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O aniversário de Lenin

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

“Maior é o perigo onde maior é o medo”
Provérbio popular português

O aniversário de Lenin é uma oportunidade para refletir sobre as condições extraordinárias que favoreceram o triunfo da revolução de outubro. Lenin saiu da obscuridade quase completa, fora dos círculos dirigentes da Segunda Internacional e da esquerda radical, mesmo na Rússia, para as páginas da história. Como foi possível?

A velha máxima que assegura que as revoluções tardias são as mais radicais não deixou de se confirmar. Ao final da Primeira Guerra Mundial ruíram na Europa Central e Oriental três Impérios: o russo, o austro-húngaro e o prussiano que tinham atravessado, incólumes, o século XIX, desde a Santa Aliança antirrepublicana e o Tratado de Viena de 1815.

As formas monárquicas mais ou menos arcaicas de cada um deles, expressão de uma transição burguesa negociada sob as cinzas da derrota das revoluções democráticas de 1848, foram destruídas pelo desenlace da guerra, mas, também, pela maior vaga revolucionária que a história tinha até então conhecido: de Petrogrado a Budapeste, de Viena a Berlim, milhões de homens e mulheres, trabalhadores e soldados, atraíram para o seu lado setores das camadas médias, artistas, intelectuais e professores, e lançaram-se na obra de destruir os velhos regimes de opressão que os tinham mergulhado no turbilhão do genocídio que acabou consumindo algo próximo a dez milhões de vidas.

Aonde as revoluções democráticas de 1848 foram derrotadas pelas velhas monarquias – fortalecidas na época da restauração depois de 1815, como na Alemanha prussiana e no Império dos Habsburgos, a tarefa de pôr fim à guerra uniu-se à proclamação da República, mas as forças sociais que impuseram, pelos métodos da revolução, a derrota do governo – o proletariado e os camponeses arruinados que constituíam a maioria do exército – não se contentaram somente com as liberdades democráticas, e lançaram-se na vertigem da conquista do poder com suas esperanças socialistas.

As revoluções atrasadas da Europa Central e Oriental transformaram-se em revoluções proletárias pioneiras ao final da Primeira Guerra Mundial, mas, à exceção da Rússia, foram desbaratadas. Derrotas históricas têm consequências trágicas e duradouras. O custo histórico, para os alemães, da derrota de seus jacobinos em 1848 foi o militarismo nacionalista do II Reich, o imperialismo do Kaiser, e a Primeira Guerra Mundial. O preço que a nação alemã pagou pela derrota do seu proletariado, o triunfo do nazismo, a Segunda Guerra e os seis milhões de vidas da juventude alemã – foi ainda maior.

Aonde as formas tirânicas do Estado revelaram-se mais rígidas, como na Rússia, a revolução democrática radicalizou-se, muito rapidamente, em revolução socialista, confirmando que revoluções não podem ser compreendidas somente pelas tarefas que se propõem resolver, e menos ainda pelos seus resultados, mas, sobretudo, pelos sujeitos sociais, ou classes, que tiveram a audácia de fazê-las, e pelos sujeitos políticos, ou partidos, que foram capazes de dirigi-las. O substitucionismo histórico – de uma classe por outra – e a centralidade da política – com a redução das margens de improviso da liderança – demonstraram-se as chaves de explicação dos processos revolucionários contemporâneos.

Não foi a burguesia russa que se lançou à insurreição para derrubar o Estado semifeudal dos Romanov em fevereiro de 1917, mas foi ela quem impediu o governo provisório do Príncipe Lvov de fazer a paz em separado com a Alemanha: os capitalistas russos demonstraram-se demasiado frágeis para, por um lado, romper com seus parceiros europeus, e por outro, garantir a sua dominação através de métodos eleitorais na República que nascia pelas mãos da insurreição proletária e popular.

Não foi a burguesia quem mandou os seus filhos para as trincheiras da guerra serem massacrados, mas era ela quem apoiava Kerensky, quando este insistia em lançar os camponeses fardados em ofensivas suicidas sobre o exército alemão.

A pressão de Londres e Paris exigia a manutenção da frente oriental, mas a pressão de um proletariado poderoso e combativo – proporcionalmente a uma burguesia com pouco instinto de poder pela submissão à monarquia – exigia o fim da guerra; as forças mais fortes da esquerda socialista – mencheviques e esseristas – se recusavam a assumir o poder sozinhos, porque não queriam romper com a burguesia, porém os bolcheviques, minoritários até setembro, se recusavam a colaborar com o governo de colaboração de classes e romper com as reivindicações populares.

Quando Kerensky perdeu o apoio nas classes populares, a burguesia russa apelou ao general Kornilov para resolver com as armas o que não podia ser resolvido com argumentos. A hora das eleições para a Constituinte tinha passado. A burguesia russa perdeu a paciência com Kerensky e rompeu com a democracia, dois meses antes de o proletariado perder a paciência com os seus líderes, e recorrer a uma segunda insurreição para terminar com a guerra.

O fracasso do putsch selou o destino da burguesia russa. O proletariado e os soldados encontraram nos bolcheviques, nas horas terríveis de agosto, o partido disposto a defender com a vida as liberdades conquistadas em fevereiro. Sem o apoio da burguesia e sem o apoio das massas, suspenso no ar, o governo de Kerensky e seus aliados reformistas procurou socorro no pré-parlamento, mas a legitimidade da democracia direta dos sovietes superava a representação indireta de qualquer assembleia: o tempo para as negociações com a Entente tinha se esgotado, a oportunidade histórica para a república burguesa tinha sido perdida. Era tarde demais.

A engrenagem da revolução permanente empurrava os sujeitos sociais interessados no fim imediato da guerra – a maioria do Exército e dos trabalhadores – para uma segunda revolução e operava a favor dos bolcheviques que, no espaço de poucos meses, viam sua influência se agigantar. O proletariado e os camponeses pobres precisaram dos meses que separaram fevereiro de outubro para perderem as ilusões no governo provisório, onde os partidos em que depositavam suas esperanças, mencheviques e esseristas, eram incapazes de garantir a paz, a terra e o pão e entregar sua confiança aos sovietes onde a liderança de Lênin e Trotsky se afirmava.

Martov, líder dos mencheviques internacionalistas e Kautsky, líder da social-democracia alemã, insistiram, nos anos seguintes, que Outubro teria sido uma aventura voluntarista. Mais razoável, entretanto, seria concluir que uma hesitação bolchevique em outubro, ou a sua derrota na guerra civil entre 1918/1920, teria levado ao poder – apoiado pelas democracias de Washington e Londres – um fascismo russo, e ninguém deveria querer imaginar o que poderia ter sido Kornilov, um Hitler avant la lettre, no Kremlin, quinze anos antes.