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BRASIL

Entenda o Arcabouço Fiscal de Haddad e seus impactos

Gabriel F. Casoni, de São Paulo (SP)
Valter Campanato/Agência Brasil

A regra fiscal de Haddad visa agradar o mercado financeiro. O governo considera que ela pode abrir caminho para a vinda de investimentos privados e a queda dos juros. Será mesmo assim?

O Arcabouço Fiscal proposto é mais flexível que o atual Teto de Gastos (EC 95). Estabelece novo teto e também metas de superávit primário, que é a economia que o governo faz para pagar a dívida pública (o saldo anual de receitas menos despesas).

Conter “gastos” públicos e priorizar o pagamento da dívida aos rentistas soam como música no mercado financeiro. Tanto que a Bolsa e os bancos comemoraram o anúncio da nova regra fiscal.

Segundo ela, o novo teto de gastos será de 2,5% acima da inflação, caso haja crescimento da receita. No teto atual, os gastos nunca podem crescer acima da inflação — uma verdadeira insanidade, tanto que ele foi “furado” diversas vezes até aqui, inclusive pelo Paulo Guedes.

O novo Arcabouço estabelece que os gastos correrão atrás das receitas. Eles ficam limitados a 70% da expansão da receita. Por exemplo, se as receitas subirem 2% em 2023, o governo só poderá subir os gastos em 1,4% no ano seguinte.

Em caso de receita em queda ou estagnada, a regra prevê que os gastos poderão subir 0,6% acima da inflação. Ou seja, em cenário de crise econômica, o limite de avanço de gastos para políticas anticíclicas é estreito.

Como se vê, o Arcabouço é menos rígido que o antigo Teto, mas ainda sim significa a gestão do orçamento público pela ótica da austeridade neoliberal.

O principal objetivo de Haddad

A meta principal da regra fiscal é gerar superávit primário. Isto é, gastar menos do que se arrecada para pagar a dívida pública. Importa lembrar que a dívida pública brasileira é toda em moeda nacional (Real) e não está em patamar alarmante em proporção ao PIB. Além disso, o país tem mais de $300 bilhões de dólares em reservas internacionais.

Ou seja, o Brasil está longe de um cenário de insolvência fiscal ou de trajetória explosiva de endividamento, como diz a narrativa falsa do mercado e da grande mídia.

Segundo a regra proposta por Haddad, este ano haverá um déficit equivalente a 0,5% do PIB. Em 2024, um equilíbrio. Em 2025, um superávit de 0,5 ponto. Em 2026, superávit de 1 ponto. Isto é, o governo está prometendo resultado comprometido com a remuneração dos detentores da dívida pública.

Para tornar a meta de superávit um pouco mais flexível, ela poderá variar 0,25% para menos ou para mais. Caso o governo não a atinja dentro dessa banda de variação, haverá punição: os gastos só poderão subir 0,5% em termos reais.

Qual seria a perda de investimento público se a regra tivesse valendo desde 2003?

Segundo estimativa do economista David Deccache, se a regra do Haddad, no cenário otimista de aumento real de 2,5% dos gastos, estivesse valendo desde 2003, o pais teria perdido no total, em 20 anos, R$ 8,8 trilhões de gastos públicos. Imaginemos como estaria a situação da saúde, educação e outras áreas sociais sem todo esse dinheiro?

Importa lembrar que, durante os dois primeiros governos de Lula, de 2003 a 2010, os gastos públicos tiveram, em média, crescimento real anual de um pouco mais de 5%. Ou seja, o dobro do teto do Haddad. Essa expansão dos investimentos públicos foi essencial para a execução de políticas sociais e econômicas.

Dois grandes problemas na proposta

O primeiro é que, em caso de crescimento da economia e, assim, da arrecadação do governo, os gastos públicos não poderão crescer mais de 2,5% ao ano. Isso vai tirar capacidade de gerar, por meio de investimentos públicos, crescimento econômico e justiça social de forma intensa e acelerada. Dito de outro modo, o potencial de avanço será desperdiçado pelo teto imposto. Por exemplo, se a receita subir em um ano 5%, os gastos só poderão aumentar 2,5% no ano seguinte, ficando em apenas 50% da expansão da arrecadação. O que não faz sentido algum, a não ser para os rentistas!

O segundo problema é que, em caso de crise da economia e, assim, de queda da arrecadação, o governo perderá capacidade de adotar medidas mais robustas de combate à recessão, pois os gastos só poderão crescer 0,6% ao ano. Para ilustrar: com a crise econômica global de 2008, as receitas tiveram leve retração em 2009, mas os gastos públicos subiram 16,30% em 2010! O que foi muito relevante para o desempenho da economia brasileira naquele ano. Se a regra de Haddad tivesse valendo em 2010, Lula só poderia ter gasto 0,6% a mais. Certamente, a economia, à época, teria crescido muito menos do que cresceu.

Em resumo: tanto o teto (2,5%) quanto o piso (0,6%) de gastos da regra são muito baixos, podendo prejudicar seriamente as políticas do governo, seja em tempo de crescimento da economia, seja em momento de crise.

Os juros vão cair depois do Arcabouço?

A equipe de Haddad argumenta que a nova regra fiscal abrirá caminho à queda da taxa de juros. Aposta é que Campos Neto, enfim, cederá, já que o governo está mostrando “disciplina” fiscal.

Não parece prudente confiar nessa hipótese. Campos Neto, o bolsonarista à frente do BC autônomo, poderá aumentar ainda mais a chantagem, pressionando o governo a aprofundar mais o ajuste fiscal. Segundo o Datafolha, 80% da população apoia Lula na defesa da redução dos juros. Haddad, ao invés de realizar ofensiva sobre Campos Neto, se amparando na ampla maioria popular, está preferindo ceder terreno ao inimigo.

O perigo da rendição à lógica da austeridade neoliberal

Lula foi eleito para melhorar a vida do povo, depois de anos trágicos com Bolsonaro. Isso significar fazer a economia crescer, valorizar os salários, ter mais investimentos em saúde, educação, moradia e infraestrutura, diminuir as desigualdades sociais, preservar o meio ambiente, entre coisas importantes.

Para tanto, é preciso pesados investimentos públicos nessas áreas. Se o governo Lula não entregar o que prometeu, vai perder popularidade e o bolsonarismo golpista, na oposição, pode se fortalecer. Aí mora um grande perigo.

A regra fiscal de Haddad atende aos apelos do mercado financeiro. De quem vive da especulação na Bolsa e dos juros dos títulos da dívida pública. Setor que sempre esteve com Bolsonaro.

O governo Lula precisa agradar a sua base social, o povo trabalhador e pobre que o elegeu; e não a Faria Lima. Para isso, é preciso ter capacidade de investimento público, o que o Arcabouço Fiscal limitará perigosamente.

Ainda dá tempo do governo abandonar esse cabresto ao desenvolvimento econômico e social do país. A esquerda precisa se colocar nesse debate tomando o lado dos interesses da classe trabalhadora.