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A felicidade negra é uma felicidade guerreira – A Resistência e a luta antirracista

Desde sua fundação, a Resistência-PSOL compreende que a luta pela transformação socialista no Brasil e no mundo é indissociável da luta antirracista

Jean Montezuma, de Porto Alegre (RS)
Arquivo Resistência-PSOL

Nem tudo que se enfrenta pode ser modificado,

mas nada pode ser modificado até que seja enfrentado.” (James Baldwin)

Terça-feira, 26 de maio de 2020, milhares de pessoas ocupam as ruas de dezenas de cidades nos Estados Unidos. Um dia antes, na cidade de Mineapolis, uma brutal abordagem policial terminaria na morte de George Floyd após quase 9 minutos sob tortura. Suas últimas palavras: “Eu não consigo respirar”.

Os protestos que se iniciaram no dia 26 de maio se estenderam por semanas e logo ultrapassaram as fronteiras dos EUA, chegando à Europa e outras partes do mundo. “Sem justiça, sem paz!” era um dos gritos mais entoados pelo Levante negro Antirracista.

No final daquele mês de maio, aqui no Brasil, os primeiros atos de rua após o começo da pandemia, foram organizados sob a bandeira “vidas negras importam”. Começando pelo Rio de Janeiro, para pressionar pela suspensão das operações policiais nas comunidades durante a pandemia. Semanas antes, o menino João Pedro, de apenas 14 anos, foi morto dentro de casa em São Gonçalo, numa dessas operações.

De fome, por bala ou de Covid-19, a certeza de que o sistema está disposto a nos eliminar é sufocante. Mas, ao invés do medo, foi acima de tudo a indignação que arrebatou corações e mentes de milhões ao redor do mundo. Eram dias de primeira onda de pandemia, ir às ruas, portanto, foi um ato de coragem em defesa da vida.

Essa coragem enfrentou a repressão policial, pôs abaixo as estátuas de colonizadores e genocidas nas cidades Européias, forçou governos a rediscutir as suas forças policiais, e aqui no Brasil contribuiu decisivamente para retomar as ruas rompendo a até então exclusividade de que gozava a horda fascista verde-amarela com a sua agenda pró-ditadura.

Nos EUA, fez a popularidade de Trump despencar. Até então favorito para reeleição, Trump viu o jogo virar e hoje é razoável dizer que não haveria vitória de Biden sem os efeitos políticos do levante multitudinário antirracista que ganhou as ruas estadunidenses. Dois anos mais tarde seria a vez do Brasil, onde podemos dizer, amparados pelas pesquisas, que o voto das negras e negros foi um fator importante para a vitória eleitoral de Lula, conquistada com muito suor, por uma margem bem apertada.

No fim do capitalismo, desejoso de sobreviver, há Hitler. No fim do humanismo formal e da renúncia filosófica, há Hitler.” (Aimé Cesaire)

Vivemos um tempo de múltiplas crises. Crise econômica, política, social, humanitária, ambiental; é como se o capitalismo conduzisse a humanidade como um navio à deriva sob o risco do naufrágio iminente. Ao invés de corrigir radicalmente a rota, os governos e os Estados preferem abraçar o desastre e salvaguardar os “botes” para um punhado da elite. Traduzindo: o capitalismo do século XXI abriu mão de administrar a reprodução da vida, o seu negócio agora é a produção da morte.

E essa tecnologia não é nova, ela foi desenvolvida pelo colonialismo, aprimorada através da História, estruturalmente indissociável do próprio processo de formação do capitalismo até o seu estágio superior, o imperialismo. Essa tecnologia de poder chama-se racismo. E em nossos dias atuais, de crises cada vez mais longas e crônicas, de ultra-neoliberalismo voraz, o racismo mobiliza aquilo que os intelectuais contemporâneos chamam de necropoder ou necropolítica. É a normalização, e expansão para cada vez mais regiões, de um Estado de exceção permanente, baseado na suspensão de direitos e a submissão de povos e territórios racializados a um regime policial.

Como nos diz o filósofo camaronês Achile Mbembe, o neoliberalismo aponta como perspectiva de presente e futuro a racialização de todos os povos considerados não brancos do mundo e a imposição de uma desumanização à imagem e semelhança daquilo que o colonialismo fez com os negros e negras de África e da diáspora. Em resposta temos o que chamou de Devir negro do mundo: ” No instante em que o capitalismo quer reduzir-nos a coisa e mercadoria, o negro tornou-se símbolo do oposto: desejo consciente de vida, força engajada na criação” (Mbembe)

Nós da Resistência, em sintonia e, acima de tudo de olhos e ouvidos atentos para aprender com as perguntas do nosso tempo, acreditamos que a resposta revolucionária ao atual estado das coisas passa por um rearme programático onde o elemento do racismo seja chave explicativa para compreensão das profundas desigualdades entre os povos e nações.

Ou seja, que não se pode responder ao problema da emergência climática, sem elaborar sobre a justiça climática e compreender quais povos são os injustiçados pela geopolítica da crise ambiental. Ou que não se pode responder radicalmente ao arbítrio de um Estado cada vez mais policial, sem diagnosticar as raízes coloniais dessa máquina mortífera de encarceramento em massa, genocídio físico e cultural. Apenas para ficar em dois aspectos, de muitos outros que devem constituir um programa de superação radical das desigualdades que, incontornavelmente, deve passar pela emancipação humana dos grilhões do racismo e da exploração.

O fascismo, por sua vez, que ressurgiu como fenômeno político do nosso tempo, também não deixa de ser uma resposta para as múltiplas crises de nossa época . Uma resposta violenta, desesperada e ultra reacionária. No projeto de poder dos fascistas não cabe a democracia, nem mesmo essa democracia liberal e combalida que conhecemos. E no caminho até chegar ao centro,

direcionam sua pulsão de morte primordialmente para a periferia. É lá que estão “os outros”, os negros ou “quase negros de tão pobres”.

É por isso que a bandeira Antifascista, seja no Brasil, nos EUA, na Europa, ou no enclave sionista de Israel no Oriente médio; para ser uma força motriz do necessário acerto de contas com o fascismo, precisa antes de tudo, de um conteúdo antirracista. Sem isso, a própria defesa da democracia se esvazia de sentido imediato e histórico.

Se quiser ir rápido, vá sozinho .Se quiser ir longe, vá acompanhado.” (Provérbio africano)

Felizmente uma nova geração se levanta. A reorganização do protesto negro está nas ruas e nas redes. Está espraiada em coletivos, associações e movimentos. Ela forja lideranças que têm os pés no barro ou nas vielas das periferias, mas também as mãos nos smartphones conectados às redes sociais, engajando milhões de seguidores, influenciando o debate público, até mesmo popularizando conceitos como “racismo estrutural” antes acessados apenas por intelectuais e militantes iniciados. Chegam também aos parlamentos, ocupando espaços antes quase impenetráveis. Neste ponto, nos orgulha que parte importante de nossos parlamentares sejam reflexo desse processo de renovação política.

É uma reorganização diferente da geração anterior, como não poderia deixar de ser. Afinal, tomando o exemplo brasileiro, 45 anos se passaram desde a fundação do MNU em 1978. O mundo de hoje, apesar de mais conectado pelas redes, é mais fragmentado do ponto de vista da produção e reprodução da vida social. Entender essa nova realidade é um desafio para a esquerda em geral, e para os socialistas em particular.

A Resistência é uma jovem organização consciente desses desafios. Há muito a ser feito, não há atalhos. É preciso abrir espaço e reconhecer o papel das novas lideranças, aprender com elas, construir sínteses geracionais. Reverter o signo de dispersão e fragmentação da esquerda socialista, passa necessariamente pela articulação entre raça, gênero e sexualidade como categorias que formam e informam a classe retirando-a dos esquemas empoeirados e inserindo-a no seu devido lugar: o processo histórico.