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BRASIL

Novo arcabouço fiscal: melhor que o teto de gastos, mas ainda assim preocupante

Henrique Canary, de São Paulo (SP)
Diogo Zacarias

Foram anunciados nesta quinta-feira (30) os detalhes do novo arcabouço fiscal, que deve substituir o famigerado teto de gastos como sistema de controle de despesas do governo federal. O anúncio foi feito na sede do Ministério da Fazendo pelos ministros Fernando Haddad, da Economia, e Simone Tebet, do Planejamento. O texto agora segue para o Congresso Nacional na forma de Projeto de Lei Complementar, para ser analisado pelas duas casas.

Como era de se esperar, a proposta é mais flexível do que a regra atual, permitindo um maior nível de gastos por parte do governo tanto em momentos de crise, quando em períodos de recessão. Ainda assim, representa um aperto nos cintos e uma limitação importante na capacidade de investimento do Estado.

Não é à toa que o mercado reagiu positivamente ao anúncio feito por Haddad e Tebet. O Ibovespa subiu 2,25%, atingindo 104.085,40 pontos, e o dólar caiu 1,18%, fechando o dia em R$ 5,0745.

O centro da proposta do governo consiste em um mecanismo que estabelece um limite para o crescimento das despesas, sempre associado ao crescimento da receita. Esse limite de aumento do investimento seria de 70% do aumento da arrecadação, mas respeitando um teto de 2,5% de crescimento em relação ao ano anterior. Haveria também um piso de 0,6% para esse mesmo aumento. Expliquemo-nos.

Se a arrecadação aumentar em R$ 10 bilhões de um ano para o outro, o governo poderia aumentar os gastos em até R$ 7 bilhões (70%), já descontada a inflação do período, mas sempre respeitando o teto de 2,5% de crescimento da despesa em relação ao ano anterior. De acordo com a regra anterior, o aumento das despesas ficava limitado à correção monetária.

Esse seria o teto do aumento. Mas há também um piso. Se a receita não aumentar, o governo ainda assim poderia aumentar a despesa em até 0,6% em relação ao ano anterior.

Como saber exatamente qual percentual aplicar? Aqui entra o outro elemento da proposta, que são as metas de superávit e déficit.

O governo estabeleceu que em 2023 a meta de resultado é um déficit de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB), mas com uma faixa de variação que pode ir de um déficit de 0,25% até um déficit de 0,75%. Já para 2024 a meta seria um equilíbrio, com valores entre 0,25% de déficit e 0,25% de superávit. Para 2025, o objetivo seria um superávit de 0,5% do PIB, com intervalo permitido entre 0,25% e 0,75%. Por fim, para 2026, a meta ficaria em um superávit de 1% do PIB, novamente com uma faixa de tolerância de 0,25% para mais ou para menos.

O que acontece se o governo não atingir a meta? Nesse caso, ao invés do investimento subir 70% do aumento da arrecadação, subiria apenas 50%, sempre respeitando-se o piso de 0,6% de aumento real em relação ao ano anterior.

Ficou acertado também que o Piso Nacional da Enfermagem e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) ficariam de fora desse mecanismo, podendo subir além dos limites do texto. Além disso, se restabeleceriam os mínimos constitucionais de 15% para a Saúde e 18% para a Educação já a partir do próximo ano, com aumento real nos anos seguintes.

Como se vê, é um mecanismo mais inteligente e mais flexível que o estúpido teto de gastos. Ainda assim, representa um limite para aquilo que o governo pode investir. Como mínimo, 30% do aumento da arrecadação ficam “retidos” para serem usados com o pagamento da dívida pública ou em períodos em que não há aumento da arrecadação.

Interessante observar que nem mesmo esse mecanismo de contenção de despesas vai permitir uma diminuição da dívida pública nos próximos anos, que continua a ser alimentada pelos juros estratosféricos estabelecidos pelo Banco Central.

Segundo projeções do próprio Ministério da Fazenda, ainda que o governo atinja todas as metas fiscais estabelecidas pelo novo arcabouço, a dívida pública deve sair de 75,11% do PIB em 2023 para 76,54% em 2026. Se as coisas não saírem como esparado, a dívida pública pode atingir 77,34% do PIB no último ano de governo. Ou seja, o país inteiro vai se sacrificar para pagar aos banqueiros a montanha de juros inventada pelo senhor Roberto Campos Neto e ainda assim a dívida só vai crescer.

Como se vê, o plano do governo tem o mérito de se basear no aumento da arrecadação e não no corte abrupto de despesas. Isso gerou certa intranquilidade entre agentes do mercado, que começaram a questionar Haddad sobre as possíveis linhas para esse aumento de arrecadação. Perguntado concretamente sobre impostos, Haddad garantiu que não haverá aumento de tributos nem criação de novos (ou seja, sem taxação de bilionários e super-ricos por enquanto). Mas admitiu que é preciso fazer com que aqueles que não pagam nenhum imposto passem a pagar, e citou especificamente as “big techs”.

Haddad segue apostando que é possível servir a dois senhores: atender às exigências cada vez mais arrogantes e estapafúrdias do mercado e cumprir as promessas de campanha feitas ao povo pobre e trabalhador. “Do ponto de vista das contas públicas, entendemos que precisamos recuperar uma trajetória de credibilidade. Por isso, associamos o melhor dos dois mundos: traçar uma trajetória consistente de resultado primário, em que necessariamente a despesa vai correr atrás da receita − e, portanto, ampliar o espaço de economia para dar sustentabilidade às contas públicas −, mas sem uma rigidez absoluta, porque as demandas sociais estão aí para serem atendidas”, afirmou.

“O melhor de dois mundos”? Veremos. A fala de Haddad tem o mérito de reconhecer, ainda que inadvertidamente, que bilionários e trabalhadores vivem em dois mundos diferentes, opostos pelo vértice. Sempre que alguém quis governar para esses dois mundos, um deles – o dos trabalhadores – acabou esquecido e esmagado pela necessidade de “equilíbrio das contas públicas”.

Vale, portanto, o alerta: o apoio da classe trabalhadora (imensa maioria da população) a Lula ainda é frágil. Bolsonaro está de volta ao país. Se o governo errar de prioridade, pode colocar tudo a perder. A apesar da sofisticação, o novo arcabouço fiscal continua sendo o que qualquer mecanismo de controle de despesas sempre foi: tirar dinheiro dos pobres para dar para os ricos. É um sinal preocupante, e todos deveríamos estar alertas.