1 Monica Baltodano, 68 anos, veterana da revolução sandinista, uma das três mulheres comandantes da guerrilha que derrubou a ditadura de Anastácio Somoza em 1979, tendo sido ministra e deputada, primeiro pela Frente Sandinista de Libertação Nacional e depois pelo Movimento pelo Resgate do Sandinismo está no Brasil. Monica Baltodano, que hoje vive na Costa Rica, merece ser ouvida.
2 O giro ditatorial do regime de Ortega/Murilo aumentou de intensidade. Cassou a cidadania de centenas de opositores que somente expressavam, pacificamente, suas ideias. Foram, ademais, expulsos do país sem documentos e sem acesso a recursos econômicos, porque perderam suas casas, economias e empregos. A própria Monica, quando foi presa durante a ditadura somozista, tinha o direito elementar de ver os seus filhos, direito que é hoje negado pelo governo Ortega às atuais presas políticas.
3 Terra dos lagos e vulcões, e maior país da América Central, se estendendo do Pacífico ao mar do Caribe, a história da Nicarágua foi uma dramática saga de conquista e exploração desde os tempos coloniais. O país é o segundo mais pobre da América latina, depois somente do Haiti: seu PIB é estimado em US$14 bilhões e a renda per capita em US$2.000,00 por ano, ou seja, cinco vezes menor que a do Brasil. O balanço de pagamentos do país depende do envio de remessas dos emigrantes que corresponde a 15% do PIB. O centro de sua economia ainda é a agricultura de algodão, café, cana-de-açúcar e frutas, mineração de ouro, prata e cobre, além da expansão de um setor de serviços embrionário. A imensa maioria de sua população de quase 7 milhões ainda é de origem camponesa e tem pouca instrução.
4 Augusto Cesar Sandino manteve, entre 1926 a 1933, uma resistência armada contra as tropas dos Estados Unidos que ocupavam a Nicarágua desde 1912. A ocupação obedecia aos interesses na exportação dos recursos pelas companhias americanas. Em 1934, Somoza, apoiado pela Guarda Nacional, matou Sandino. Entre os anos de 1936 e 1978, por mais de quarenta anos, a Nicarágua viveu sob uma ditadura militar liderada por Somoza apoiado pela Guarda Nacional, um exército pretoriano que garantiu a preservação de um poder dinástico-familiar no poder. No início da década de 1960 as lutas de libertação nacional conheciam um ascenso. Em 1959 entram em Havana as forças revolucionárias que haviam derrotado a ditadura de Fulgêncio Batista em Cuba. Na Argélia formara-se a Frente de Libertação Nacional para lutar pela independência do país, uma colônia francesa. Na Nicarágua os vários movimentos contra a ditadura de Somoza se unificaram e geraram, mais tarde, a Frente Sandinista de Libertação Nacional.
5 Em 1979, depois de anos de uma luta de guerrilhas, explodiu um processo revolucionário que levou às ruas multidões gigantescas, e a FSLN liderou a derrota da Guarda Nacional e tomou o poder. Assumindo o controle político do país, os sandinistas tiveram que contornar uma profunda crise social. Estatizando uma parte do setor industrial, e viabilizando uma reforma agrária, o governo sandinista, uma frente que unia católicos progressistas, nacionalistas radicais e correntes de inspiração socialista, iniciou uma transformação social, mas recuou diante do desafio da Nicarágua ser uma nova Cuba. Ainda assim, os EUA passaram a fomentar uma sublevação contra revolucionária mercenária conhecida como “Os Contras”. O país teve que enfrentar durante anos uma guerra civil financiada por Washington.
6 O principal projeto do governo Ortega é a construção de um canal que irá competir, diretamente, com o canal do Panamá, controlado pelos EUA. Três vezes maior, cruzando o Lago da Nicarágua, principal fonte de água potável do país, é construído pelo consórcio Hong Kong Nicaragua Canal Development Group, liderado pelo empresário chinês Wang Jin, que teria a concessão por 50 anos, renovados por mais 50, garantindo-se uma taxa de US$10 milhões por ano. Trata-se de um dos projetos de infraestrutura mais ambiciosos do século 21: além do canal, dois portos de águas profundas, um oleoduto e dois aeroportos.
7 Não parece haver dúvidas da discreta, porém, estreita relação de Wan Jing com o governo de Beijing. Este projeto está na raiz das tensões do governo Ortega/Murilo, sua esposa, com os EUA. As relações do regime com o imperialismo dos EUA foram boas, por muitos anos, com o país inclusive fazendo parte da CAFTA (tratado de livre comércio da América Central com os EUA). Mas tudo mudou com o projeto do canal.
8 O canal teria 273 quilômetros de extensão, e cortaria ao meio o país, a um custo estimado entre US$ 40 e 50 bilhões, cerca de cinco vezes o Produto Interno Bruto (PIB) da Nicarágua. Ele desalojará dezenas de milhares de nicaraguenses, exigiria uma operação de dragagem no Lago Nicarágua, e entregaria centenas de quilômetros quadrados de terras para a Hong Kong Nicaragua Development Corporation (HKND), empresa encabeçada por Wang, como parte do acordo de concessão. Apesar de ter reconhecido os impactos ecológicos potencialmente desastrosos do projeto, o governo da Nicarágua concedeu à HKND uma licença ambiental para iniciar a construção do canal. Mas os problemas persistem. Wang Jin, que entrou na lista da Forbes dos 400 bilionários chineses mais ricos na posição número 94 em 2013, disparou para o 12º lugar, após a Xinwei entrar na bolsa de valores de Shanghai, mas com a crise da bolsa perdeu 90% de sua riqueza.
9 O que está acontecendo na Nicarágua? O Governo da Nicarágua reprimiu com violência inaudita, mais de 300 mortos, protestos pacíficos de estudantes, populares e até aposentados idosos contrários ao aumento de 5% nas contribuições determinadas pela reforma da previdência impostas em 2018, uma luta legítima. Ortega seguia recomendações do FMI, mas se viu obrigado a desistir diante da comoção nacional e internacional. Muitas pessoas foram presas sem mandados judiciais. Existe censura oficial implacável, inclusive atingindo a Igreja Católica. Diante desta tragédia estarrecedora, o silêncio é cumplicidade. Quem denuncia os crimes de Ortega é, até prova em contrário, “agente da CIA”? Voltamos aos trágicos anos trinta do século passado, quando um alinhamento acrítico com o governo de Stalin levou a maioria da esquerda mundial a fechar os olhos para os crimes dos julgamentos de Moscou? Qual deve ser o lugar da esquerda brasileira?
10 O campismo de esquerda considerava, no século passado, que o destino da causa socialista estava, indissoluvelmente, associado ao futuro do governo da URSS e seus aliados. O que era interpretado como “bom” para os interesses da URSS era justo. O justo defensismo das conquistas da revolução de outubro servia para justificar tudo. Este “nacionalismo da URSS” não merece ser confundido com o internacionalismo marxista. Já era uma nostalgia equivocada, antes do fim da URSS, para quem se reivindicava socialista. Mas é muito mais grave agora, na sua versão “chinesa”, quando a restauração capitalista já se completou há três décadas, porque anula a luta de classes como a principal bússola de socialistas. O perigo de uma miopia campista ameaça uma percepção digna, decente e íntegra dos desafios colocados pelo apodrecimento do regime ditatorial de Ortega/Murilo. A Nicarágua tem todo o direito de buscar um caminho de desenvolvimento independente. Parece evidente que as tensões com Washington se explicam pelo interesse estratégico da China na construção de um canal que poderá baratear o movimento de mercadorias entre o Pacífico e o Atlântico, e aumentar a competitividade de suas exportações, ao encerrar o monopólio do canal do Panamá. Estamos entre aqueles que não hesitariam um minuto em defender a Nicarágua, um pequeno país periférico, diante de um ataque do imperialismo norte-americano. Mas, para socialistas, não é aceitável ignorar que a Nicarágua é um país capitalista com um regime político ditatorial responsável por assassinatos em massa para preservar o controle do poder. A solidariedade com aqueles que são perseguidos é uma questão de princípios elementar. Um canal não deve calar ninguém. Ortega enterrou todas esperanças que a revolução sandinista despertou em 1979.
riginalmente publicado no portal Fórum: Ortega enterrou a revolução sandinista
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