Lula desembarcou nesta quarta-feira, 12, em Xangai, na China, para uma visita de Estado que deve durar três dias. Essa é a quarta vez que o presidente brasileiro visita o país asiático. As outras viagens aconteceram nos anos de 2004, 2008 e 2009. Lula chega ao país acompanhado de uma extensa delegação de membros do governo e empresários e espera-se que sejam assinados cerca de 20 acordos de cooperação econômica e tecnológica.
Além disso, deve ser tratado também o tema da guerra na Ucrânia. Ao contrário da China, que se absteve nas principais votações na ONU sobre o tema, o Brasil acabou acompanhando o voto norte-americano na última votação, e ajudou a aprovar uma resolução que condenava a agressão russa à Ucrânia sem dizer nenhuma palavra sobre a movimentação da OTAN no conflito. Ainda assim, Lula tem esperanças de que o Brasil possa cumprir um papel destacado na pressão por negociações de paz, o que seria, claro, uma grande jogada. A imprensa chinesa tem dado muito destaque à visita e o presidente Xi Jinping já se referiu a Lula como um “velho amigo”.
De um modo geral, a visita é extremamente importante para o governo. Seguindo a dinâmica mundial, a economia brasileira deve crescer muito pouco neste ano. Por isso, a intensificação das relações econômicas com o principal parceiro comercial do país é decisiva para puxar esse índice para cima.
Mas o mais interessante na viagem de Lula à China não são os possíveis acordos a serem firmados – em geral, bastante previsíveis –, e sim o contexto em que ocorre. Nos dias e semanas que antecederam a visita, houve importantes deslocamentos de forças em nível internacional que refletem a luta por uma nova correlação de forças entre os Estados do mundo.
Em primeiro lugar, aconteceu uma intensificação da pressão chinesa sobre Taiwan, com a realização de grandes exercícios militares que duraram três dias e simularam um cerco à ilha. Segundo o Ministério da Defesa de Taiwan, cerca de 70 aeronaves chinesas foram detectadas na região, incluindo caças Su-30 e bombardeiros H-6, bem como 11 navios. A movimentação de tropas foi intensa também no lado chinês do Estreito de Taiwan, com o acionamento de unidades de mísseis e artilharia de longo alcance que ensaiaram ações contra a ilha desde o continente.
A reação taiwanesa e ocidental ao exercício chinês foi imediata. Como de costume, o governo norte-americano pediu moderação à China. Mas na dúvida, enviou ao teatro dos eventos o destróier USS Milius, que patrulhou uma importante região no Mar da China Meridional. Comentando a movimentação geral das forças, o porta-voz do ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, advertiu que “a independência de Taiwan e a paz e a estabilidade no Estreito de Taiwan são coisas mutuamente excludentes”.
O exercício chinês ocorre no momento em que a presidente de Taiwan, Tsai Ingwen, retorna de uma breve visita aos Estados Unidos e América Central, onde se encontrou com chefes de Estado da região e com o presidente da Câmara dos EUA, Kevin McCarthy. Ao que tudo indica, o governo taiwanês está bastante preocupado com o que pode ser considerado uma ofensiva econômica e diplomática chinesa na América Latina. No último final de semana, Honduras tornou-se o quinto país latino-americano em apenas seis anos a cortar relações diplomáticas com Taiwan e estabelecer laços com Pequim. Desde 2017, Panamá, República Dominicana, El Salvador e Nicarágua haviam adotado a mesma política. A situação diplomática de Taiwan não é nada boa. Na verdade, é uma das piores de sua história. Existem hoje no mundo apenas 13 países que ainda mantêm relações formais com a ilha: Paraguai, Guatemala, Haiti, Belize, Vaticano e pequenas ilhas do Caribe e do Pacífico.
A visita de Tsai Ingwen à América Central é relativamente indolor para a China, pois na prática inócua. No entanto, não se pode dizer o mesmo de seu encontro com o presidente da Câmara dos Deputados dos EUA Kevin McCarthy. Esse encontro lembrou um pouco a visita, em agosto de 2022, da então presidente da Câmara norte-americana Nancy Pelosi, depois do que se seguiu uma intensa troca de notas diplomáticas entre Estados Unidos e China no estilo passivo-agressivo.
Mas agora as coisas parecem até mais sérias. Os Estados Unidos têm na prática se afastado um pouco da política de “ambiguidade estratégica” que sempre adotaram com Taiwan. “Ambiguidade estratégica” quer dizer que reconhecem formalmente a existência de uma única China, mas mantêm laços econômicos, culturais, científicos e mesmo militares com o país-fake no outro lado do estreito.
Assim, a retórica dos Estados Unidos sobre o problema de Taiwan tem se tornado cada vez mais veemente. Em maio de 2022, por exemplo, Biden disse que estava disposto a usar a força para defender Taiwan em caso de ataque chinês. “Esse é o compromisso que assumimos”, afirmou na época, acrescentando que os EUA concordam com a visão de uma só China, mas que essa política não dá a Pequim o direito de tomar a ilha à força. Biden parece estar preocupado que a China se aproveite do delicado momento internacional marcado pela guerra na Ucrânia para começar o que é considerado na China também uma espécie de “direito histórico”: a reunificação do país, ou seja, a tomada de Taiwan. O próprio Biden admitiu que essas duas questões estão conectadas. “Seria uma ação semelhante ao que aconteceu na Ucrânia”, afirmou.
Outro tema é a OTAN. Apesar da unidade norte-atlantista em torno da questão ucraniana, o mesmo não parece acontecer sobre o problema de Taiwan. Recentemente, Emmanuel Macron também esteve na China e afirmou em entrevista a jornais franceses que a Europa não pode ficar refém da política norte-americana ou chinesa para Taiwan, mas sim deve buscar um posicionamento próprio. A fala de Macron, apesar de aparentemente “neutra”, agradou muito Pequim e foi bastante elogiada pela imprensa e por funcionários chineses, que destacaram o “profundo conhecimento” do presidente francês da questão taiwanesa. Lembremos que foi também Macron que afirmou em 2019 que a OTAN havia sofrido uma “morte cerebral”, referindo-se claramente à liderança norte-americana da aliança. Claro que a entrada da Finlândia na aliança fornece um fôlego geral à política militar norte-americana e alivia por agora as tensões. Ainda assim, começam as preocupações no continente europeu com o volume de gastos na guerra da Ucrânia. É o tipo de situação em que, uma vez passado o perigo imediato representado pelo inimigo comum, tudo ameaça se desmanchar no ar.
Mas as movimentações no cenário internacional não são apenas militares e diplomáticas. Estão sendo consolidadas pela economia. Ao contrário do que vem sendo divulgado no Ocidente, a Rússia não parece estar tão isolada assim, mesmo com as sanções impostas por Estados Unidos e Europa. Alguns poucos números o demonstram.
Em 2022, a Índia aumentou em astronômicos 384% suas importações da Rússia. O mesmo aconteceu com o Brasil, embora em uma escala mais humilde. As importações de fertilizantes aumentaram em 38% no ano passado, chegando ao patamar de US$ 7,85 bilhões. De outro lado, as exportações brasileiras para a Rússia também cresceram no mesmo período, atingindo a marca de US$ 1,96 bilhão.
Mas o mais impressionante – devido ao seu caráter estratégico – é o comércio entre Rússia e China. Hoje, nada menos do que metade do petróleo vendido pela Rússia é comprado pela China (e outros 20%, pela Índia); 40% do petróleo consumido pela China é russo. Essa incrementação do comércio de recursos energéticos permitiu à Rússia mitigar uma parte importante dos efeitos das sanções, ao mesmo tempo em que a Europa passou a comprar gás liquefeito norte-amercano a um preço de 20% a 40% maior do que o preço do gás russo, o que tem provocado uma importante crise inflacionária e contribuído com os protestos sociais na região.
Outro tema ainda mais estratégico é a transição do comércio em dólar para transações em moedas nacionais, únicas ou comuns. No último período, no comércio bilateral Rússia-China, a China tem aceitado rublos russos e pagado com yuans, o que permitiu à Rússia driblar a sua exclusão do sistema Swift de transações financeiras internacionais. Mesmo em um cenário distante do centro mundial como a América Latina, se discute a adoção de uma moeda comum para escapar das limitações do dólar, o que já provocou comentários de desabono por parte de Washington.
De um modo geral, pode-se dizer que os deslocamentos de forças se intensificaram no último período. Um sistema mundial de Estados não é algo fácil ou rápido de ser mudado. A última vez que isso aconteceu, foi por ocasião de Segunda Guerra Mundial. Dessa vez, as coisas parecem ser um pouco diferentes. Principalmente Rússia, China e Índia parecem apostar em uma mudança “a frio” do sistema, salpicada de “pontos quentes” aqui e ali. Essa parece ser a mediação encontrada até agora. Mas a dinâmica econômica, política e militar entre Estados não está totalmente sob o controle da razão de dirigentes, uma vez que é determinada por uma infinidade de fatores dispersos e muitas vezes incontroláveis.
Não está claro ainda o papel do Brasil nessa nova divisão mundial do trabalho e sistema mundial de Estados. Desde Temer e sobretudo sob Bolsonaro, a elite brasileira tem apostado em uma localização absolutamente subordinada politicamente e dependente economicamente, com o Brasil acompanhando sempre os votos norte-americanos na ONU e fornecendo commodities baratas para o mundo. Não se sabe ao certo o que Lula pensa a esse respeito. As declarações até agora têm sido demasiado genéricas. Um passo prático é a atual viagem de Lula à China. Vejamos em que resulta.
Comentários