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BRASIL

Retrocessos no parecer do Relator do Novo Teto de Gastos em 10 pontos: menos exceções, mais punições e a possibilidade de criminalização do Governo.

por David Deccache
Lula Marques/ Agência Brasil

1. Fragilização da democracia

Pela versão original do PLP 93, todos os parâmetros seriam definidos pelo governo eleito no início da gestão para os quatro anos de mandato, portanto respeitando o projeto eleito nas urnas. Na nova versão, os parâmetros que definem os limites para os gastos ficam fixos, com exceção das metas de primário, que serão definidas anualmente.

2. Mais punições para os trabalhadores

O relator ampliou as já pesadas punições para as situações de descumprimento das metas de resultado primário mesmo sabendo que em situação de crises econômicas, inclusive as internacionais sem relação com as medidas econômicas do governo brasileiro, há tendência de frustração das receitas e necessidade de ampliação de gastos, o que dificulta demasiadamente o cumprimento das metas.

3. Ataque contra os serviços e servidores públicos

O relator ainda prevê que em caso de descumprimento da meta de resultado primário por um ano haverá proibição de criação de cargos, de reajuste de despesas obrigatórias, criação ou aumento de auxílios e concessão ou ampliação de benefício tributário. Se houver descumprimento por dois anos consecutivos, além de todas as medidas anteriores, haverá a proibição do reajuste de salário de servidores (inclusive a reposição inflacionária), admissão de pessoal e realização de concurso público.

É crucial impedirmos as vedações e punições impostas aos serviços e servidores públicos e nos gatilhos do Novo Arcabouço Fiscal, especialmente em relação a reajustes salariais e realização de concursos públicos. É essencial considerar o impacto dessas medidas na qualidade dos serviços oferecidos à população. As vedações e punições podem criar uma situação prejudicial tanto para os servidores quanto para os cidadãos que dependem dos serviços públicos.

Isso resulta em serviços públicos sobrecarregados e de qualidade inferior, que não atendem adequadamente às necessidades dos cidadãos.

4. Possibilidade da narrativa de criminalização do governo Lula

Além disso, o novo texto configura infração à LRF o descumprimento do limite inferior da meta de resultado primário se o governo não adotar, no âmbito de sua competência, as medidas de limitação de empenho e pagamento e as punições previstas. Trata-se de grave risco do crescimento da narrativa de crime de responsabilidade em ocasião de descumprimento das novas e rígidas metas fiscais, bem como das punições obrigatórias.

5. Os contingenciamentos bimestrais obrigatórios

Os contingenciamentos bimestrais por frustração de receitas tendem a ocorrer em momentos de desaceleração e recessão, justamente quando há a urgência do oposto: o aumento dos gastos públicos. O governo fica então obrigado a atuar de forma a piorar a condição econômica para não ser punido, reduzindo suas despesas em função da queda das receitas provocadas pela desaceleração econômica.

Além disso, como o piso de investimentos públicos é meramente simbólico no PLP – não sendo obrigada a sua execução concreta – essa será essa a variável de ajuste fiscal, podendo levar o governo a voltar aos baixos patamares de investimentos dos últimos anos. Em 2015 foi isso que ajudou a afundar o governo Dilma na economia e potencializou os efeitos criminosos e golpistas da lava-jato.

6. Bolsa Família e salário mínimo continuam dentro dos limites fiscais criados

As despesas com a política de aumento do salário mínimo e os gastos com o programa Bolsa Família ficarão dentro dos limites estabelecidos (entretanto, de fora dos contingenciamentos). Não havia sido esse o acordo anunciado na imprensa antes da apresentação do texto do relator.

7. Reduziram-se as exceções aos limites fiscais em relação ao teto de gastos atual e à proposta do Haddad. Passam a fazer parte dos limites globais Fundeb e piso da enfermagem

a) As complementações do Fundeb.

b) As despesas decorrentes do piso da enfermagem.

c) As despesas com aumento de capital de todas as empresas estatais (Correios, Caixa, BNDES e afins). Obs.: No teto atual todas estatais eram exceções e no texto do Haddad ficavam limitadas no teto só empresas estatais financeiras.

d) As despesas relativas à cobrança pela gestão de recursos hídricos da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico.

Com menos exceções (destaque para o Fundeb e enfermagem), o aumento da parcela das despesas que crescem mais que os limites globais estabelecidos irão acelerar a necessidade de uma PEC que revogue os atuais pisos da saúde e da educação, conforme já anunciado pelo Secretário do Tesouro.

O novo teto de gastos – dados os parâmetros propostos – impõe, matematicamente, a necessidade de uma PEC com a alteração dos atuais pisos da saúde e educação, visando reduzir o crescimento dessas despesas para próximo da velocidade máxima do teto. Isso porque o teto cresce na velocidade de 70% da receita (ainda limitado a 2,5% de ganho real) e saúde e educação crescem com base em 100% da receita. A saúde e educação passarão a ocupar crescentemente o espaço das áreas que não têm piso.

Cogita-se na equipe econômica a adoção de uma PEC com regra de correção da saúde e educação pelo PIB per capita, que se aplicada desde 1998 teria feito o Brasil perder quase 40% de todos os gastos que realizou (o PIB per capita foi uma possibilidade de indexador divulgada pelo secretário do Tesouro).

8. Macroeconomia reacionária

As metas de primário previstas no PLP 93 serão definidas visando a “estabilização da relação entre a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) e o Produto Interno Bruto (PIB).”

Ignora-se, porém, que uma das ferramentas mais potentes para garantir a estabilidade da relação entre a dívida e o PIB é a expansão consistente e planejada de gastos públicos que implique crescimento econômico e, portanto, das receitas. Sendo tudo isso potencializado pela desejável e necessária moderação das taxas de juros definidas pelo Banco Central.

Caso a taxa de crescimento do PIB via ampliação de gastos seja maior que a taxa de juros que incide sobre a dívida pública, a estabilidade temporal da relação dívida/PIB fica garantida matematicamente independentemente dos resultados primários e mesmo diante da ocorrência de déficits primários.

O PLP 93, ao invés de correção dos gastos apenas pela inflação conforme o antigo teto de gastos, permite que o governo amplie seus gastos acima da inflação entre 0,6% e 2,5% anualmente. Um avanço muito tímido e totalmente insuficiente.

Vale destacar que esse crescimento é inadequado para os objetivos sociais e econômicos do novo governo. A título de comparação, o governo Bolsonaro, em 2019 – portanto antes da pandemia e com o teto de gastos do Temer em vigor – ampliou os gastos públicos em uma taxa superior a máxima permitida no novo teto: 2,72%.

O segundo governo Lula, para sair da crise internacional, cresceu os gastos acima da inflação em 9,59% e 16,30% nos anos de 2009 e 2010. Agora temos economistas e políticos dizendo que 0,6% é um mecanismo anticíclico que garantirá ao terceiro governo Lula um piso para sair de eventual turbulência.

Para se ter uma ideia, se as regras propostas no Novo Arcabouço Fiscal estivessem em vigor desde 2003, teríamos cerca de R$ 8,8 tri a menos em serviços públicos oferecidos à população no período!

No Plano de Recuperação e Transformação do Brasil, concebido pelo PT antes da eleição de 2022, menciona-se que as regras fiscais austericidas constantes na Lei de Responsabilidade Fiscal, no teto de gastos e na regra de ouro devem ser revistas e revogadas. Também menciona, explicitamente, que mesmo o aumento temporário da dívida pública não é impeditivo para um país como o Brasil, ficando garantida a sua estabilidade no médio prazo com o crescimento econômico, tributação dos mais ricos e redução das taxas de juros.

9. A falácia da austeridade expansionista

Além da falta de robustez teórica, os resultados práticos das políticas de austeridade fiscal no Brasil nos últimos anos saltam aos olhos: elevação do desemprego; ampliação das desigualdades interseccionais e piora dos indicadores fiscais.

Tais resultados possuem uma explicação simples: em meio a uma crise que conjuga desemprego com queda dos salários, há uma forte queda da demanda das famílias por bens e serviços, logo as empresas acumulam estoques, reduzem investimentos e ampliam as demissões. Se o Estado também cortar os gastos que seriam, por definição, direcionados para as famílias e empresas, a economia entra em espiral recessiva. Com todos os agentes cortando gastos ao mesmo tempo, inclusive o Estado, não há caminho possível para o crescimento. Por fim, com a queda na renda das empresas e famílias, a arrecadação do Estado também despenca, deteriorando ainda mais o resultado fiscal.

10. Dito isso, a questão que nos resta é: se a austeridade provou-se um fracasso histórico, teórico e empírico, por qual motivo o capital, através dos seus aparelhos ideológicos, insiste tanto nessa agenda?

Sinteticamente, a austeridade fiscal possui, dentre outros, dois objetivos centrais. O primeiro e de curto prazo é o de elevar o desemprego, alterando a correlação de forças entre capital e trabalho. Com essa alteração, os trabalhadores se tornam menos resistentes às reduções salariais e piores condições laborais, ao passo que os empresários, que só enxergam os salários como custo, consideram esse rebaixamento a solução para a retomada da lucratividade em momentos de crise. Foi exatamente o que ocorreu no Brasil a partir de 2015: elevação do desemprego, queda de salários e desorganização da classe trabalhadora frente aos retrocessos de direitos.

A segunda é destruir a capacidade do Estado de manter o seu funcionamento através da imposição de restrições orçamentárias, o que implica na redução dos serviços públicos. Com isso, abre-se o caminho para mercantilizar e privatizar diferentes áreas antes ocupadas pelo setor público.