Novamente as redes sociais são inundadas com vídeos, fotos e memes sobre protestos na França e as clássicas ações diretas promovidas pela luta de classe no país. Entretanto, a onda de protestos que se alastra no país desde o começo de 2023 tem suas particularidades, diferenciando-se, por exemplo, pela adesão dos mais diversos setores sociais que muitas vezes se encontram em diferentes campos de ação e prática. Um objetivo comum — o qual nós, brasileiros, já enfrentamos em 2016 — unifica estas diversas forças: a derrota de uma reforma da previdência que, aos moldes do neoliberalismo, prejudica a qualidade de vida no mundo do trabalho em detrimento de assegurar o lucro das grandes corporações. A reforma, hoje, é rejeitada em sua integralidade por aproximadamente 73% da população.
Alguns elementos ajudam na compreensão desses fenómenos recentes, como o modelo presidencialista francês, a maneira como o governo Macron aprovou a reforma e o papel que as esquerdas têm desenvolvido no país.
O sistema semipresidencialista francês
Desde o ano passado o governo de Emmanuel Macron vem anunciando seu desejo de realizar a reforma da previdência na França. Macron afirma que foi eleito para, dentre outras coisas, realizar tal reforma. Ocorre que Macron teve apenas 20% dos votos do eleitorado francês nas eleições de 2022, aumentando para cerca de 38% no segundo turno contra a ultradireitista Marine Le Pen. Nem os 20% do primeiro turno são unânimes no apoio ao projeto: praticamente metade defende maior discussão com a sociedade, de forma democrática. Esse aumento em torno de 18% que Macron obteve no segundo turno é proveniente dos eleitores do campo da esquerda, que só votaram em Macron para derrotar a ameaça de Le Pen e, claramente, são contra o projeto.
O sistema político atual da França é extremamente problemático. É um sistema misto, presidencial e parlamentarista, no qual as funções mais importantes estão centradas no presidente — é ele quem geralmente está nos noticiários internacionais, e dificilmente nos lembramos quem é o primeiro-ministro francês… Historicamente, com exceções pontuais, a relação entre presidente e primeiro-ministro não teve grandes problemas. Diferentemente da maioria das democracias da Europa ocidental, que são parlamentaristas, a França parecia ter se acomodado bem no cenário internacional a partir de um regime que pode ser considerado praticamente presidencialista — as funções de relações exteriores inclusive são atribuições da figura do presidente. Presidencialismo esse que tem uma história já longeva no país, desde a ascensão de Luís Bonaparte ao cargo presidencial em 1848, quando derrubou a dinastia dos Orleães e, logo ao final de seu mandato em 1852, deu um golpe de Estado que o tornou imperador por quase vinte anos — processo, diga-se de passagem, analisado de forma brilhante por Marx em “As lutas de classes na França”. No retorno ao presidencialismo em 1871, na chamada “Terceira República”, o então presidente Adolphe Thiers selou a derrota da Comuna de Paris, novamente com extrema virulência, conjuntura também analisada por Marx em “A Guerra Civil na França”.
Até o final da “Quarta República” em 1959, a eleição para o cargo de presidente da república era indireta, realizada por um colégio eleitoral. Somente a partir de 1962, já na “Quinta (e atual) República” é que a figura do presidente passou a ser eleita por sufrágio universal. Entretanto, é importante considerar que o histórico presidencialista na França carrega um caráter autoritário e com práticas muitas vezes questionáveis. Na atual república, presidentes mais populares, como Charles de Gaulle (1959-1969), o socialista François Mitterand (1981-1995) e Jacques Chirac (1995-2007) conseguiram diluir esse imaginário autoritário. Os últimos presidentes, não tão populares: Nicolas Sarkozy (2007-2012) e o socialista François Hollande (2012-2017) enfrentaram crises econômicas sérias e apelaram para mecanismos centralizadores da atual Constituição francesa, de 1958. Ambos colheram derrotas políticas, Sarkozy não se reelegeu e Hollande nem sequer conseguiu emplacar sua candidatura à reeleição.
A outorga do novo sistema previdenciário
Macron invocou em março um dispositivo da Constituição que lhe permitiria aprovar o aumento da idade para aposentadoria sem a aprovação da Câmara dos Deputados. Com o pressuposto de destravar processos legislativos que se encontrem bloqueados por falta de maioria, o famoso “artigo 49.3” assegura, em linhas gerais, que o governo tem a prerrogativa de aprovar leis sem a necessidade dos trâmites legislativos ordinários. Entretanto, o Parlamento pode barrar a lei através de uma moção de censura.
Nesse contexto, a primeira-ministra Élisabeth Borne se submeteu a um papel deprimente no parlamento, tentando convencer os deputados, de forma estapafúrdia, que Macron teria que invocar a medida por questões financeiras. O recado dos bancos foi dado. A burguesia financeira entrou em uma batalha que não pensa em perder. Isso ficou muito claro no teor do projeto e na forte repressão aos movimentos de rua contra a reforma, sustentada pelo Estado francês.
Assim, o projeto foi aprovado no final de março, devendo entrar em vigor em setembro deste ano. À semelhança do que ocorreu com o projeto da reforma da previdência do governo golpista e ilegítimo de Michel Temer no Brasil (2016-2018), para ter direito ao valor integral da aposentadoria, o trabalhador na França deverá contribuir durante 43 anos para a seguridade social! Algo irreal, em um contexto de crescimento substancial da informalidade no país. Além disso, a média na França de contratação de trabalhadores entre 55 e 64 anos é de 56%, abaixo da média europeia de 60,5 %. Os trabalhadores nessa faixa etária têm mais dificuldades de se reinserir no mercado de trabalho formal, assim como no Brasil. É um cenário propício para o crescimento dos planos privados de previdência, capitaneado pelos bancos. Por um lado, enfraquecem o sistema público e os direitos sociais, por outro, fortalecem o sistema da burguesia financeira.
Até a aprovação da reforma, as manifestações foram pacíficas, chegando a reunir mais de 3 milhões de pessoas em Paris. Nas manifestações do dia 28 de fevereiro, registraram-se pontos de conflito violento entre forças de segurança — com um dispositivo inédito de 13.000 policiais — e grupos minoritários utilizando-se da tática “black-block”, com o balanço oficial de 457 detidos e 441 policiais feridos. Ao mesmo tempo, o governo francês também intensifica a repressão a movimentos contrários ao crescimento do modelo do agronegócio no país. As imagens de uma batalha campal voltaram a ter destaque no fim de março, durante os protestos contra uma barragem agrícola destinada a empresas monocultoras e utilitárias de agrotóxicos em Sainte-Soline (centro-oeste do país). O confronto deixou dois manifestantes em coma.
Nesta conjuntura política, uma saída favorável à classe trabalhadora não parece despontar no horizonte. O governo de Macron sustenta-se neste momento somente na garantia ao capital financeiro. Os índices de inflação mantêm-se elevados e o poder de compra do salário mínimo despencou desde o ano passado. A prometida “reconstrução pós-pandemia” ainda não indica melhorias visíveis para a população trabalhadora, como por exemplo a geração de novos postos de trabalho qualificados na região metropolitana de Paris. O aumento no número de sem teto vivendo nas ruas salta aos olhos ao passo que os programas públicos de moradia caminham lentamente em detrimento do boom imobiliário privado dos últimos anos.
A atuação e o papel da esquerda radical
O principal partido de esquerda e um dos maiores partidos do país, o La France Insoumise (LFI), vem, junto com a principal central sindical do país, a Confédération Générale du Travail (CGT), liderando muito dos protestos que ocorrem pela esquerda e a oposição parlamentar ao projeto de Macron. Entretanto, deve-se destacar que, assim como em junho de 2013, cada vez mais outros atores tentam cooptar o capital político gerado pelos movimentos de massa, com destaque inclusive para a direita e extrema-direita. A própria Marie Le Pen, por exemplo, vem tentando se construir com diversas declarações públicas contra a reforma e contra o governo Macron. Desse modo, o cenário político francês ainda deixa em aberto quais forças conseguirão melhor capitanear as revoltas populares que ocorrem no momento.
A LFI é um partido relativamente novo, fundada apenas em 2016 como um agrupamento de diversos setores da esquerda política ao redor da candidatura de Jean-Luc Mélenchon para as eleições presidenciais de 2017. Além disso, a LFI também compõe uma coligação político-partidária de grande relevância no cenário francês, a Nouvelle Union Populaire Écologique et Sociale (NUPES), formada pela LFI e pelo Pôle écologiste — coligação entre os movimentos ecologistas Europe Écologie Les Verts, Génération.s e Génération Écologie —, pelo Parti Communiste (PC) e pelo Parti Socialiste (PS), que também se agruparam ao redor de campanha de Mélenchon à presidência, agora em 2022.
Apesar do crescimento significativo entre as campanhas eleitorais (em 2017, a LFI elegeu 17 deputados e, em 2022, a coligação eleitoral do NUPES elegeu 75 deputados), esta aliança de frente ampla começa a demonstrar sinais de desgaste. Muito dos atritos ocorrem pela própria figura de Mélenchon que, além de criticar abertamente deputados e partidos que são partes do NUPES nas redes sociais, também está envolvido em denúncias de abuso sexual de um assessor. Por fim, também tem-se em conta que alguns partidos da NUPES se sentem desconfortáveis com o excesso de protagonismo da LFI na escolha dos rumos políticos do movimento.
Por fim, vale destaque os dois movimentos que se encontram ligados à Quarta Internacional, os quais, apesar de pouco alcance eleitoral até aqui, possuem uma militância engajada e aguerrida, sendo responsáveis por organizar e agitar muito dos protestos com uma perspectiva estratégica evolucionária de transformação social radical: o Ensemble! e o Nouveau Parti Anticapitaliste (NPA).
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