Que horas são no “relógio” da história?

Estamos diante do fim da etapa da globalização? O período histórico aberto pela restauração capitalista e o fim da URSS, com a consolidação da supremacia dos EUA no sistema internacional de Estados, se aproxima do fim?

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

A ascensão do capital financeiro e do neoliberalismo deve ser vista muito mais como consequência do que causa da crise econômica internacional(…)O grande deslocamento do capital para as finanças foi a consequência da incapacidade da economia real, especialmente das indústrias de transformação, de proporcionar uma taxa de lucro adequada.
Robert Brenner

 

O ano de 2023 prometia ser dramático. Encerrado o primeiro trimestre, a turbulência está sendo pior do que o previsto. Guerra na Ucrânia sem solução militar; nova elevação do preço dos combustíveis; fratura consolidada do mercado mundial com sanções extremas contra a Rússia; reposicionamento ofensivo da Otan, incorporando a Finlândia, com a identificação do perigo que a China representa para a supremacia norte-americana; pressões inflacionárias mais elevadas dos útimos trinta anos; tendência à estagnação, senão recessão em escala mundial. Há até quem já considere que a etapa da globalização, que se definiu pela hegemonia inconteste dos EUA, nos últimos trinta anos,, estaria se encerrando.

Não se trata de uma hipótese descartável. O alinhamento de Beijing com Moscou desafia a liderança de Washington. Uma onda de mobilização, na França, somente comparável, talvez, ao maio de 1968, enquanto continua o crescimento da extrema-direita liderada por Le Pen e, nos EUA, a extrema-direita mantém o controle do partido republicano, enquanto Trump aumenta audiência depois de indiciado pela justiça.

Não fosse o bastante, temos a confirmação das piores previsões do impacto crescente do aquecimento global. Eventos extremos mais frequentes, como as inundações avassaladoras de verão no hemisfério sul, e a perspectiva de incêndios catastróficos no próximo verão do hemisfério norte. Mas que horas são no “relógio” da história?

Na contra-corrente do que acontece no centro do sistema, onde o crescimento do nacionalismo exaltado da extrema-direita é ininterrupto, na América do Sul o ano de 2022 trouxe as vitórias eleitorais de Boric no Chile, e de Petro e Francia na Colômbia, como desdobramentos de mobilizações de massas em 2019 e 2020. Ainda mais significativa foi a vitória de Lula nas eleições de outubro no Brasil. Uma nova onda de governos de centro-esquerda está redesenhando o mapa político, quando considerada a vitória do MAS na Bolívia, a resiliência de Maduro na Venezuela e, corajosamente, de Cuba. A pressão dos EUA será avassaladora para garantir sua hegemonia, o que permite agravamento de conflitos.

Mas, dentro de cada etapa ocorrem as oscilações na relações socias de forças que geram distintas situações políticas. E as situações estão marcadas pelas variações das relações políticas de força que explicam as mudanças de conjunturas. O desafio é saber qual é a dinâmica das situações transitórias. Mais de trinta anos depois do fim da ex-URSS, estamos na aurora de uma nova etapa no sistema internacional de Estados?

Época, etapa, situação e conjuntura são conceitos  pensados como esferas diferentes de análise da realidade. Definem-se por distintas causalidades, em níveis de abstração diferenciados, enfocando ritmos de temporalidades simultâneas, porém, desiguais, sobrepostas, mas, não raro, contraditórias. A história se desenvolve em um desencontro de tempos. Épocas, ou processo na longa duração da transformação econômico-social.. Etapas na perspectiva das posições de poder na arena internacional. Momentos ou conjunturas no curto prazo como mediação das situações políticas nacionais.

Um dos perigos teóricos de trabalhar com conceitos que buscam ser instrumentos de classificação ou periodização é ceder à tentação de um esquematismo rígido. A recuperação dessas quatro temporalidades não diminui a compreensão de que a realidade é sempre muito mais complexa do que os nossos esforços de apreendê-la em fórmulas fixas. Não se poderá encontrar uma sincronia, ou perfeita correspondência, entre as épocas, etapas, situações e conjunturas. Tal harmonia é incomum: crises revolucionárias se precipitaram em um ou outro país até em etapas internacionais reacionárias.

O mais complexo modelo teórico sempre será imperfeito e insuficiente para abarcar as muitas e imprevisíveis combinações históricas concretas. Um dos paradoxos históricos mais surpreendentes foi, por exemplo, que os trabalhadores só tenham conquistado o poder num país central, e ainda assim de forma efêmera, na França, durante os dias da Comuna de Paris, no que poderíamos dizer foi uma contramão da época. Por isso, a necessidade das categorias intermediárias como etapas e situações entre as caracterizações de época num extremo, e as de conjuntura, no outro.

De qualquer forma, em compensação, o perigo oposto a um “esquematismo” excessivamente “duro”, seria o empirismo das descrições vagas e cheias de ambigüidades, em que cada processo é quase uma excepção, e em que as categorias teóricas são desprezadas. Parece mais nocivo.

A hegemonia norte-americana se expressou, durante as últimas décadas, entre outros indicadores, também, no papel central do dólar nas trocas do mercado mundial. O perigoso consenso que se estabeleceu em torno da inevitabilidade do atual modelo econômico, mesmo quando já são trágicos os sinais agudos de esgotamento das politicas neoliberais, parece ameaçado.

As dívidas públicas e privadas alcançaram patamares inusitados na sequência da crise de 2008, , mesmo nos países centrais, depois de quinze anos de QE (Quantitative Easing), ou relaxamento monetário. Dívidas de 100% ou até 200% dos PIB’s. Nos países periféricos, onde o acesso ao crédito internacional impôs a emissão de títulos em dólar ou euros, como a Argentina, a vulnerabilidade é muito maior. Talvez estejamos mais próximos de um momento em que o FMI, com as suas “limitadas” reservas de algumas centenas de bilhões, diante de uma liquidez financeira estimada em US$1,5 trilhões que circulam por dia nos mercados financeiros, não consiga mais construir os empréstimos-ponte que impediram, até agora, o contágio epidêmico.

Se isso viesse a ocorrer, ou o FED teria que intervir, e assumir o papel de defesa última do entesouramento mundial, ou o dolar desmoronaria, desafiado por outras moedas como a chinesa, com severas sequelas para os planos americanos de preservação da hegemonia mundial.

Boa parte da análise critica da mundialização tem denunciado correta, mas, unilateralmente, a financeirização ou o papel dos movimentos ilimitados de massas imensuráveis de capital nas especulações com moedas, ações e títulos, como a causa da instabilidade da atual crise.

Mas é sempre perigoso confundir a superfície do fenômeno com a sua substância. Este erro metodológico, o economicismo, tem na sua raiz a dificuldade de compreender a articulação das transformações econômicas com as flutuações da luta de classes e a luta política. A globalização dos movimentos de capitais é mais consequência da depressão prolongada do que causa. O grande cassino da economia global é mais a expressão da contração do mercado mundial do que da sua pujança.

Capitais fictícios, capitais virtuais, ou capitais especulativos são trilhões de dólares que hoje se refugiam em papéis porque não encontram expectativas de valorização no processo produtivo. É certo, no entanto, como nos recorda Arrigui, no seu O Longo século XX, que essa tendência à financeirização não é nova: o que é novo são os volumes e escalas em que opera.

Qualquer ameaça mais séria de desvalorização do dólar, ou de moratórias em cascata dos países devedores, poderia fazer ruir como um castelo de cartas a aparente prosperidade da financeirização. Nesse sentido, o impasse histórico que o capitalismo atravessa só poderia se resolver com uma inflexão das relações de forças nos países centrais. O desenlace seria uma mudança da relação da União Europeia com os EUA, do papel de associada para dependente.

Indo ao ponto: o que pode estar em disputa nas greves agora em curso na Alemanha, Inglaterra e, sobretudo, na França, é o perigo de uma derrota histórica dos trabalhadores europeus que seria o desmonte do Welfare State, ou seja, uma nova fase histórica de superexploração e arrocho. Indivisível da ameaça fascista que conquista crescente base de massas. O discurso ideológico da necessidade de sacrifícios “coletivos” para sustentar uma corrida armamentista contra Rússia e China em defesa da “democracia” seria a narrativa de justificação.

Não se deve confundir uma possível fase de crescimento econômico, nas atuais condições histórico-políticas, com o processo dos trinta anos do pós-guerra, em que junto ao crescimento, veio associado a uma mobilidade social ascendente. O crescimento econômico, como sabemos, pode até mesmo acentuar a desigualdade social. Em conclusão: não há razão histórica sólida o bastante, para excluir dos cenários futuros a possibilidade de maior barbárie.

Seria, de qualquer forma, um processo regressivo em toda a linha, que só pode ser imaginado com a ascensão da extrema-direita ao poder nos EUA e alguns Estados fundamentais da União Europeia, e sobre as ruínas dos movimentos sociais e da esquerda nos países centrais, ou seja, como uma mudança de etapa. E o perigo de guerra mundial.