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MUNDO

G7: de instituto de governança global a bloco unilateral hegemonizado pelos EUA

Henrique Canary, da redação

Ocorreu no último final de semana mais uma cúpula do G7, grupo que inclui algumas (mas não todas) das maiores economias do mundo. Como já estabelecido pela tradição, o encontro foi organizado e conduzido pelo país que exerce a presidência rotativa do bloco, no caso, o Japão. Interessante notar que a cúpula foi realizada na cidade de Hiroshima, que sofreu um ataque nuclear por parte dos Estados Unidos em 1945, depois que o Japão já se encontrava derrotado na Segunda Guerra Mundial. O fato do encontro ter ocorrido nesta cidade, muito mais do que um sinal de paz e perdão, expressa muito bem o quanto o G7 se tornou, ao longo dos últimos anos, um organismo totalmente subordinado aos interesses dos Estados Unidos, a tal ponto de realizarem uma conferência em uma paisagem salpicada por ruínas do ataque nuclear estadounidense. É como entrar em uma reunião já de joelhos. Realmente, o primeiro-ministro japonês está de parabéns. Não poderia ter pensado num gesto mais humilhante para seu próprio país do que esse.

O fato é que a reunião ocorreu e aprovou as resoluções previstas. Entre elas, a confirmação do apoio incondicional à Ucrânia na guerra contra a Rússia e mais um “alerta” ao mundo sobre a delicada situação no Mar do Sul da China, em particular no Estreito de Taiwan. A China logo reagiu e convocou o embaixador japonês no país para dar explicações, reclamando interferência em seus assuntos internos. Representantes de Pequim afirmaram que Taiwan é um assunto exclusivamente chinês e que cabe somente aos chineses a sua resolução. De fato, a China, apesar de ausente, era a preocupação principal dos participantes do evento. Em um dos discursos, o primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, referiu-se à China como “o maior desafio dos nossos tempos à segurança global e prosperidade”. De um modo geral, o encontro em Hiroshima deixou ainda mais claras as mudanças no caráter do G7 e sua transformação, de um instituto respeitável de governança global nos anos 1990 e 2000, num bloco unilateral hegemonizado pelos Estados Unidos e voltado para a disputa do espaço mundial com a China e seus aliados. Detalhemos um pouco este problema.

O G7 surgiu em 1975 como uma iniciativa informal levada a cabo pelo presidente francês Valéry Giscard d’Estaing para discutir os problemas mais importantes da economia e da política mundial. A primeira reunião do grupo incluiu Alemanha, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido, mas não o Canadá e por isso passou à história como encontro do “G6”. Mas já no ano seguinte o Canadá foi incorporado oficialmente e o grupo passou a ter a configuração que apresenta hoje.

Ao longo dos anos 1980 e sobretudo nos anos 1990, o G7 foi se consolidando como o principal espaço de discussão global do imperialismo, já que se tratava da expressão concentrada do capital transnacional e dos principais países do sistema mundial de Estados, aqueles que realmente mandam. A informalidade do grupo, ou seja, o fato de não ser uma instituição com estatuto ou normas fixas, fornecia à iniciativa a adaptabilidade e dinâmica necessárias para enfrentar os novos desafios que surgiam. Mas a grande “vantagem”, claro, era poder tomar decisões e definir diretrizes sem a interferência, às vezes inconveniente, dos países pobres, em desenvolvimento, coloniais ou semicoloniais, como ocorria na ONU. Afinal, quem precisa de um Che Guevara e de um Yasser Arafat fazendo acusações contra o imperialismo desde a tribuna ou de um Nikita Khruschov batendo com o sapato na mesa?

Em 1997, a Rússia foi convidada a fazer parte do grupo, que mudou sua configuração para G8. O convite à Rússia foi uma espécie de prêmio de consolação pela tragédia promovida no país pelas reformas neoliberais (privatizações e desregulamentação) dos anos 1990. Além disso, ninguém queria deixar de fora dos debates (na verdade, de fora do controle imperialista) o maior arsenal nuclear do mundo.

Essa foi, pode-se dizer, a época de ouro do G7 ou G8. As pautas dos encontros costumavam incluir problemas relativos à pobreza mundial, saúde, desafios globais, educação, transportes, finanças e outros. Tinha-se a impressão de que realmente estava surgindo uma espécie de proto-governo mundial, com a legitimidade reconhecida por todos ou quase todos. A euforia da globalização e das novas tecnologias, aliada ao avanço da restauração capitalista nos países da antiga URSS, aumentava ainda mais a importância das reuniões do G7.

Mas a história não parou aí. Desde pelo menos o início dos anos 2000, o crescimento chinês começou a impactar de maneira mais categórica as relações econômicas, políticas, diplomáticas e militares mundiais. A China se tornou o principal parceiro comercial de uma série de países importantes, tanto do primeiro mundo, quanto do assim chamado “sul global”. Por tabela, a economia chinesa acabou impulsionando economias antes consideradas secundárias, como Brasil, Rússia, China, Irã, Turquia, África do Sul, Índia e Paquistão. Fruto desse incremento no valor produzido por esses países, novos agrupamentos foram surgindo no cenário mundial: os BRICS, o G20, o Mercosul, a USMCA, que engloba Estados Unidos, México e Canadá, a APEC, que significa Asia-Pacific Economic Cooperation ou Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico, a ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático), a Comunidade Andina de Nações (Bolívia, Colômbia, Equador e Peru), a SADC (Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral), a UEE (União Econômica Eurasiática), além do fortalecimento das já antigas OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), CEI (Comunidade de Estados Independentes, basicamente formada pelos países da antiga União Soviética menos os países bálticos), os assim chamados Tigres Asiáticos e a União Europeia. As pessoas perceberam que o Sol podia brilhar para todos e foram buscar seu lugar na areia.

Paralelo a isso ou como consequência desse fato, os próprios países do G7 foram perdendo importância relativa na produção mundial. Para se ter uma ideia, em 2000 o PIB combinado de todos os países do G7 correspondia a US$ 22 trilhões, ou 65% do PIB global, que era então de cerca de US$ 33 trilhões. Dez anos depois, em 2010, o valor nominal do PIB do G7 passou para US$ 33 trilhões, mas isso já representava não mais do que 50% do PIB mundial. Por fim, em 2022, o PIB do G7 foi estimado em US$ 43 trilhões, o que equivale a pouco mais de 43% da riqueza produzida mundialmente, que hoje está em cerca de US$ 100 trilhões anuais. Em comparação, somente os BRICS já produzem 25% da riqueza mundial, ou US$ 25 trilhões. Isso sem contar o fato de que a China se aproxima rapidamente de se tornar a maior economia do mundo, fato que pode ocorrer ainda nesta década.

Assim, os Estados Unidos, liderança incontestável do G7 ou G8, se viram em uma situação parecida a de um náufrago que vê pipocar buracos em seu bote e tenta desesperadamente tapar cada um deles. Em 2014, a Rússia foi excluída do G8 devido à reanexação da Crimeia e o bloco passou a adotar cada vez mais uma política que é a simples repetição das iniciativas norte-americana no cenário internacional. Naturalmente, continuam sendo feitos acenos aos países do sul global, com convites para participação nos encontros, mas nada que mude a natureza puramente estadounidense do emblocamento.

Pelo menos desde 2014, o G7 não trata mais de problemas relacionados à pobreza, emergência climática, saúde internacional nem nada que interesse ao mundo como um todo. A única coisa que se trata nas reuniões é como se coontrapor à crescente força chinesa e sua influência sobre países que antes eram considerados o quintal dos fundos dos Estados Unidos.

O G7 deixou de ser um instituto de governança global e se tornou a cabeça de lança do bloco político-econômico-militar hegemonizado pelos Estados Unidos na luta pela liderança global. Já não se veem diferenças entre os posicionamentos do G7 e da OTAN ou G7 e Estados Unidos. A União Europeia, convidada permanente aos encontros, muito pouco ou quase nada pode mudar nas resoluções do grupo. É o que foi visto neste final de semana em torno ao problema dos aviões de guerra para a Ucrânia. Biden mandou e os países europeus entregarão. Ponto final. A subordinação europeia chega ao absurdo de criminosos explodirem um gasoduto em pleno território europeu (Nord Stream) e ninguém levanta um dedo para investigar o ocorrido porque todos temem (mas poucos falam) que as investigações levem a Washington. Enquanto isso, os Estados Unidos incrementam suas vendas de gás liquefeito para o continente europeu a preços de 20% a 40% maiores do que o gás natural russo que fluía pelo Nord Stream. É assim que os Estados Unidos “salvam” a Europa da dependência da Rússia.

Não cabe aos socialistas a torcida por um bloco imperialista em luta contra outro bloco também imperialista. A ordem mundial que defendemos não é unipolar nem multipolar. É uma ordem radicalmente democrática, marcada pela autodeterminação dos povos, a cooperação entre nações e a solidariedade proletária, ou seja, o socialismo. Mas não deixa de ser irônico notar como as ilusões em torno de uma suposta paz mundial e estabilização da hegemonia norte-americana típicas dos anos 1990 viraram pó diante das pressões de um imperialismo ascendente. Como dito em outros artigos neste site, a decadência norte-americana é lenta. Estados Unidos caem de um patamar muito alto, enquanto China se eleva a partir de um piso muito baixo. Mas as placas tectônicas estão se movendo.

O resultado é que o mapa do mundo está sendo redesenhado: novas fronteiras, rotas comerciais, canais, portos, alianças, blocos comerciais. A guerra na Ucrânia já mudou o cenário e os próximos anos serão de aceleração ainda maior da transição. Certamente, o mundo da segunda metade do século 21 será um lugar muito diferente para se viver. Se se será um mundo melhor ou pior, não sabemos. Até onde o imperialismo norte-americano está disposto a ir na luta pela sua autopreservação? Nesse sentido, Hiroshima é e sempre será um alerta, um monumento à irracionalidade e à barbárie imperialistas. Pena que os participantes da última conferência do G7 não o vejam ou não queiram ver.

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