocupados em divulgar as ideias e colocá-las em discussão. É importante ressaltar isso. Tanto que no texto eu chamo de Outras Artes de Mario Pedrosa e seus camaradas.

Isabel Loureiro: Há duas linhas mestras, nesses textos. A primeira que parece básica é a ideia de que fascismo é a encarnação da contrarrevolução depois de uma revolução proletária derrotada. A Alemanha é o exemplo clássico de revolução proletária derrotada, de fato em 18 e 23, independentemente das leituras erradas que são feitas até hoje, de que a Liga Spartacus era a liderança dessa revolução derrotada, o que não é verdade porque a Liga não tinha força para isso.

No caso atual, um governo de extrema-direita, fascista, se quisermos assim chamar, chegar ao poder por eleições, não por uma revolução proletária derrotada, nem operária, nem outro tipo, é uma coisa diferente. Mas eu acho que tem um traço comum, que é o empobrecimento da classe média, dos trabalhadores, da grande massa popular, que ocorreu também nos tempos atuais com o neoliberalismo. A proposta de Trotsky era correta, uma política de frente única das esquerdas contra o fascismo. No caso atual, pensando no Brasil, não dava para se propor uma política de frente única, é totalmente diferente a situação. Foi proposta uma política de frente ampla, amplíssima, para derrotar Bolsonaro.

No caso da Alemanha, a política de frente única fazia todo sentido, porque o Partido da Social-Democrata era de fato forte, o Partido Comunista era relativamente forte, na verdade era mais estridente que forte. Mas Trotsky faz uma crítica dura ao esquerdismo do Partido Comunista e o Mário Pedrosa vai na cola dele.

Existem muitos pontos de semelhança, mas também tem muitas diferenças em relação à situação anterior.

Dainis Karepovs: Você tem razão, as analogias não cabem 100%. O essencial se preserva. Acho que a validade desse livro está na capacidade que ele suscita ao leitor pensar o que ele está vendo à sua frente. Não há nem um Partido Comunista como o alemão, que naquela época teve seu perfil mudado. Havia muito desemprego, e muito desempregado no partido e aí começa a juntar um certo lumpesinato. E não há uma social-democracia – que você pode querer associar ao PT. Não é completamente errôneo pensar o PT como algo semelhante à social-democracia alemã, não obviamente na sua trajetória, mas no papel que ela teve nesse período e até hoje. À parte essas analogias mais evidentes, acho importante essa situação com relação aos papeis. De um lado, o ascenso do fascismo e, de outro lado, uma composição de forças de esquerda que podiam se unir.

Hoje do lado da esquerda, afora o PT, não tem algo que pudesse ser assimilado a um desses partidos, da dita esquerda no Brasil, com que se pudesse criar uma frente única. Não faz sentido um partido grande como é o PT com um partido minúsculo. Como ideia não faz muito sentido, como propaganda, ótimo. Mas como um modo de ação para enfrentar o dia a dia, luta de classes, luta política, não resolve.

De outro lado, há questões que continuam válidas. “O Hitler era legal porque ele ia acabar com os comunas” e “o Bolsonaro é legal pois vai acabar com os ‘petistas’”. Essa ideia se preserva e o papel que esses sujeitos têm nessa história. Ao mesmo tempo, o papel dessa classe média mais empobrecida, que foi aquela que perdeu um certo poder nos anos Dilma. Isso se juntou a algo que o bolsonarismo inventou na crise, que chamam de empreendedorismo. O sujeito trocou a sandália havaiana pelo tênis Nike falso, pago à prestação, e comprou uma bicicleta para entregar comida. E jura por Deus que seu maior amigo se chama Roberto Marinho, Moreira Salles, Setúbal, Frias…

A ideia de empreendedorismo entrou na cabeça das pessoas de tal forma que é uma luta muito complicada de ser travada hoje. Não é difícil o caminho para se enfrentar, mas é muito complicado dizer “você não é empreendedor, não é nada”. A conversa tem que se dar em outro nível, mais racional para que ele possa entender o seu lugar na luta de classes. A pessoa acha que pelo fato de ser entregador de comida de aplicativos está em outro estágio da evolução social. Isso é dos nossos tempos e temos de estar atentos. Obviamente isso não existia na Alemanha nazista, mas tinha o enlouquecimento da classe média alemã que tinha vivido o processo de hiperinflação que levou ao empobrecimento de muita gente, e qualquer emprego era uma saída para aquela dificuldade que viviam. E rapidamente associavam essas dificuldades à agitação operária, aos socialistas e os comunistas que não permitiam que ele tivesse emprego.

Na Alemanha, depois que Hitler ascende e resolve inverter toda a cadeia produtiva alemã para a indústria militar, passa a ter pleno emprego. Fica muito mais difícil para a esquerda enfrentar o que aconteceu depois da ascensão do Hitler, a trajetória de sua nomeação para chanceler até o momento em que ele adquire plenos poderes em meados de 1934. Ele põe na ilegalidade todo mundo, prende quem quer. Ele era chanceler e presidente ao mesmo tempo, o Führer. Aí está tudo dentro dessa lógica: primeiro, um certo bem-estar material que ele conseguiu proporcionar ao que se somam aquelas coisas que estavam no esgoto, o ódio aos judeus, enfim, a política racial, que ele desenvolveu ao longo dos anos. Começa a fazer a seleção genética dos arianos. Essas coisas começam antes da guerra, mas vão entrando na cabeça das pessoas.

O livro tem o mérito de suscitar essas questões para que seu leitor de hoje, 90 anos depois, perceba que elas continuam flutuando, não foram embora.

Angela Mendes de Almeida: Eu não sou muito partidária de fazermos comparações com 90 anos atrás, que é o caso do livro, com a realidade atual. Acho que a sociedade e as classes sociais mudaram radicalmente, principalmente do lado da esquerda e da classe operária, que quase não existe ou está completamente contaminada por esses processos de empreendedorismos e outras coisas. Isso até mesmo na Europa, não é só uma situação do Brasil. Acho que há elementos de comparação com a situação atual, justamente nesse último trecho da sua fala. Aquela corrida desenfreada de repressão à toda a esquerda, desde o incêndio de Reichstag, 27 de fevereiro de 1933, até Hitler assumir o poder completamente. Isso, digamos assim, se nós pensarmos na situação que nós estávamos antes do Lula ser eleito, por uma margem muito pequena. Significa que há um monstro que continua entre nós, que é uma parte do eleitorado brasileiro. O monstro surgiu na própria eleição de Bolsonaro, que é uma coisa não imaginada para quem viveu um pouco antes. Um monstro que estava entre nós, apareceu de repente e elegeu o Bolsonaro. Ele é uma coisa vergonhosa e as pessoas ainda não entenderam. A comparação possível é entre essas duas situações e as sensações que elas produzem.

Mas voltando à história do período sobre o qual você escreve, em que medida é possível aprofundar um estudo sobre a ação desses militantes, inclusive contrária aos comunistas do período, que seguiam um governo soviético que já era fortemente stalinista? Já tinha passado 1928, 1929, toda a gravíssima fome na União Soviética. Não tinham ainda assassinado todo mundo, mas já tinham prendido todas as tendências e exilado os militantes políticos. O stalinismo já estava em pleno domínio. E os comunistas daqui, numa certa ignorância, seguiam cegamente os stalinistas sobre a questão do social fascismo.

Outra coisa: você faz uma pequena referência a Benjamin Péret militando em São Paulo. Depois que escrevi meu livro (Do Partido Único ao Stalinismo), continuei lendo sobre a guerra civil espanhola e topei com um livro que não é de um historiador, parece ser de um antigo militante, Agustin Guillamón, cujo título é El Terror Estalinista en Barcelona – 1938. Uma parte grande do livro gira em torno do militante trotskista – Manuel Fernandez-Grandizo (“Munis”) preso, condenado à morte, mas que consegue libertar-se depois da guerra civil e continua militando no México. Lá forma, depois da guerra, uma tendência com Benjamin Péret e Natalia Sedova que se opõe à Quarta Internacional e sustenta que a União Soviética não era mais um Estado operário, que é a questão chave de todas as cisões da Quarta Internacional. Eu fiquei pensando se dá para alguém, você principalmente, aprofundar a atividade desses militantes nesse período. Trazer mais esse debate que deve ter sido riquíssimo entre os stalinistas e esses trotskistas que era um grupo pequeno, como você disse. Deve haver muito mais coisas para contar.

Dainis Karepovs: Esse pequeno grupo, nesse período de 1933, 1934, por conta de sua ação, particularmente contra o fascismo, tanto em nível internacional como aqui no Brasil contra o integralismo, vai conseguir uma adesão importante de membros e até uma certa audiência.

Este livro, Revolução e Contrarrevolução na Alemanha, quando foi publicado, foi objeto de leitura de uma vasta franja de militantes não só desse pequeno grupo, mas da esquerda de modo geral. Eu, por exemplo, conto na Introdução desta edição que achei em um sebo um exemplar que era de um dirigente da Juventude Comunista, Artur Basbaum. Outro militante muito importante, que mais tarde vai aderir ao trotskismo, Hermínio Sacchetta, relata o impacto em sua trajetória política. A ação dos trotskistas nesse período é muito importante, porque eles propunham fazer frente única, mas uma frente única entre a esquerda. E para isso era preciso trazer todos com base nesse princípio: “somos contra os nazistas e somos de esquerda. Cada um continua defendendo suas ideias, só que juntos estamos para combater os fascistas”. E aí ele eles conseguem obter uma adesão grande. O único agrupamento que se recusa e fica com uma atuação oscilante, entra, sai, é o dos stalinistas. Isso porque a Internacional Comunista, durante muito tempo, mesmo depois da ascensão do Hitler, não acreditava que o nazismo duraria. E aí foram postergando essa avaliação. Só que chegou o momento que acontecem fenômenos na Europa de um modo geral, na França, na Espanha, na Tchecoslováquia, em Cuba, enfim, em uma série de países ao redor do mundo, a esquerda ligada ao Partido Comunista e em geral começam a realizar ações comuns para enfrentar o fascismo.

E essa percepção foi se irradiando nas fileiras do Partido Comunista e levou a rever a política típica das orientações que o partido vinha tendo até ali, o chamado social-fascismo, e que resulta na frente popular, que tecnicamente existe até hoje.

Se olharmos as propostas de frente única dos partidos ligados à tradição comunista, eles repetem as mesmas fórmulas. Mesmo agora, quando o Lula foi tentar formar uma frente são as mesmas ideias básicas. Só que isso vai acontecer formalmente em 1935. Nessa trajetória aqui no Brasil, os comunistas no país ficaram muito confusos. Não sabiam para que lado iam. Então, essas oscilações se refletem na postura que eles têm com relação à política de frente única que os trotskistas estavam levando a efeito aqui. Isso até o momento em que finalmente é anunciado em uma conferência que os dirigentes comunistas têm em Moscou, em outubro 1934. Eles foram para lá, participar do 7º Congresso da Internacional Comunista, que acabou sendo adiado para 1935. Lá foram informados de uma nova política e quando voltam já com essa determinação começam a tomar algumas iniciativas, mas que só vão resultar na formação da ANL em 1935. Mas para a juventude, eles começaram a propor a criação de um Congresso Nacional da Juventude que aconteceu na Espanha, onde iriam fundir todas as organizações, inclusive os comunistas, numa organização de juventude. Aliás, a juventude sempre teve na Internacional Comunista um papel, no período stalinista, de ser uma organização em que eles faziam os experimentos, acerto de linhas. Assim testavam primeiro na juventude, se funcionasse seguiam adiante, senão descartavam.

No caso dos trotskistas, eles têm a infelicidade de sofrer uma crise interna que foi resultado, de um lado, de uma discussão que travaram sobre a contramanifestação de 7 de outubro na Praça da Sé, pois tinha quem não queria enfrentar os integralistas de armas na mão e juntou-se a isso a discussão que havia nas fileiras do movimento sobre a questão do entrismo. Trotsky, percebendo que a Internacional Comunista já não fazia mais sentido enquanto organização, achava que era preciso criar uma outra, mas os trotskistas não poderiam ser a base dessa nova organização, pois eram muito fracos numericamente. Então, se propôs entrar nos setores mais radicalizados da social-democracia, principalmente, que por conta da ascensão do fascismo estavam num processo de radicalização, e obter adesão, conquistá-los. E aqui no Brasil também se fez isso. E o pequeno grupo trotskista no Brasil entrou no Partido Socialista Brasileiro – socialista, muito pouco, e brasileiro, menos ainda. Tanto que foi criado por um interventor militar em 1932.

Enfim, eles entraram nesse partido, o que causa uma briga entre eles e se cindiram. Justamente quando esse processo ocorre, acontece o surgimento da Aliança Nacional Libertadora (ANL). A história, enfim, impediu que esse caminho que os trotskistas tentaram trilhar no Brasil tivesse continuidade. Depois acontece em novembro de 1935, o putsch de 35, as revoltas militares, mas jamais intentona, que é um apelido que a direita adora dar.

Enfim, esse pequeno grupo consegue ter durante esses dois anos, 1933, 1934, essa atuação e consegue por meio da editora Unitas. Para se ter uma ideia, nos anos 30, existem duas edições do Manifesto Comunista, feita por essa editora. Então pode parecer irrelevante, desinteressante, mas a primeira edição do Manifesto Comunista é de 1924, da qual uma boa parte foi apreendida pela polícia. Então não tinha muita circulação desse texto, que era importante para a explicação das ideias marxistas. Em dois anos, eles conseguem praticamente esgotar duas edições. Se procurarmos na Estante Virtual, quando aparece uma é no valor de quatro dígitos. Fizeram um trabalho importante no sentido de difundir as ideias marxistas no Brasil. Essa atuação é muito importante no campo da esquerda brasileira.

Rogério de Campos: Antes da eleição do Bolsonaro, antes da do golpe contra a Dilma, já era possível identificar o fascismo ativo. E na juventude especialmente falava-se do clima perigoso, dos Bolsonaro-boys atacando. Nas manifestações de 2013, na Rua Frei Caneca (São Paulo), um grupo de bolsonaristas batia em todo mundo e ocorreram outros desses episódios. Isso me levou a publicar na Veneta, A Revoada dos Galinhas Verdes – uma história da luta contra o fascismo no Brasil, de Fúlvio Abramo. Para passar uma experiência da década de 1930 sobre como a esquerda reagiu à violência integralista. Esse livro teve importância de reviver essa experiência. Não como exemplo, mas como pensar a respeito de uma resistência, de forças de autodefesa. Revolução e Contrarrevolução na Alemanha trata de outro aspecto da resistência ao fascismo, que é a luta ideológica e a luta cultural.

Trata-se de um grupo político, não um grupo simplesmente editorial. Exerce a ação editorial em função da política, da decisão política e considera importante agir politicamente através do livro. O livro é uma ação política. Parece que existe a consciência de uma guerra cultural mais sofisticada do que na esquerda hoje. Parece haver uma consciência que combina com O Homem Livre que falava de política e defendiam posições de cultura. Pedrosa está na vanguarda. É um exemplo que talvez seja útil nesse momento de se repensar a ação cultural. Me parece, às vezes, que a direita tem isso mais claro. A direita tem várias editoras envolvendo o negócio de livro. Não parece que a esquerda trabalha com o livro como instrumento político de uma maneira ainda muito tímida?

Dainis Karepovs: Você trouxe à baila O Homem Livre, um exemplo muito claro de um jornal antifascista. No editorial do primeiro número do jornal, depois dos manifestos da Frente Única, há ali uma manifestação clara no seguinte sentido: temos o combate político com esses caras, mas também temos um combate ideológico, cultural. É preciso desenvolver todas as frentes.

Quando se lê O Homem Livre com mais vagar, percebe-se que o fascismo não era só Göring mandando decapitar com machado seus opositores, mas também atuava no campo da cultura, da educação… Discutia também as ideias dos nazistas sobre genética, biologia… Tem uma série de questões que vêm para mostrar o conjunto total dessa obra. Não era só o Hitler gritando, as tropas marchando nas ruas… Era muito mais que isso. Eles fazem questão de mostrar esse campo a ser combatido e debatido. Não é só trazer uma montanha de textos do Trotsky… Aliás, eu considero esta a melhor edição de textos sobre o nazismo do Trotsky, feita a sua época. Foi uma edição primorosa feita por Mário e seus camaradas, que transforma esse livro numa obra, insisto, ainda relevante 90 anos depois. E todo o processo que foi a concepção de perceber que aquele fenômeno que aparecia mundialmente e no Brasil tomava aspecto com os integralistas precisava ser combatido num campo muito mais amplo do que simplesmente só dar tiro na rua.

A propósito do 7 de Outubro, o Fúlvio Abramo sempre falava que esse episódio foi decisivo no sentido de desmoralizar os integralistas. Depois eles ainda tomaram duas ou três surras em São Paulo, no Rio, em Petrópolis. Sempre apanharam. Esse acontecimento em São Paulo, na Praça da Sé, foi importante porque depois disso o Vargas jamais cogitou usar os integralistas como força auxiliar para dar um golpe de Estado. Ele percebeu que se precisasse de alguma coisa mais efetiva, como se viu na Itália e na Alemanha, esses não serviam para nada.

As sucessivas surras que eles levaram fizeram com que fossem desconsiderados como elementos para o golpe de Estado. O que infelizmente não foi suficiente para acabar com a influência dos integralistas, pois vários deles continuaram na política e atingem o seu zênite em 1964. Todas as figuras perniciosas que circulavam no integralismo estavam golpe.

Isabel Loureiro: Eu acho que o lado fraco da análise de Trotsky é a comparação com a Revolução Russa e acho que ele tinha ilusões quanto às possibilidades revolucionárias na Alemanha. Para ele, as coisas na Alemanha não deram certo porque não havia um partido revolucionário nos moldes do partido bolchevique, que ele, assim como todos os bolcheviques, considerava o modelo a ser seguido por todos os Partidos Comunistas. Quando Trotsky se refere a Outubro de 1923 na Alemanha é apenas para criticar o KPD, não a Internacional Comunista nem a liderança russa, da qual ele fazia parte, e que impôs aos alemães essa aventura em 1923, que não passou de uma tentativa de golpe a serviço dos interesses na URSS. As críticas de Trotsky ao KPD são justas, mas parciais, por não mostrarem a responsabilidade dos russos no fracasso de 1923. Ele não tem uma visão crítica da própria atuação. Você conhece muito bem o Mario Pedrosa. Quando ele começa a se afastar dessa visão estritamente bolchevique?

Dainis Karepovs: Esse processo tem início para o Mário quando ele rompe com a Quarta Internacional. Ali ele afirmava: “Cada vez que a gente tratar da URSS precisamos discutir o caso concreto, não simplesmente usar uma fórmula. Somos críticos, mas continuamos no mesmo campo”. É um processo que começa no final dos anos 1930. Também tem a aproximação dele com a Rosa Luxemburgo. Ele começa a ter contato com suas ideias em sua primeira viagem à Alemanha no final dos anos 1920, ali deve ter ficado um germe na cabeça dele. Mas o período essencialmente militante do Mário, do final dos anos 1920 até 1940, não havia nada fora daquele universo em que ele vivia discutindo que ele ignorasse. Quando ele estava nos Estados Unidos, o fato de ele ter tomado as posições que levaram ao afastamento da Quarta Internacional já demonstra que alguma coisa estava na sua cabeça, diferente do que ele estava sempre discutindo, nas reuniões do comitê executivo da Quarta Internacional do qual ele fazia parte. Algumas coisas começam a brotar ali, mas que têm a sua primeira manifestação na caracterização da União Soviética como um Estado operário degenerado. As coisas evoluem e mais para frente toma uma decisão mais concreta quando funda a Vanguarda Socialista, em 1945. Nessa trajetória passa a tratar de questões do terceiro-mundismo, nos anos 1950, mas ressaltando que não descambaria para o nacionalismo. E nesse período também começa a aproximação mais intensa dele com as ideias da Rosa, que vão se configurar mais claramente, nos anos 1970, depois último exílio dele, onde ele está, de um lado, lambendo as feridas do golpe do Chile, pensando o que aconteceu e, de outro, pensando como se levantar e seguir andando. Essa era uma característica do Mário. O seguir andando dele foi o caminho do PT.

Angela Mendes de Almeida: Meu pai escreveu em O Homem Livre, Fernando Mendes de Almeida, você até menciona o nome dele em seu livro sobre o Mário Pedrosa. Ele não era trotskista. Naquele tempo acho que trabalhava no Diário da Noite.

Dainis Karepovs: E como ele assinava lá? Até onde eu sei, não era militante trotskista. Essa era uma coisa importante que O Homem Livre conseguiu fazer. Atrai uma franja de gente que não era militante trotskista, que estava lá porque entendia o que estava sendo discutido naquele jornal. Havia várias pessoas que eram simpatizantes e ele certamente era um deles.

Angela Mendes de Almeida: Enfim, é preciso fazer muitas outras discussões para aprofundar muitas outras questões, inclusive esses meandros do trotskismo que a Isabel colocou. Você também falou sobre a questão do entrismo, que era um problema para a militância trotskista. As questões do entrismo e de defender a União Soviética são pontos problemáticos. Era, como já falei, o caso de Natalia Sedova que no pós-guerra se opunha a considerar a União Soviética como um Estado operário, ao apoio incondicional da Quarta à União Soviética. Há um livro recente, uma espécie de pequena história da Quarta – La Revanche du Chien Enragé, de Patrick Silberstein – que menciona essa posição dela.

Espero que o lançamento do livro dê sequência a esse debate.

Entrevista originalmente publicada no portal da Fundação Perseu Abramo