Os fins não justificam os meios

A relação entre os fins e os meios está presente, também, no debate sobre a regulação das mídias digitais e o projeto de lei de regulação de Fake News

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

O fim justifica os meios? A ordem dos jesuítas, fundada na primeira me­tade do século dezesseis para combater o protestantis­mo, nunca ensinou que qualquer meio, mesmo o mais delituoso, de acordo com a moral católica, seja admissível, contanto que leve ao “fim”, isto é, ao triunfo do catolicismo. Essa doutrina contraditória, psicologicamente inconcebível, foi malignamente atribuída aos jesuítas pelos seus adversários protestantes – e às vezes católicos – que, por sua vez, pouco se preocupavam com escrúpulos na escolha dos meios para atingir seus próprios “fins”.
Leon Trotsky [1]

Ameaças de uso de armas atômicas táticas voltaram. Putin repetiu que não hesitaria, se as considerasse necessárias para defender a Rússia. Os EUA anunciaram a disposição de localizar submarinos com armas atômicas, em acordo com o Japão, diante dos novos mísseis da Coreia do Norte. Os métodos da guerra total são a barbárie. Transformar a população civil e desarmada em alvo militar é uma covardia monstruosa.

Mas a relação entre os fins e os meios está presente, também, no debate sobre a regulação das mídias digitais e o projeto de lei de regulação de Fake News. O centro da polêmica é que na luta política não “vale tudo”. A corrente bolsonarista abusa do direito de liberdade de expressão, impunemente, há muitos anos. Mente, descadaramente. Nas últimas semanas, depois da divulgação dos vídeos sobre a invasão do Palácio do Planalto, orquestrou uma campanha de inversão completa do que aconteceu para inocentar a responsabilidade da extrema-direita no levante golpista. Os fascistas manipulam, monstruosamente, a realidade inventando versões alucinadas do que aconteceu.

O que defende a esquerda? Os inimigos da causa socialista que insistem em afirmar que os marxistas defendem que os fins justificam os meios. Os marxistas foram atacados, frequentemente, como calculistas frios, moralmente interesseiros e, eticamente, cínicos. A luta política dos marxistas seria uma manipulação do desespero dos pobres. Em poucas palavras: ausência de escrúpulos, nomadismo moral e disposição para tudo. O único fim dos marxistas seria destruir seus inimigos, e impor a sua ditadura. A qualquer custo. A esquerda não teria limites na luta pelo poder.

Estas acusações são, evidentemente, absurdas. São política e, ideologicamente, falsas, portanto, desonestas. Mas elas exercem influência, e encontram eco. A visão ética do marxismo não merece ser julgada, rigorosamente, como consequencialista. Consequencialistas, strictu sensu, seriam aqueles que reconhecem como padrão de juízo ético unicamente os resultados, enfim, os efeitos das ações humanas. Utilitaristas como Jeremy Bentham ou Stuart Mill, com mais razão, podem ser classificados como consequencialistas. Trotsky reconheceu a superioridade dos consequencialistas sobre os defensores de uma deontologia normativa de imperativos categóricos kantiana, ou valores morais universais:

“Assim, um tiro de arma de fogo é, em si, um fato sem importância: disparado sobre um cão raivoso que tenta morder uma criança é um ato louvável; disparado para matar ou praticar violência é um crime. Os teólogos da Companhia de Jesus não queriam dizer nada mais do que estes lu­gares comuns.”[2]

As relações entre os fins e os meios, ou entre estratégia e tática na luta pelo poder de Estado pelos trabalhadores coloca de forma inescapável um debate sobre a dimensão moral do projeto socialista. Ela remete à noção de estratégia política e supõe uma teoria da história. O conceito de estratégia não esteve presente na revolução burguesa. O que se explica por uma pluralidade de razões (a natureza de longa duração da transição, os amálgamas das relações capitalistas de produção com relações pré-capitalistas pelo menos desde o século XI, muito antes da conquista do poder político, a possibilidade de fusões e pactos entre as diferentes classes proprietárias, o atraso secular das revoluções políticas, a imaturidade subjetiva dos sujeitos sociais, etc.), e entre elas, o próprio estágio embrionário do pensamento histórico e das artes militares. Os elementos de consciência na transição burguesa, vitais para o triunfo da revolução política antifeudal eram embrionários.

Mas existem razões mais importantes, historicamente, para explicar as circunstâncias que levaram o marxismo a importar, incorporar e desenvolver o vocabulário da ciência militar. Entre eles, se destaca o de estratégia. O conceito de estratégia é chave porque ele delimita a existência dos fins e os hierarquiza entre si, e nas relações com os meios. Esta delimitação envolve uma escolha.

O programa histórico marxista defende a luta por uma sociedade sem classes, pelo fim, ou progressiva dissolução do Estado, entendido como instituição de domínio de poder político separado da sociedade. Ou seja, a famosa passagem de Marx em que ele se refere à transição de uma administração de pessoas para uma administração das coisas, a transição da esfera da necessidade para a esfera da liberdade.

Entretanto, o programa de ação político se articula em torno da luta pela conquista do poder: tarefas distintas e tempos diferentes. Ocorre que fins e meios são conceitos relativos, já que o que eram meios podem se transformar em fins e vice-versa. Uma importante controvérsia ética se desenvolveu, e permanece atualíssima, sobre a articulação das finalidades e os meios, e o balizamento do contexto histórico- social do que era progressivo e regressivo.

Esta discussão ética que injustiçou no passado remoto os jesuítas e, no recente, os bolcheviques encontrou seus ecos no movimento socialista, como não poderia deixar de ser. Estabeleceram-se em relação ao tema, grosso modo, três posições fundamentais, embora com muitas sensibilidades e nuances intermediárias:

(a) A posição de que os meios são tudo (e os fins, pessoais ou sociais, não oferecem nenhuma justificação) à maneira de Bernstein, que reivindicava Kant contra Hegel. Ela se apoia na premissa empirista de que o caminho se constrói caminhando, e os fins serão sempre redefinidos pelos meios. A tendência desta posição foi a absolutização de critérios morais imperativos e universais. No limite, defende-se a subordinação da política à moral. Em uma versão laicizada, sob a forma de valores ahistóricos da “natureza humana” dimensiona-se a política como uma gestão civilizada dos conflitos. Mas ela remete, em última análise, ao princípio teológico de que a moral independe da história, portanto, da sociedade e dos conflitos de classe no seu interior. Tanto sob as pressões da vida cotidiana, quanto na arena das lutas de classes, quando esta se exacerba, os valores morais universais passam a ser um princípio sagrado irrevogável, porém, inaplicável;

(b) A posição que defende que os fins justificam os meios, mas se esquece que também os fins precisam ser justificados. Comete assim, em nome do realismo político, o erro simétrico dos moralistas. Mas divide com eles o critério de que meios e fins independem uns dos outros. São ambas vítimas, afinal, do cinismo, quando o que pretendiam era escapar da hipocrisia;

(c) A posição que defende que os meios e os fins têm entre si uma relação indivisível. Em suma, em uma sociedade de classes, o combate político é também um combate moral. Portanto, só seriam admissíveis meios que estejam ao serviço da supressão do poder de uma minoria sobre a maioria. Os meios que inflamam a indignação dos explorados, que exaltam a sua união e confiança em si mesmos e na justeza de suas lutas. Do que se conclui que nem todos os meios são permissíveis ou válidos, e que devem ser condenados como indignos todos os procedimentos que empurrem um setor dos trabalhadores contra outros, que legitimam as opressões de alguns sobre outros, ou que estimulem o seguidismo cego dos chefes e, acima de tudo, o repugnante servilismo diante das autoridades, e o correspondente desprezo pelos trabalhadores e suas opiniões. Mas, também, o reconhecimento de que não é possível, politicamente, elaborar a priori um catecismo que defina como mandamentos invioláveis o que é consentido, e o que é proibido.

[1] TROTSKY, Leon. Moral e Revolução: a nossa moral e a deles. Trad. Otaviano de Fiore. 2ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra. p. 9/11.
[2] Ibidem, p.9.4

Publicado originalmente no portal Fórum