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MUNDO

A visita de Lavrov ao Brasil e as perspectivas da questão ucraniana

Visita de chanceler russo se dá no marco de uma série de deslocamentos internacionais na questão ucraniana. Brasil é parte das movimentações.

Henrique Canary, da redação
Fabio Pozzebom/Agência Brasil

Foi com grande atenção que a imprensa internacional acompanhou a visita do chanceler russo Serguei Lavróv ao Brasil ontem (17). O evento se enquadra num giro que o chefe da diplomacia russa realiza em países da América Latina ao longo desta semana. Do Brasil, Lavróv seguiu para Nicarágua, Venezuela e Cuba. O objetivo da viagem é demonstrar que a Rússia não se encontra isolada internacionalmente, apesar das sanções impostas por Estados Unidos e União Europeia em função da guerra na Ucrânia.

A chegada da Lavróv a Brasília coincide também com um certo deslocamento da política internacional brasileira sobre o conflito russo-ucraniano. Se, por um lado, o Brasil se aliou aos Estados Unidos na última votação sobre a guerra na ONU, por outro, Lula aplicou uma mudança sensível de rumo (pelo menos em palavras) desde sua visita a China na semana passada.

Tanto na China, quanto de passagem pelos Emirados Árabes Unidos, Lula deu declarações que podem ser entendidas como um maior distanciamento do conflito e uma distribuição mais equânime das responsabilidades: “É preciso que os Estados Unidos parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz. É preciso que a União Europeia comece a falar em paz pra que a gente possa convencer o Putin e o Zelenski de que a paz interessa a todo mundo e a guerra só está interessando, por enquanto, aos dois”, disse Lula em referência aos presidentes da Rússia e da Ucrânia. Lula busca ter seu nome associado a um esforço pela paz no Leste Europeu e por isso decidiu deslocar algumas peças no tabuleiro diplomático.

A reação de Washington não tardou. Em conversa com jornalistas, o porta-voz de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby, disse que Lula “está reproduzindo propaganda russa e chinesa”. “É profundamente problemático como o Brasil abordou essa questão de forma substancial e retórica, sugerindo que os Estados Unidos e a Europa de alguma forma não estão interessados na paz ou que compartilhamos a responsabilidade pela guerra”, afirmou o funcionário norte-americano.

A imprensa brasileira também repercutiu amplamente as declarações de Lula. Especialistas de quase todos os grandes meios de comunicação se lamentaram de que Lula estaria “escolhendo um lado” do conflito, como se a votação favorável à resolução norte-americana na ONU não tivesse sido também um posicionamento unilateral, já que no texto aprovado não se fala uma única palavra sobre o avanço da OTAN em direção à fronteira russa. Alguns veículos chegaram a cobrar abertamente que Lula devia obediência a Biden na questão ucraniana, já que os Estados Unidos apoiaram o sistema eleitoral brasileiro quanto este foi atacado por Bolsonaro no contexto das eleições presidenciais. Lula estaria, portanto, sendo ingrato e irritando gratuitamente os amos internacionais de Washington e Bruxelas.

Ontem na visita de Lavróv, o chanceler brasileiro Mauro Vieira voltou a criticar as sanções internacionais impostas à Rússia e reiterou a necessidade de buscar uma negociação de paz que garanta um cessar-fogo o mais rápido possível. “Reiterei nossa posição em favor de um cessar-fogo imediato, do respeito ao direito humanitário e de uma solução negociada com vistas a uma paz duradoura e que contemple as preocupações de ambos os lados”, disse Vieira à imprensa logo após o encontro. Sobre as sanções, o chefe do Itamaraty afirmou: “Tais medidas, além de não contarem com a aprovação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, têm impacto negativo a todo o mundo, em especial aos países em desenvolvimento, muitos dos quais ainda não se recuperaram plenamente da pandemia”. A oposição a qualquer tipo de sanção extraterritorial é uma tradição do posicionamento do Itamaraty. Feita ao lado de Lavrov, no entanto, a declaração de Vieira se reveste de especial importância.

É preciso lembrar também que a mudança de rumo da diplomacia brasileira ocorre depois que o assessor especial de Lula para assuntos internacionais, o ex-chanceler Celso Amorim, esteve em Moscou no fim de março e encontrou-se com o presidente Vladimir Putin. Não se sabe ao certo o que os dois conversaram, mas certamente o encontro serviu para preparar a vinda de Lavrov ao Brasil e acertar os ponteiros sobre algumas questões. A Rússia é um importante parceiro comercial do Brasil, fornecendo cerca de ¼ dos fertilizantes utilizados no país. No ano passado, o comércio bilateral atingiu a marca dos US$ 10 bilhões e segue crescendo.

A verdade é que, em essência, o posicionamento de Lula em defesa da paz está correto. Não há hoje nenhuma perspectiva de encerramento do conflito pela via militar e por isso a busca por um cessar-fogo deve ser a prioridade de uma política externa independente e soberana.

Como viemos insistindo neste portal desde o início do conflito, a guerra russo-ucraniana tem um duplo caráter: por um lado, trata-se de uma agressão imperialista da Rússia, país historicamente opressor, contra a Ucrânia, país historicamente oprimido. Por outro lado, Zelenski (e antes dele Porochenko), pressionados por Washington, aceitaram transformar a Ucrânia numa semicolônia endividada até o pescoço e posto avançado da OTAN junto à fronteira russa, assumindo o papel de bucha de canhão numa guerra por procuração da OTAN contra a Rússia. Assim, o conflito tem também um caráter interimperialista. Ele é parte da luta pelo redesenho da correlação de forças entre os Estados no mundo. É por isso que o alinhamento a qualquer um dos lados significa o alinhamento com um bloco imperialista. A tarefa dos socialistas, ao contrário, é a luta contra a guerra em si, que só tem trazido destruição e sofrimento ao povo ucraniano e aumento da repressão ao povo russo.

No entanto, é preciso admitir que, se um cessar-fogo é em princípio possível (ambos os lados já se encontram bastante desgastados pelo conflito), a verdadeira paz é algo muito distante. Em conversa com jornalistas no dia 6 de abril, ainda antes de sua viagem a China, Lula chegou a esboçar uma proposta de acordo, que incluiria a retirada das tropas russas dos territórios recentemente ocupados, mas manteria o controle russo sobre a Crimeia: “Putin não pode ficar com o terreno da Ucrânia. Talvez se discuta a Crimeia. Mas o que ele invadiu de novo, tem que se repensar. O Zelenski não pode querer tudo. O mundo precisa de tranquilidade”, disse o presidente brasileiro.

A fala de Lula, claro, desagradou o presidente ucraniano, que respondeu no twitter, sem citar o presidente brasileiro, dizendo que a tranquilidade só será possível quando a bandeira ucraniana voltar à Crimeia. Já os russos elogiaram a proposta. Apesar do afago a Lula por parte dos russos, é pouco provável que eles aceitem a retirada de suas tropas das regiões de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporojia. Essas regiões não estão apenas ocupadas. Elas foram incorporadas oficialmente à Federação Russa via lei na Duma de Estado e há uma forte propaganda interna de que a população dessas regiões não será deixada para trás nem será objeto de negociações. Dificilmente Putin recuará nessa questão porque isso significaria jogar uma parte importante de sua propaganda e de seu próprio prestígio interno fora. Sair da Crimeia então – nem pensar. A região está totalmente integrada à Rússia, e não há nenhuma chance dos russos deixarem a península de maneira pacífica.

Assim, como os russos não querem sair e os ucranianos não têm força para expulsá-los, o mais provável é que não haja paz. Pelo menos definitiva. Ao que tudo indica, os russos trabalham com a perspectiva de um cessar-fogo que garanta o atual status quo, sem a assinatura de uma paz final. Em geral, cita-se a relação entre Coreia do Sul e Coreia do Norte como exemplo desse tipo de coexistência (oficialmente, ambos os países se encontram em guerra ainda hoje). Mas a verdade é que esse cenário não é incomum também para os russos. Basta lembrar que, devido a desacordos sobre o domínio das Ilhas Curilhas (norte do Japão), Rússia e Japão até hoje não assinaram um tratado de paz definitivo após a Segunda Guerra Mundial. O Japão reivindica o domínio sobre as ilhas e a Rússia ignora olimpicamente essa reivindicação. E a vida segue. A força dos russos reside no fato de que eles não estão nem aí.

Assim, a existência de um território que não é reconhecido internacionalmente como russo, mas que está sob controle da Rússia de fato é um cenário absolutamente aceitável para os russos, e parece ser para aí que caminham as coisas. Ou seja, ao que tudo indica, a perda da Crimeia e das quatro outras regiões continentais da Ucrânia é definitiva. A única forma de alterar isso seria a entrada da OTAN no conflito. Nesse caso, a guerra deixaria de ser por procuração e se tornaria aberta entre Rússia e OTAN, o que acarretaria o perigo de conflito nuclear, já que se se tornaria uma “guerra de existência” para a Rússia. É por isso que a reivindicação de “guerra até a vitória” é suicida e ameaça a própria civilização humana.

Ao invés isso, é preciso defender o fim da guerra, a retirada da Rússia das regiões recentemente ocupadas, o status neutro da Ucrânia e o desmonte de todas as estruturas militares da OTAN do Leste Europeu, sejam essas estruturas bases militares, laboratórios ou simples escritórios.

Infelizmente, não é para aí que as coisas caminham. Documentos recentemente vazados nos Estados Unidos dão conta da presença de especialistas da OTAN atuando já no terreno do conflito. A isso soma-se o fornecimento de armamentos à Ucrânia, que não só não pára, como é incrementado a cada dia. Do ponto de vista da Rússia, agora a novidade é o treinamento oferecido ao exército bielorusso para que possa manejar armas nucleares táticas em caso de necessidade. Ou seja, caminhamos a passos firmes para o abismo. Acrescente-se ainda o aumento da pressão chinesa sobre Taiwan e uma pitada de exercícios militares russos no Oceano Pacífico e temos aí a receita da desgraça.

Restará aos líderes mundiais algo de racionalidade e moderação diante do acirramento do conflito? Não há nenhuma garantia disso, até porque a guerra não deve ser considerada algo absolutamente irracional. Ela é racional, embora tenha sua própria racionalidade. Ela é a continuação da política por outros meios, já dizia Clausewitz.

O conflito não é entre o Ocidente amante da paz de um lado e um ditador sanguinário de outro. Também não é entre a OTAN imperialista de um lado e os defensores dos explorados e oprimidos de outro. O conflito é entre dois blocos imperialistas que lutam desesperadamente (cada um a seu estilo e em base à sua tradição política) pela hegemonia no sistema mundial de Estados. Por isso, não cabe aos socialistas escolher um lado.

Mais do que nunca, é necessário um esforço concentrado pela paz, ainda que precária, ainda que temporária. É preciso estancar o conflito antes que ele saia do controle e se torne algo que destrua a todos nós. Infelizmente, a história do capitalismo demonstra que essa é uma perspectiva real e exatamente por isso deve ser evitada a todo custo.