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MOVIMENTO

Greve dos Roteiristas de Hollywood alerta o mundo dos perigos da Inteligência Artificial

Gibran Jordão, Membro da Coord. Nacional da Travessia Coletivo Sindical e Popular
Mike Drucker/Twitter

Caso você adore maratonar, se emociona, se apaixona e aguarda ansiosamente por novas temporadas da sua série favorita na Netflix, HBO, Disney+, Apple TV, entre outras… Saiba que nos bastidores, os criadores dessas incríveis histórias são equipes de roteiristas, que aparecem nas letrinhas miúdas dos créditos ao final do filme e quase nunca são lembrados pelo seu talento e trabalho. Esses trabalhadores do entretenimento também são responsáveis em escrever roteiros para programas de TV, novelas, publicidade, produções de cinema, TV e streaming em geral. 

Pois bem, desde o dia 02 de maio os roteiristas de Hollywood, os trabalhadores da criação de histórias da maior e mais conhecida indústria de áudio e vídeo do mundo paralisaram suas atividades para fazer piquete na porta dos grandes estúdios norte americanos. Trata-se da maior greve de roteiristas nos EUA desde 2007, que está batendo de frente com o uso da Inteligência Artificial para aumentar a superexploração do trabalho. Atenção! Não é só mais uma rotineira greve de trabalhadores, é um alerta ao mundo em relação as consequências da IA sob a lógica do capitalismo. 

O Boom bilionário da industria do streaming nos últimos 10 anos… 

Antes de qualquer coisa, para quem não está habituado com o conceito de “Streaming”, trata-se de um nome que vem do inglês e faz referencia a uma grande quantidade de dados transmitidos através de conteúdo de áudio e vídeo sem a necessidade de baixar e ocupar a memoria no seu PC ou celular para ser consumido. Para quem viveu na época da internet discada, sabe muito bem como é fácil hoje adquirir conteúdos áudio visuais com apenas alguns cliques.  As primeiras experiências foram na década de 90 com transmissões com áudio e depois em vídeo, mas ainda com qualidade muito precária. A medida que foi evoluindo as tecnologias de banda larga possibilitando uma internet com rápida transmissão de dados, garantindo excelente qualidade nos conteúdos, paralelamente foi se desenvolvendo a todo vapor um mercado de streaming. A pioneira foi a Netflix, que era uma empresa de envio de DVDs pelo correio nos EUA, se relocaliza no mercado lançando um serviço de streaming em 2010, com a sua primeira websérie de sucesso, “House of Cards” em 2013. Chegando a ser a empresa de entretenimento com maior valor de mercado do mundo em novembro de 2021 (291 bilhões de dólares), alcançando mais de 190 países e chegando a mais de 230 milhões de assinantes globalmente em 2023, segundo dados da própria empresa e da Nasdaq. 

Sim, a Netflix se tornou a maior plataforma de streaming do mundo, mas é claro que outras empresas perceberam a alta demanda por conteúdos de áudio e vídeos para o entretenimento domestico nos últimos anos e entraram com tudo acirrando a concorrência. Surge então HBO Go, Amazon Prime, Telecine Play, Apple TV, Disney+, Star+, Paramount Plus, entre outras… Até a poderosa Rede Globo de Televisão no Brasil, se localizou recentemente e lançou a Globo Play com produções originais, ocupando uma fatia importante do mercado nacional. Segundo relatório da Motion Picture Association (MPA) em 2021 já havia cerca de 1,3 bilhões de assinaturas em streaming no mundo, o que levou um faturamento que ultrapassa a marca dos 70 bilhões de dólares. 

O grande sucesso da indústria de streaming impactou e mudou muito a forma de ver filmes, series, musicas e todo tipo de entretenimento áudio visual no mundo. Consequentemente gerou também fortes mudanças na forma em como esses conteúdos são produzidos nos bastidores. A demanda crescente e a altíssima concorrência obrigou objetivamente as empresas apresentarem um diferencial de produção que busque obsessivamente a redução de custos para continuar no mercado disputando a fidelização da base de assinantes. A sustentação do crescimento dos lucros dos grandes estúdios está intimamente ligada ao aumento brutal por mais roteiros de qualidade, o que não se refletiu necessariamente em mais ganhos para os roteiristas. Já que a tecnocracia administrativa dessas empresas vem operando um processo de reestruturação produtiva permanente que é totalmente desvantajoso para quem vive de escrever roteiros para os grandes sucessos da indústria de entretenimento áudio visual norte americana. Destaque para o relatório publicado pelo sindicato dos roteiristas dos EUA ( WGA), que mostra números que sustentam o argumento da necessidade de melhor valorização de uma categoria que é o pilar de sustentação da indústria do streaming.

Qual a pauta da greve dos roteiristas de hollywood? 

A ultima greve dos roteiristas foi a 15 anos atrás, entre as principais reivindicações estava o direito de ganhos através da venda de DVDs e da reprodução e publicidade de suas obras em outras mídias, cuja a compensação para os roteiristas era injusta. A greve se iniciou em 05 de novembro de 2007 e terminou em fevereiro de 2008, paralisando programas, filmes e séries conhecidos pelo publico como “Late Show With David Letterman”, “Prison Break”, “House”, “Heroes”, “ Breaking Bad” e vários outros… A greve de mais de 11 mil roteiristas terminou com um acordo entre o sindicato de roteiristas dos Estados Unidos ( WGA) e a Alliance of Motion Picture and Television Producers( AMPTP) – Associação Patronal. 

Em 2023, mais precisamente no dia 18 de abril, 97,8% dos membros do WGA votaram um indicativo de greve, caso as negociações não evoluírem satisfatoriamente até o dia 1º de maio. Após frustradas as negociações entre o WGA e o AMPTP, mais de 11 mil roteiristas norte americanos iniciaram uma poderosa greve no dia 02 de maio. Conheça a pauta de reivindicações do WGA e a resposta da patronal.

Resumidamente, as principais reivindicações são: 

  1. Combate a precarização e melhores condições de trabalho com o fim das “salinhas de roteiristas” – Não a contratação de equipes de roteiristas sob curta temporada e salários rebaixados. 
  1. Recomposição salarial – O salario médio semanal do escritor-produtor caiu 4% na ultima década, que corrigido pela inflação, a corrosão é de 23%. Além de ganhos com os “residuais”, que é o direito dos roteiristas ganharem uma porcentagem quando a plataforma de streaming vender os direitos de uma obra para outras empresas nacionais ou estrangeiras
  1. Regulamentação da Inteligência Artificial relacionada a produção de roteiros para a indústria de áudio visual. 

Sobre o ponto 3, destacamos sua simbologia histórica pelo fato dessa greve ser provavelmente uma das primeiras, se não a primeira vez que um sindicato inclui na pauta de reivindicação de trabalhadores em todo mundo, o questionamento da utilização da Inteligência artificial como ferramenta de exploração do trabalho. Como também é um excelente exemplo das consequências dessa ferramenta para o futuro dos empregos e direitos trabalhistas em todas as áreas, e está aí o centro nervoso da nossa reflexão nesse texto. 

A pauta do WGA sobre esse tema é categórica: “Regular o uso de inteligência artificial em projetos cobertos pelo MBA: AI não pode escrever ou reescrever material literário; não pode ser usado como material de origem; e o material coberto pelo MBA não pode ser usado para treinar IA.” ( MBA: Acordo Mínimo Básico – O equivalente ao acordo coletivo de trabalho no Brasil)

A resposta da patronal foi absolutamente evasiva, se comprometendo apenas em fazer reuniões anuais com o sindicato para discutir essa tecnologia. Explicando melhor as preocupações dos roteiristas em greve, como há uma concorrência capitalista acirrada entre as grandes plataformas e estúdios de produção áudio visual, em especial com o boom do streaming. Consequentemente há uma corrida no mercado para cortar custos, o que significa substituir o trabalho dos roteiristas por textos produzidos pela IA. 

Na logica de programação de uma IA generativa, uma técnica de algoritmos é desenvolvida para aprender a produzir um material através do conhecimento e registro de outras obras já produzidas, e disponíveis nas redes. Isso significa que em curto prazo as consequências já serão trágicas para a categoria de roteiristas por ter que escrever roteiros adaptados de contos ou livros escritos por uma IA, já que o mercado paga bem menos para escritores de roteiros não originais. Como também a médio ou longo prazo, os roteiristas poderão ser quase ou totalmente substituídos nos estúdios, com o treinamento da IA através do acesso as obras já disponíveis escritas pelo talento humano individual ou coletivo. Na melhor das hipóteses, se não regulamentada a IA como quer o WGA, tudo caminha para a presença do trabalho feito por roteiristas humanos ficar como um retoque pontual ou uma elaboração parcial com equipes menores, trabalhos esporádicos, sujeitos a contratos mais frágeis e salários mais baixos… 

Ao colocar na pauta de reivindicações de sua greve uma proteção contra as consequências da IA no mundo do trabalho, os roteiristas de Hollywood estão fazendo um alerta, como também dando uma aula ao conjunto da classe trabalhadora mundial e seus sindicatos de como defender direitos e empregos no século XXI. Num momento histórico de desenvolvimento tecnológico capturado pela lógica capitalista, mesmo que prometa benefícios e qualidade para a vida humana, constatamos o contrario. O cenário que vem primando para o conjunto da classe trabalhadora seja na América Latina, nos EUA ou em qualquer lugar do mundo, é a  diminuição do valor do trabalho, informalidade e aprofundamento da desigualdade social. 

Nesse dia 14 de junho, é uma data internacional de solidariedade a greve dos roteiristas norte americanos, precisamos dar todo apoio e divulgar a importância dessa batalha no centro do capitalismo mundial. A vitória ou a derrota dessa greve vai ser muito importante para os desdobramentos da luta de classes no século XXI, assim como vai trazer ensinamentos genuínos para o movimento sindical nessa nova fase do capitalismo tecno globalizado, superconectado,  e estabelecido como sistema hegemônico mundial. 

As consequências da inteligência artificial sob a lógica do capitalismo e o futuro dos empregos…  

Não é incomum que algumas profissões fiquem obsoletas e deixem de existir, enquanto novas atividades de trabalho surgem através de inovações tecnológicas, essa é a história das sociedades, independente do sistema político e econômico estabelecido em determinado momento histórico. A revolução burguesa seguida de revoluções industriais foram eventos do sistema capitalista que trouxeram novas forças produtivas que superaram o sistema feudal. Assim como a revolução Russa no marco de um sistema alternativo ao capitalismo, também empreendeu uma reestruturação política e social, que levou um país feudal se desenvolver e produzir tecnologia avançada para levar o homem ao espaço num espaço curto de tempo.

Tais mudanças estruturais muitas vezes nascem num processo de crises e conflitos, são as “dores do parto”. Mas é preciso analisar e se preparar para os vendavais das transformações sociais no mundo do trabalho, bem como aferir o quanto será ou não vantajoso para a maioria da população que não tem o controle dos meios de produção. Num mundo demarcado pela lógica capitalista, aguçar a desconfiança dos trabalhadores e preparar o movimento sindical para os futuros embates é um tarefa obrigatória. 

O relatório com o título “O futuro dos empregos”, elaborado e publicado pelo Foram Econômico Mundial em maio de 2023, tem números preocupantes e que devem chamar a atenção de todo movimento sindical, com uma projeção de curto prazo, sobre o futuro do trabalho no mundo nos próximos cinco anos. Segundo este relatório, a Inteligência Artificial e a digitalização serão o motor para a criação de 69 milhões de postos de trabalho, até 2027. No entanto, no mesmo período serão eliminados 83 milhões de empregos. Trata-se de uma perda líquida de 2% do emprego atual, algo aproximado a 14 milhões de postos de trabalho que vão desaparecer nos próximos cinco anos. 

As perspectivas de criação e destruição de empregos segundo esse relatório, como também reforçados pelo crescimento do trabalho precarizado e informal tanto no Brasil como no mundo, estão definindo uma macrotendência que parece gerar uma dinâmica acelerada de produção de déficit de empregos com algum grau de qualidade em relação a proteção e seguridade social na legislação dos países. O sistema capitalista desenvolve tecnologias a serviço de um diferencial de produção, no qual a regra obrigatória é diminuir o valor do trabalho e artifícios correlatos, para diminuir os custos de produção como garantia de uma inserção soberana na disputa por mercados e/ou o atendimento dos interesses do sistema financeiro. 

A novidade que trás o advento da inteligência artificial é que esse diferencial está ultrapassando com muita rapidez a ideia de que maquinas e ferramentas digitais poderiam substituir o trabalho mais simples e mecanizado. Já há uma série de softwares, programas, algoritmos programados na logica da IA generativa, capazes de realizar tarefas e acumular conhecimento, que estão substituindo com precisão seres humanos em relação ao trabalho criativo e cognitivo. Isso significa que muitos empregos que necessitam inclusive de formação em ensino superior já começam a ficar ameaçados de existir ou de serem executados parcialmente por profissionais humanos, o que pode afetar de alguma forma a sua própria produtividade e remuneração. 

Estamos falando de profissões mais simples que já começam a desaparecer como caixa de bancos, cobradores de ônibus, frentistas de posto, caixas de supermercado, analista financeiro, digitador, corretor de seguros, assistentes administrativos, atendimento ao publico em órgãos estatais… Como também profissões mais especializadas que já estão com suas atividades sendo combinadas parcialmente com tecnologias diminuindo a necessidade de grandes equipes de profissionais em determinado local de trabalho como clinicas de diagnóstico, equipes de cirurgia, cursos online com aulas gravadas por avatares, analises de processos para criação de petições, contratos e peças em trabalhos advocatícios. Até mesmo profissões que passaram nos últimos anos por grandes transformações tecnológicas como motoristas de aplicativo, pilotos comerciais e soldados, já começam a ficar ameaçados pela possibilidade do funcionamento dos meios de transporte autônomos que está em franco desenvolvimento. 

Não é uma tarefa simples fazer previsões sobre a dinâmica de criação e destruição de empregos, pode ser que as projeções apresentadas pelo relatório do Fórum de Davos contidas nesse texto possa brigar com a realidade e se apresentar melhor ou pior daqui cinco anos. Mas não podemos desprezar o alerta da luta de classes concreta, que estamos vendo hoje na pauta de reivindicações da greve dos roteiristas da indústria de entretenimento e de viés ideológico mais conhecida do mundo.

Saiba mais sobre o Dia de Internacional de Solidariedade aos Roteiristas.