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EDITORIAL

Os perigos do arcabouço fiscal e o posicionamento da esquerda

A regra fiscal de Haddad pode comprometer a capacidade de Lula cumprir as promessas de campanha

Editorial Esquerda Online
Diogo Zacarias/MF/Divulgação

A regra fiscal de Haddad pode comprometer seriamente a capacidade de Lula cumprir as promessas de campanha. Em um eventual cenário de estagnação econômica e frustração social com o governo, a extrema direita golpista ganhará força. É preciso evitar isso a todo custo. O país precisa de um vigoroso plano de investimentos públicos para produzir consistentes avanços sociais e econômicos nos próximos anos.

Entregando melhora de vida ao povo, Lula consolidará amplo apoio popular e o bolsonarismo se encolherá na oposição. O arcabouço fiscal ameaça essa possibilidade. Devido a esse perigo, a esquerda precisa se posicionar de forma crítica ao ajuste fiscal de Haddad, apresentando propostas fora do receituário liberal para destravar o desenvolvimento econômico e social com preservação ambiental. O PSOL e setores do PT, corretamente, estão adotando essa postura.

Como funcionará o novo ajuste 

Lula e Haddad entregaram ao Congresso, nesta terça (18), a proposta de nova regra fiscal. De acordo com ela, o gasto público só poderá crescer 70% da expansão da receita, sempre limitado ao teto de 2,5%. Para termos um parâmetro de comparação: ao longo dos dois primeiros mandatos de Lula, o gasto público subiu, em termos reais, acima de 5% ao ano, em média. Isto  é, o dobro do novo teto.

O arcabouço fixa também um piso de 0,6% ao avanço das despesas federais. Além disso, estabelece metas anuais de resultados primários até 2026. O objetivo é obter superávit para o pagamento da dívida pública.

A nova regra é menos rígida que o teto do Temer, ao permitir pequeno avanço dos gastos públicos (entre 0,6% e 2,5% ao ano). Porém, preserva a lógica do ajuste fiscal, que tanto beneficia o mercado financeiro e os rentistas de um modo geral. O governo “economiza”, gastando menos que arrecada, para remunerar os detentores da dívida pública. Só neste ano, estima-se que quase R$ 800 bilhões serão gastos com os juros da dívida.

Dessa forma, haverá, com a regra de Haddad, continuidade do projeto de diminuição do tamanho Estado na economia, ainda que em ritmo mais lento do que o imposto pelo antigo teto. Trata-se, assim, pode-se dizer, de um neoliberalismo com desconto.

Regra ruim em tempos de crise e de crescimento

Num eventual cenário de recessão econômica, que sempre produz queda da arrecadação, o governo terá pouca munição para enfrentar a crise. Podendo subir apenas 0,6% os gastos caso haja diminuição da receita, a capacidade de investimento público será severamente limitada, tornando a saída da recessão lenta e penosa.

Em outras palavras, em momentos de crise, quando o governo mais precisa de recursos para a geração de empregos e de renda, se encontrará travado pelo limite estreito do arcabouço fiscal. Para efeito de comparação, em 2009, diante da crise financeira mundial, Lula expandiu os gastos em quase 10%, o que foi fundamental para a rápida recuperação da economia. Se a regra de Haddad tivesse valendo naquele período, o governo teria uma margem muito menor de ação.

Em um cenário de crescimento econômico, que faz aumentar a arrecadação de impostos, o governo verá restringida sua capacidade de impulsionar o desenvolvimento social e econômico. Por exemplo, mesmo que a receita cresça 10% num ano, os gastos só poderão avançar até o teto de 2,5%. Todo esse saldo positivo (a diferença entre gastos e receita) não irá para educação, saúde, moradia, reforma agrária, preservação do meio ambiente, mas sim para o bolso de quem detém os títulos da dívida pública.

Com o crescimento dos gastos limitado a 70% da expansão das despesas, a política de valorização real do salário mínimo poderá ser afetada negativamente, assim como o orçamento para reajuste salarial e aprimoramento das carreiras do funcionalismo. Surpresa negativa de última hora foi a inclusão no teto dos repasses de recursos do governo para o BNDES e a Caixa.

Arcabouço pode levar à alteração dos pisos da educação e saúde 

A Constituição estabelece que, no mínimo, 18% da receita com impostos deve ir para a educação e 15% da receita corrente líquida para a saúde. Uma enorme conquista das lutas sociais. O teto do Temer suspendeu esses pisos constitucionais, mas não os revogou. Um dos grandes perigos do arcabouço de Haddad é que ele, se aprovado, praticamente obrigará o governo a apresentar, na sequência, uma proposta de emenda constitucional para revogar ou flexibilizar os pisos da saúde e educação.

Como a nova regra fiscal estabelece que os gastos só podem crescer 70% expansão da receita, não será possível cumprir os pisos referidos, que estão atrelados, constitucionalmente, a 100% da receita. O próprio secretário do Tesouro admitiu essa consequência inevitável do arcabouço.

A educação e a saúde públicas, que se encontram sucateadas, precisam de muito mais recursos do que as atuais destinações orçamentárias. A exclusão das despesas com universidades, institutos e hospitais federais do teto, anunciada hoje, é correta, mas insuficiente, posto que as verbas para a educação incluem também o ensino infantil, fundamental e médio, que deveriam também estar fora do limite de gasto. Lula se comprometeu a aumentar consideravelmente os investimentos nessas áreas. Ter projeto de avanço estrutural em educação e saúde é incompatível com a revogação ou flexibilização dos pisos constitucionais.

Como deve se posicionar a esquerda?

O mercado financeiro, os grandes bancos, o FMI, a mídia corporativa, enfim, todas representações da classe dominante, aplaudem o arcabouço fiscal. Artur Lira se comprometeu em aprovar a nova regra o quanto antes na Câmara, assim como Rodrigo Pacheco no Senado.

Nem mesmo a oposição bolsonarista se colocou, até aqui, contra a proposta, ainda que queira torná-la mais rígida. O senador Rogério Marinho, líder da oposição, afirmou que há muitas exceções ao teto, como os recursos para o piso da enfermagem e as verbas para as universidades públicas.

Do outro lado, há o correto posicionamento crítico do PSOL, de setores do PT e de movimentos sociais e sindicatos ao arcabouço. A esquerda deve ser coerente com o seu compromisso de defender os interesses da classe trabalhadora, do povo negro, dos mais pobres e da juventude. Que são interesses opostos aos dos milionários da Faria Lima.

O país precisa de mais recursos e de mais investimentos para desenvolver a economia com justiça social e sustentabilidade ambiental. A regra fiscal vai na contra-mão disso, podendo prejudicar o governo Lula no que é mais importante para o seu sucesso: o cumprimento das promessas de campanha. A extrema direita golpista está aí à espreita, de olho numa eventual frustração do povo como o governo.

No Congresso, opinamos que os parlamentares do PSOL e da esquerda de um modo geral devem criticar o arcabouço, explicando para suas bases os motivos dessa posição. Tem muita importância também a apresentação de propostas alternativas e emendas substitutivas aos piores pontos da nova regra fiscal.

Não se deve temer o voto contra o arcabouço, caso os fundamentos neoliberais da proposta sigam de pé. O que pode enfraquecer o governo Lula junto a base social que o elegeu não são os votos da esquerda contra uma proposta de ajuste fiscal regressiva, que trará prejuízos às políticas sociais. Mas sim ele se tornar refém da governabilidade conservadora pactuada com o centrão e o mercado financeiro.