Impor uma derrota estratégica ao fascismo e avançar nas lutas para mudar o Brasil pela esquerda. Esse é o eixo estratégico que orienta a presente contribuição da Resistência, corrente interna do PSOL. Em base a uma análise de médio alcance da conjuntura nacional, avaliando diferentes aspectos da realidade política e social, o texto apresenta tarefas concretas para nortear a ação política dos socialistas.
Um mundo em turbulência
Para correta apreciação da realidade brasileira, é preciso observar o quadro internacional no qual ela se insere. Destacamos os seguintes aspectos principais: (a) intensificação da Guerra na Ucrânia; (b) acirramento do conflito geopolítico entre os EUA e a China; (c) incertezas a respeito da dinâmica da economia global em 2023; (d) ocorrência de importantes lutas da classe trabalhadora na França, Reino Unido, Espanha, Grécia e Portugal, bem como de mobilizações populares e indígenas no Peru contra o golpe e o levante de mulheres e jovens no Irã contra o regime ditatorial; (e) escalada da crise climática com novos eventos extremos em todo o globo, com a recusa dos governos das economias centrais em enfrentar a crise de forma consequente em razão da lógica da acumulação capitalista; e (f) continuidade de presença significativa da extrema direita no cenário internacional, que mantém influência de massas em vários países.
Dos fatores mencionados acima, o mais importante, certamente, é o da Guerra na Ucrânia. Há o aprofundamento do aspecto central da guerra: o caráter interimperialista do conflito, que escalou com o envio de armamentos ofensivos pelos EUA e OTAN para Zelensky. Mas há também o aspecto da condenável agressão imperialista da Rússia — expresso na anexação de territórios ucranianos e na destruição da infra-estrutura civil do país. Conjugada com a crescente disputa entre os EUA e a China, a guerra estabelece um quadro internacional caracterizado por elevadas tensões e instabilidade.
Do ponto de vista do desempenho econômico global, vislumbra-se como hipótese mais provável a ocorrência de desaceleração, mas não está descartado o cenário recessivo, tendo em vista o contexto de acentuada instabilidade geopolítica e choques econômicos. A quebra dos bancos SVB e Signature nos EUA e a quase falência do europeu Credit Suisse, que foram socorridos pelos fundos públicos na tentativa de se evitar explosão do sistema financeiro mundial, tal como ocorreu em 2008, revelam o perigo de nova crise econômica global, assim como a extrema irracionalidade do sistema capitalista, no qual os lucros dos bancos são privados, mas os prejuízos deles socializados.
No que se refere às lutas dos explorados e oprimidos, observa-se considerável aumento de greves e mobilizações na Europa Ocidental diante do aumento da inflação e de ataques a direitos sociais. Vale destaque à potente revolta social na França contra a reforma da previdência de Macron. Convém mencionar também o levante de mulheres e jovens no Irã, que enfrenta a ferocidade da ditadura, assim como as enormes mobilizações na China no final do ano passado, que derrubaram a linha draconiana do governo para contenção da Covid no país, e a luta popular e indígena no Peru contra o golpe da direita. Outro processo a ser notado é a grave crise interna em curso em Israel, que eclodiu com a tentativa de reforma do judiciário pelo governo de extrema direita de Netanyahu. A retomada de protestos relacionados à Greve Climática também merece ser lembrada.
Importa sublinhar que a extrema direita permanece como relevante e perigosa força político-social em diversos países importantes do centro e da periferia do sistema — Estados Unidos, Brasil, Itália, Espanha, França, Portugal, Israel, Hungria, entre tantos outros. A emergência da extrema direita como fenômeno mundial, que se nutre da decadência do sistema capitalista, coloca a luta antifascista como uma das bandeiras centrais da esquerda socialista em todo mundo no presente período histórico.
A principal contradição da situação política brasileira
A conjuntura nacional foi determinada, nesse início de ano, pela posse de Lula e a tentativa de golpe da extrema direita em 08 de janeiro. Se a tomada de Brasília pela esquerda e movimentos sociais na posse, com quase 200 mil pessoas, foi símbolo da principal vitória popular em anos, a invasão bolsonarista aos Três Poderes, sete dias depois, mostrou que a extrema direita segue ativa e audaciosa, contando com expressiva penetração nos meios militares e policiais. A derrota da tentativa de golpe produziu um momento conjuntural de fortalecimento do governo Lula e de enfraquecimento do bolsonarismo. Mas não significou derrota qualitativa do neofascismo, que segue com significativa influência de massas.
Essa conjuntura se inscreve numa situação política (correlação política e social de forças entre as classes) marcada por uma contradição central: de um lado, a permanência de importantes fatores reacionários (o peso da extrema direita neofascista no país e o quadro ainda de refluxo das lutas sociais) e, de outro, a mudança de governo pela esquerda (vitória de Lula), resultado de uma mudança parcial positiva na consciência de setores de massa. No próximo período, será preciso acompanhar a evolução da relação de forças: se haverá fortalecimento dos aspectos progressivos, mudando qualitativamente a relação social de forças, ou se prevalecerão os aspectos regressivos, de afirmação reacionária.
A gravidade do levante bolsonarista
A intentona golpista de 08 de janeiro foi um evento de máximo perigo, merecendo reflexão mais aprofundada. O objetivo era, a partir da ocupação das sedes dos poderes em Brasília, propagar um cenário de caos no país que justificasse intervenção militar para derrubar o governo eleito. Uma ação desse porte seria impossível sem direção política, milhares de pessoas dispostas à ação violenta, financiamento empresarial, comando operativo e facilitação policial e militar. Tornou-se explícito, com os acampamentos nos quartéis durante meses, o golpismo instalado no alto comando militar. Ocorreu em janeiro o “Capitólio” brasileiro — o qual foi, num sentido, mais grave que o norte-americano, em razão da evidente colaboração do comando militar no caso brasileiro, o que não se deu por lá.
Embora tenho sido derrotado, o golpe de 08 de janeiro revelou o perigo estratégico vigente: a capacidade de articulação política, empresarial, institucional e militar da extrema direita para fins golpistas. Numa palavra, a ameaça neofascista segue viva, ainda que tenha sofrido um revés importante. Impor uma derrota substancial à extrema direita no próximo período é fundamental para uma mudança qualitativa na correlação político-social de forças. Caso a esquerda não avance contra o fascismo, um novo e mais perigoso assalto golpista pode vir a ocorrer mais adiante.
Por que o golpe fracassou em 08 de janeiro?
Seria altamente improvável que um golpe pudesse ter êxito no Brasil no atual momento, na medida em que todas as potências mundiais, destacadamente os EUA (mas também União Europeia, China e Rússia), estão contra uma mudança de regime no Brasil pelas mãos de Bolsonaro (extrema direita neofascista). Da mesma força, uma fração central da grande burguesia nacional, com estreitos vínculos internacionais, defende a preservação do regime democrático-burguês vigentes. Esses dois fatores constituem as causas de fundo do fracasso do golpe em 08 de janeiro.
Vejamos as variadas expressões político-institucionais dessa posição do imperialismo e de parte do grande capital: existência de maioria anti-golpista no STF (com destaque ao papel cumprido por Alexandre de Moraes); o posicionamento dos presidentes da Câmara e do Senado pela aceitação do resultado eleitoral e contra o golpe; o papel da grande mídia (particularmente da Globo) na denúncia do golpismo; e a condenação internacional praticamente unânime da tentativa golpista pelos governos dos mais variados espectros políticos. Importa também mencionar que a tentativa de golpe ocorreu num momento em que Lula goza de apoio majoritário na população, o que dificultou a viabilidade do objetivo golpista. Além disso, as imagens de destruição dos prédios invadidos ajudaram a produzir opinião pública amplamente contrária à ação perpetrada. Por fim, a resposta do governo, com a intervenção federal na segurança do Distrito Federal, se mostrou eficaz no desmonte da ação fascista.
Os desdobramentos políticos após a tentativa de golpe
Abriu-se uma conjuntura, após o 8 de janeiro, de fortalecimento do governo Lula (que adquiriu mais capacidade de iniciativa política) e do regime político de conjunto, particularmente do STF e do ministro Alexandre de Moraes. Uma fração central do grande capital, amparada pelo imperialismo, apoiou a ação repressiva relativamente dura contra os golpistas, com mais de 1500 presos e inúmeros processos em curso. A condenação política do golpe unificou as instituições do Estado, enquadrando inclusive os governos estaduais ligados ao bolsonarismo. Os acampamentos nos quartéis foram desmontados e as ações da extrema direita nas ruas saíram de cena, por ora. A imagem das Forças Armadas foi afetada negativamente em razão da atuação favorável ao golpismo.
Portanto, estamos diante de um momento de defensiva política do bolsonarismo. Porém, é preciso ter em conta que essa defensiva pode ser apenas conjuntural. Apesar da rejeição popular ampla ao 08 de janeiro, a extrema direita segue com influência político-ideológica de massas, capacidade organizativa e forte penetração nos meios militares, policiais e institucionais. Em resumo, o bolsonarismo sofreu importante revés, mas segue vivo e estruturado. Exemplo notável disso revela-se nas Forças Armadas. Embora Lula tenha corretamente demitido o comandante do Exército que protegeu os acampamentos golpistas, segue intocado o grupo de comandantes e oficiais militares – da ativa e da reserva – que, através de decisões do Alto Comando, patrocinou o bolsonarismo nos quartéis e com Bolsonaro compartilhou o governo e o projeto de extrema direita.
Embora tenha sido obrigada a sair temporariamente das ruas, a extrema direita busca se localizar na oposição ao governo em torno de alguns temas da agenda neofascista com audiência na sua base social: ataques misóginos e transfóbicos (como o discurso do deputado Nikolas Ferreira na Câmara dos Deputados, no dia 08 de março); condenação das ocupações de terra do MST mediante a instauração de uma CPI na Câmara; agitação sobre o preço dos combustíveis; disparo de fakenews sobre o governo Lula etc.
Vai ter crescimento econômico no Brasil em 2023?
No que se refere ao cenário econômico, visualizamos duas hipóteses principais. Há sinais evidentes de desaceleração do crescimento econômico, após alta do PIB de 3% no ano passado, que foi puxada pelas fortes medidas de cunho eleitoral do governo Bolsonaro. No último trimestre de 2022 a economia já registrou leve contração. O mercado financeiro projeta, em média, crescimento de apenas 1% da economia em 2023. Com juros e endividamento em patamares elevadíssimos e desaceleração e instabilidade da economia global, é possível a efetivação de um quadro de estagnação econômica nesse ano (o PIB ficar entre 0 e 1%), não sendo descartada a ocorrência de recessão caso exploda uma crise financeira mundial. Porém, será preciso acompanhar a evolução de outros fatores que podem levar a economia para um resultado melhor, a saber: efeito dos investimentos do governo autorizados pela PEC da Transição (de até 200 bilhões), eventuais entradas robustas de capital externo no país, possível dinâmica da economia chinesa melhor do que a prevista, entre outros fatores.
Temos, então, que a economia brasileira deve ficar, provavelmente, entre a estagnação e um crescimento pequeno em 2023, mas não é impossível cenários mais extremados — recessão ou crescimento acima do esperado, a depender da combinação de fatores internos e externos num contexto de notável volatilidade.
Na conjuntura imediata, a disputa em torno da taxa de juros adquire importância, dividindo a burguesia. Lula entrou em campo para pressionar pela redução dos juros e vem enfrentando forte resistência da maioria do mercado financeiro, que é apoiado pela grande mídia. Porém, o governo conseguiu alguns aliados no grande empresariado, inclusive no setor financeiro (Febraban e grandes fundos de investimento), para a pauta da redução dos juros, cuja taxa nas alturas ajuda a paralisar a economia ao apertar e encarecer demasiadamente a oferta de crédito.
A crise bancária internacional em curso pode favorecer a redução da taxa de juros no Brasil, mas o Banco Central, sob o comando do bolsonarista Campos Neto, segue desafiando o governo com a manutenção da SELIC em estratosféricos 13,75%. Convém mencionar ainda que a quebra da Americanas, após o anúncio da fraude bilionária, está afetando negativamente a economia, ao impactar varejo e o mercado de crédito.
A crise social não foi revertida
Observamos uma realidade social ainda marcada pelo empobrecimento, precarização, endividamento e acentuadas desigualdades condicionadas pelo racismo e o machismo. O episódio terrível de trabalho análogo à escravidão descoberto em vinícolas no Rio Grande do Sul — que vitimou sobretudo trabalhadores negros baianos — não é um acontecimento isolado. Desde 1995, quando o Estado Brasileiro reconheceu formalmente a persistência dessa forma de trabalho em território nacional, até o ano passado, foram resgatados mais de 60 mil trabalhadores em situação análoga à escravidão. Após anos de contrarreformas, terceirizações desenfreadas e toda sorte de estímulos e proteção do governo neofascista, vem se expandido essas situações de superexploração brutal do trabalho. A escravidão contemporânea não se limita ao meio rural, evidenciando-se de forma dramática também nas médias e grandes cidades. De 2003 a 2022, 2.500 trabalhadoras domésticas foram resgatadas de situações análogas a escravidão, confissão de uma realidade de superexploração que nem a PEC-72 (conhecida como a PEC das domésticas) conseguiu ajudar a reverter.
Outro acontecimento que deve ser mencionado são as tragédias socioambientais que estão ocorrendo cada vez com mais frequência, a exemplo da que se deu recentemente no litoral norte de SP. Elas são resultado da combinação de efeitos das mudanças climáticas com a situação social de máxima precariedade a que estão submetidas populações trabalhadoras (pobres e negras) que vivem em encostas, morros e demais áreas vulneráveis.
A brutal crise social vivenciada durante o governo Bolsonaro e a pandemia, ainda que tenha se atenuado no ano passado (diminuição do desemprego, queda da inflação, aumento do auxílio para R$ 600, melhora da atividade econômica), não foi revertida qualitativamente. Essa afirmação se demonstra nos números do mercado de trabalho — aumento da informalidade, do trabalho por conta própria e por tempo parcial, do trabalho precário em plataformas (Uber, Ifood e outros), dos contratos precários via MEI e do trabalho terceirizado e mal pago de forma geral. Desse modo, houve redução da renda média do trabalhador, assim como a elevação do endividamento das famílias.
A esse quadro de acentuada superexploração e empobrecimento da classe trabalhadora se somam as condições deterioradas ou negadas de acesso à moradia, transporte, educação, creche, saúde etc. Importa ressaltar que esse contexto de crise social está fortemente marcado pelo racismo estrutural, assim como pelo machismo e a LGBTfobia. A população negra compõe a ampla maioria do contigente de pessoas submetidas às piores condições no mercado de trabalho. Às mulheres houve o reforço da exploração e espoliação no âmbito do trabalho reprodutivo (cuidado das crianças e idosos; limpeza e alimentação). A violência misógina e LGBTfóbica se intensificou nos últimos anos.
Perante esse panorama, a elevação dos benefícios do novo Bolsa Família e de outros programas sociais anunciados (ou em preparação) pelo governo pode aliviar um pouco a crise social, mas será incapaz de uma mudança mais significativa do quadro geral se medidas profundas não forem feitas.
Outro fator que incide sobre a crise social é a dinâmica da economia. Na hipótese de estagnação ou recessão, o mal estar social pode se elevar, afetando a popularidade do governo. Por sua vez, no cenário de crescimento, ainda que modesto, combinado com políticas sociais mais robustas, pode haver alguma melhora nas condições sociais, impactando positivamente a popularidade de Lula. A linha do governo é a de estimular o crescimento por meio do aumento de investimentos do Estado (via BNDES; Minha Casa, Minha Vida; retomada do PAC; programas sociais), porém são incertos os efeitos dessa política econômica em 2023.
A divisão da burguesia
Em primeiro lugar, salta à vista a divisão política da burguesia, que, por sua vez, reflete diferenciações econômicas existentes no seu interior. Há um numeroso setor burguês ligado à extrema direita e em oposição ao governo Lula. Esse segmento é majoritário na massa da burguesia (sobretudo na média burguesia), tem no agronegócio seu núcleo principal e mostra significativa presença também no mercado financeiro. Do outro lado, há uma poderosa fração do grande capital que apoiou Lula no 2° turno, se opôs ao golpismo de Bolsonaro e encontra-se no apoio (mais ou menos crítico) ao governo, disputando seu programa. Nessa fração estão bancos (como Itaú e Bradesco), grandes indústrias (Suzano, Klabin, multinacionais) e a parte da grande mídia, com destaque para a Globo.
O setor da grande burguesia que apoia e disputa os rumos do governo tem vínculos estreitos com o grande capital internacional e se expressa, política e institucionalmente, na maioria do STF, em partidos como MDB e PSD, em figuras como Kassab, Rodrigo Pacheco e mesmo Artur Lira, que usará seu peso na Câmara para pressionar e chantagear o governo. Essa ala da burguesia apoia Lula com objetivo de (a) de sustentar o regime ameaçado pela extrema direita e (b) de influenciar e pressionar para que a política econômica do governo atenda a seus interesses de classe, que estão conectados também a interesses imperialistas.
A classe trabalhadora também está dividida
Também identificamos divisões políticas importantes no proletariado, que se expressaram nas eleições presidenciais. Nos extratos de menor renda do povo, Lula foi majoritário. Já nas camadas de renda média dos trabalhadores, Bolsonaro venceu. Lula venceu entre os trabalhadores nordestinos, negros, mulheres e LGBTIs. Mas perdeu entre trabalhadores homens e brancos do Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Há maioria na classe trabalhadora, nesse momento, com expectativas positivas sobre o governo, ou que pelo menos quer dar a Lula o benefício da dúvida (“vamos torcer para dar certo”). Mas há um setor da classe, nada desprezível, que segue sob influência direta da extrema direita, se opondo ao governo pela direita.
Segundo a mais recente pesquisa IPEC, o governo Lula tem, após três meses da posse, 41% de avaliação positiva (ótimo ou bom), 30% de regular e 24% de negativa (ruim ou péssimo). A pesquisa revela que a ampla maioria do eleitores de Lula está satisfeita com o governo até aqui e que os eleitores de Bolsonaro se dividem, nesse momento, entre os que rejeitam fortemente o governo e os que o avaliam como regular. De modo geral, podemos assinalar que o governo começa com mais força nos setores mais oprimidos e empobrecidos da classe trabalhadora. Do ponto de vista dos que apoiam o governo, há confiança de que Lula vai romper o legado bolsonarista, melhorar as condições econômicas e ter políticas sociais de combate à pobreza. Não se tratam de expectativas elevadas — em função do parâmetro comparativo rebaixado (produto do retrocesso e destruição dos últimos seis anos).
Outro aspecto que deve ser ressaltado é a persistência do quadro de refluxo das lutas sociais. Houve melhora relativa no ano passado, com a retomada parcial de greves defensivas e mobilizações de rua nas eleições, especialmente no segundo turno, na comemoração de massas da vitória de Lula e na posse do novo governo. Porém, não houve um ascenso de lutas até aqui. Seguidas derrotas políticas desde o golpe de 2016, retrocessos sociais, perda de direitos, privatizações, desemprego, precarização do trabalho, impactos da pandemia, intensificação da violência racista, machista e LGBTfóbica, entre outros fatores, pesaram sobre o ânimo da classe trabalhadora.
Nesse início de governo Lula, não devemos esperar uma mudança qualitativa da situação — é improvável que haja um ascenso de lutas no curto prazo. Mas é possível que haja melhora na disposição para ações dos trabalhadores e da juventude em torno de suas demandas mais sentidas, encorajadas pela derrota de Bolsonaro. As primeiras manifestações de vanguarda pela revogação da reforma do ensino médio e a greve no metrô de São Paulo são indício disso. Por outro lado, expectativas de que as mudanças virão de cima, pelas mãos de Lula, podem gerar postura mais passiva num primeiro momento. Será preciso acompanhar com cuidado e paciência a evolução dessa dinâmica, atuando para avançar as lutas e a consciência.
A classe média segue, em sua maioria, com a extrema direita
A maioria das camadas médias seguiu com a extrema direita e votou em Bolsonaro contra Lula. A pequena burguesia proprietária segue sendo o núcleo duro da base social do neofascismo. É o setor mais engajado nas mobilizações e ações bolsonaristas, como destaque aos pequenos e médios burgueses vinculados às atividades de exploração e espoliação selvagens (garimpo, desmatamento, milícias, empresas de mão de obra terceirizada no campo e na cidade etc.) e aos mercadores da fé no segmento evangélico.
Portanto, a classe média começa majoritariamente na oposição ao governo, ainda que haja divisões importantes em algumas regiões. Nas capitais, houve setores médios que votaram em Lula para derrotar Bolsonaro, como se pôde ver em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, entre outras cidades. Se houver crescimento econômico, a inflação não disparar e existir programas de facilitação de crédito para esses segmentos, é possível que diminua a oposição pela direita ao governo nas camadas médias. Mas, mesmo no melhor cenário econômico, a extrema direita seguirá tendo nessa classe sua base principal.
Caracterização inicial do novo governo Lula
Estamos perante um governo de conciliação de classes, pois formado pela aliança de lideranças e partidos vinculados à classe trabalhadora (e seus setores oprimidos) e à esquerda com lideranças e partidos ligados à burguesia e à direita. O governo é capitalista porque (a) administra o Estado capitalista; (b) é formado por setores da classe dominante; e (c) busca atender a interesses de segmentos da burguesia e do imperialismo. Mas trata-se de um governo capitalista anormal, porque (a) nele estão lideranças e partidos ligados à classe trabalhadora e seus setores oprimidos (negros, mulheres, indígenas), a começar pelo próprio Lula, maior líder operário e popular da história do país; (b) porque parte significativa dos trabalhadores e dos setores oprimidos acredita que se trata de um governo seu, de esquerda; e (c) porque há amplos setores da burguesia que veem o governo, em razão da presença de lideranças e partidos da esquerda nele (a começar pelo Lula), como um governo indesejável ou mesmo como inimigo.
Por ser um governo cuja sustentação está amparada no apoio vindo dos trabalhadores (particularmente dos setores mais oprimidos) e de parte da classe dominante e do imperialismo, ele busca se equilibrar, até certo ponto, diante das demandas e pressões das duas classes antagônicas. Essa tentativa de equilíbrio precário (pois, em última análise, não se pode servir a dois senhores) se torna ainda mais complicada em função do assédio permanente da extrema direita contra o governo no parlamento e na sociedade. Lula conquistou maioria social por margem mínima nas eleições e conseguiu trazer para sua base de apoio um setor da burguesia.
Do ponto de vista da política internacional, o governo Lula vê-se na difícil missão de atuar em meio à acirrada disputa entre potências (EUA/UE/Japão versus China e Rússia). Apesar de tentar se colocar no cenário externo com alguma autonomia (ver discurso de Lula contra a Guerra na Ucrânia), o governo mostra-se mais alinhado ao imperialismo ocidental (EUA e Europa Ocidental), que se coloca, por sua vez, em apoio a Lula contra a extrema direita vinculada a Trump.
A nomeação dos ministérios reflete o caráter de conciliação de classes do governo: parte dos ministros é ligada à esquerda e aos movimentos sociais (como alguns nomes do PT e nomes ligados aos movimentos negros e indígenas, como Silvio de Almeida e Sonia Guajajara); e outra parte é ligada à direita e à burguesia (nomes do PSD, MDB, União Brasil e outros).
No Congresso de maioria conservadora e com presença de significativa oposição bolsonarista, a base governista é majoritária por margem sutil e mostra-se frágil e instável, pois se assenta em um acordo com Lira e parte do Centrão, cujo custo, do ponto de vista orçamentário e ético, é muito alto para o Executivo. Com maioria anti-bolsonarista, Lula deve ter no STF um ponto de apoio para a governabilidade.
Diante da forte oposição do bolsonarismo, Lula começa o novo mandato com um discurso mais à esquerda do que em seus outros governos. Por sua natureza conciliatória, atua como mediador entre interesses burgueses imediatos e demandas imediatas de sua base social popular. Busca manter parte da burguesia o apoiando (assim como do imperialismo), ao mesmo tempo em que atua para manter e ampliar o apoio social no proletariado e seus setores oprimidos. Portanto, é um governo que nasce marcado por fortes contradições e pressões antagônicas de classe, num quadro político-social em que a extrema direita ainda detém relevante força.
Lula anunciou a ampliação do Bolsa Família e outras políticas sociais progressivas, ao mesmo tempo em que Haddad busca garantir à burguesia a responsabilidade com seu “arcabouço fiscal” e Rui Costa afirma que não haverá reversão das reformas trabalhista e da previdência. O governo deu resposta contundente ao genocídio do povo Yanomâmi, ao mesmo tempo em que o Ministério da Agricultura assegura ao agronegócio que tudo seguirá como antes. Lula fez declarações duras contra o papel das Forças Armadas em 08 de janeiro, mas manteve o ministro José Múcio, que foi abertamente condescendente com os acampamentos golpistas nos quartéis. Em resumo, o governo vê-se impelido a anunciar medidas progressivas para sua base de apoio, após anos de retrocessos e destruição, a fim de manter e ampliar sua sustentação popular por baixo, ao mesmo tempo em que busca agradar os segmentos da burguesia e da direita que o apoiam e o sustentam por cima.
Num cenário de estagnação econômica, essa tentativa de equilíbrio instável em meio a interesses antagônicos de classe será de mais difícil execução e mais propensa a crises. Caso haja um fôlego econômico, Lula terá um pouco mais de facilidade para agradar, ainda que parcial e temporariamente, os contrários. Nesse início de governo, é provável que Lula mantenha índice de popularidade que lhe permita — até certo ponto — capacidade de iniciativas políticas relevantes. Não devemos esperar, no curto prazo, nem crescimento acentuado da popularidade do governo, nem um aumento vertiginoso da rejeição a Lula. Até o meio do ano tende a haver uma modesta maioria social favorável ao governo.
A força da oposição de extrema direita
O processo político-social mais significativo e profundo dos últimos anos foi o aparecimento e a consolidação de uma extrema direita neofascista com peso de massas no país, capitaneada pelo bolsonarismo. Esse processo qualitativo provocou uma crise monumental da direita tradicional, que se tornou uma força política secundária (por exemplo, o PSDB se tornou um partido pequeno). Há, a rigor, duas grandes forças político-sociais no país: a esquerda, hegemonizada por Lula e o PT; e a extrema-direita, hegemonizada por Bolsonaro e o bolsonarismo.
A derrota eleitoral de Bolsonaro tem grande importância política, mas não significa, de modo algum, que a extrema direita será varrida do mapa ou que deixará de ser um ator relevante no cenário político. Devemos nos preparar para um período relativamente longo em que nos enfrentaremos com o neofascismo com influência política e ideológica de massas, presença eleitoral, penetração institucional, capacidade organizativa e de ação. Vale sublinhar que a ampla maioria das igrejas evangélicas, das polícias estaduais, das forças armadas, de diversos seguimentos criminosos (milícias, jagunços, garimpeiros e madereiras ilegais, etc.) conformam base firme do neofascismo.
A vitória de Lula e o fracasso do golpe abriram, como vimos, uma conjuntura defensiva para o bolsonarismo, que deve ser aproveitada para que se avance o máximo possível contra eles. Após a derrota do 08 de janeiro, não devemos esperar ações golpistas de porte no curto prazo. O bolsonarismo deve se concentrar em tentar evitar o avanço de investigações e punições, para que não cheguem ao topo do seu comando político, ao mesmo tempo em que fará forte oposição a Lula, utilizando-se de seus expedientes espúrios.
Será preciso acompanhar os desdobramentos das investigações e processos judiciais contra Bolsonaro, que pode ser declarado inelegível em breve pelo TSE. O escândalo das joias da Arábia Saudita adicionou mais um componente negativo para Bolsonaro, que se encontrava há meses numa espécie de autoexílio nos EUA, em função do temor da prisão. Com essa longa ausência, processos judiciais em curso e aparição de novos escândalos, a liderança de Bolsonaro em seu campo político se enfraqueceu um pouco, embora pareça não ser relevante seu desgaste na base social da extrema direita. Será preciso acompanhar o impacto da volta de Bolsonaro ao Brasil na sua base social e na disputa política geral. A hipótese de que haja construção de nomes alternativos para eventual substituição de Bolsonaro na liderança do campo neofascista não deve ser descartada.
A dinâmica das lutas no início do novo governo
Houve, nos últimos anos, um período de refluxo das lutas, que foi aprofundado durante a pandemia. O número de greves diminuiu (e elas se tornaram ainda mais defensivas), assim como caiu a quantidade de ocupações nas cidades e no campo. Essa realidade impactou sindicatos, movimentos sociais e entidades estudantis, que viveram anos de crise e retrocesso. As lutas e pautas foram fundamentalmente defensivas.
Com a vitória de Lula, há mudança parcial importante e positiva. É natural que os movimentos — mulheres, negros, indígenas, sindical, estudantil, sem teto, sem terra etc. — se sintam um pouco mais fortalecidos para colocar suas pautas, tanto no sentido de reaver direitos e conquistas perdidos, quanto no sentido de obter alguns avanços novos. A existência de uma forte oposição neofascista mantém vigente a tarefa da unidade antifascista da esquerda e movimentos. A luta pelas demandas mais sentidas pelas massas exploradas e oprimidas também deve ser base de ações unitárias em frente única.
Porém, devemos esperar que os setores mais burocráticos e “à direita” do movimento de massas assumam postura mais passiva e desmobilizadora, com o discurso de que devemos confiar no governo e não “atiçar” a extrema direita com mobilizações pela esquerda. Medidas do governo contrárias aos interesses dos trabalhadores, quando anunciadas, devem também provocar diferenças e polêmicas no movimento. A primeira quinzena de março, com os atos do 8M, por justiça nos 5 anos da morte de Marielle, no dia 14, e pela revogação do Novo Ensino Médio, dia 15, e a greve dos metroviários em São Paulo, apontam para a possibilidade de retomada das mobilizações aos patamares anteriores à pandemia.
A recomposição do PT e o crescimento do PSOL
Após a sua mais profunda crise (impeachment da Dilma e prisão do Lula), o PT viveu um processo qualitativo de recomposição fazendo oposição a Bolsonaro, que culminou com a eleição de Lula para seu terceiro mandato. O partido ampliou a bancada de deputados federais e senadores e, segundo as pesquisas, cerca de 30% do eleitorado brasileiro se considera petista (patamar de influência que o PT havia perdido depois do golpe). Vale sublinhar que Lula é maior que o PT — seu peso histórico junto às camadas mais empobrecidas e oprimidas da população foi decisivo para a vitória sobre Bolsonaro. Desse modo, o partido de Lula reforça nesse momento sua hegemonia na esquerda brasileira.
É inevitável, por outro lado, que as contradições e dilemas do governo de conciliação de classe se expressem no PT e nos movimentos e sindicatos sob direção de forças petistas. Perante a força da oposição de extrema direita, alguns setores do PT, incluindo Gleisi Hoffmann (presidente do partido), ensaiam uma postura pública um pouco mais à esquerda nesse início de governo, se chocando nesse momento, por exemplo, com Haddad, ministro petista da Economia, que atua no sentido de agradar o grande capital. Os setores do PT com trabalho na Educação, como é o caso da direção majoritária da CNTE, estão se posicionando pela revogação da reforma do ensino médio, que vem sendo blindada pelo ministro da Educação, o petista Camilo Santana.
Importa notar que o PSOL não perdeu espaço com a recomposição do PT, conseguindo aproveitar as oportunidades ao ter uma política correta e, com isso, seguiu processo de crescimento político-eleitoral. O partido se estabeleceu como a segunda força política da esquerda brasileira, tendo peso destacado na juventude e em algumas grandes cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belém. O PSOL teve dois grandes acertos políticos no último período: ter se localizado corretamente na oposição a Bolsonaro a partir das pautas dos setores mais oprimidos da povo trabalhador (negros, mulheres, LGBTIs, indígenas) e ter apoiado a candidatura Lula desde o 1° turno para derrotar Bolsonaro. Esses acertos táticos cruciais aumentaram a autoridade política do partido, permitindo aumento da bancada de deputados federais e nos estados.
Consideramos correta a resolução do Diretório Nacional do PSOL que definiu que o partido não terá cargos no governo, preservando assim sua independência política. Somos favoráveis a uma linha política geral que não seja sectária diante do novo governo Lula e que, ao mesmo tempo, não conduza à entrada no governo de conciliação de classes. Desse modo, defendemos que PSOL atue em base a três tarefas políticas centrais: (a) combater a extrema direita de modo consequente, o que inclui a defesa democrática do governo (direito de Lula governar) diante do golpismo da extrema direita; (b) agir com centralidade pela retomada das lutas sociais em torno das reivindicações concretas dos trabalhadores, dos oprimidos e da juventude; e (c) não se integrar ao governo, de modo a preservar a independência do partido — condição fundamental para que haja continuidade da construção de uma alternativa socialista na esquerda brasileira.
Três tarefas centrais na conjuntura
Primeira: Combater de forma consequente a extrema direita e o fascismo
Tendo em conta que a derrota eleitoral de Bolsonaro não significou derrota estratégica do neofascismo, que mantém expressiva influência de massas, a luta contra a extrema direita e o fascismo deve seguir no centro da armação política dos socialistas. Na presente conjuntura, é necessário levantar com destaque a exigência: “Sem anistia! Punição aos golpistas! Prisão de Bolsonaro!”.
Associado à essa bandeira, é preciso defender que as investigações e punições atinjam também os comandantes militares, grandes empresários e lideranças políticas que atuaram, de uma ou outra maneira, a favor do golpe de 08 de janeiro. A demissão do comandante do Exército, Júlio Cézar Arruda, é correta, mas insuficiente. As Forças Armadas precisam ser reformadas profundamente, para acabar com seu caráter golpista, de extrema direita e anti-povo. Outro eixo importante é a defesa do “revogaço do legado bolsonarista” (contrarreformas, privatizações e o conjunto de medidas reacionárias em todos âmbitos).
Um aspecto importante da luta antifascista é a afirmação da necessidade da mobilização e da organização da classe trabalhadora, do povo negro, das mulheres, LGBTIs e indígenas para impor vitória estratégica sobre a extrema direita. Importa sublinhar que estaremos na defesa democrática do governo diante de qualquer tentativa desestabilizadora e golpista por parte da extrema direita e de setores burgueses. Ou seja, defendemos o direito democrático (conferido pelo voto popular) de Lula governar perante a oposição golpista do neofascismo.
Segunda: construir as lutas pelas reivindicações concretas do povo trabalhador e da juventude.
Buscar superar o longo refluxo dos últimos anos, recuperando — ainda que seja aos poucos — a confiança para lutar e unificando ao máximo a classe trabalhadora (que está dividida pela influência da extrema direita), é fundamental para uma mudança qualitativa da relação social de forças. As massas não se movem por bandeiras abstratas sem vínculo com suas necessidades concretas. A piora nas condições gerais de vida nos últimos anos, em todos aspectos, coloca uma série de demandas concretas e imediatas para a maioria do nosso povo trabalhador e oprimido.
Vejamos algumas delas: Geração de empregos com direitos mínimos; Reposição salarial diante das perdas acumuladas; Fim do trabalho análogo à escravidão e demais formas brutais de superexploração; Revogação das reformas trabalhista e previdenciária; Valorização significativa do salário mínimo; Alimentos baratos para acabar com a fome de milhões; Fim da atual Política de Preços da Petrobras, que encarece o gás e os combustíveis; Investimentos pesados no SUS e na educação pública (em todos níveis); Moradia para quem precisa de teto; Terra aos pequenos agricultores via reforma agroecológica; Fim do genocídio da juventude negra; Combate concreto à escalada de violência contra a mulher e a população LGBTI; Proteção dos povos indígenas e quilombolas e demarcação de todas as suas terras; Retomada da soberania nacional retomando o controle estatal sobre a Petrobras e cancelando a privatização da Eletrobrás; Proteção ambiental rígida e transição acelerada para energias limpas.
É preciso identificar em cada setor (categoria, universidade, territórios, movimentos) as reivindicações mais sentidas e com capacidade de gerar mobilização de base por elas. Podem ser demandas mínimas, não importa — o fundamental é atuar para estimular as lutas e a organização de base buscando, sempre que possível, o máximo de unidade (frente única) dos movimentos, entidades, sindicatos, partidos e correntes políticas para travar as batalhas concretas. Na conjuntura imediata, destacamos a importância da luta contra a Reforma do Ensino Médio.
Terceira: ter política contra a conciliação de classes
A história ensina que governos de conciliação de classes abriram caminho, em várias situações, para derrotas estratégicas da classe trabalhadora, inclusive para golpes militares e o fascismo. Consideramos, amparados nas evidências de mais de um século de luta de classes sob o capitalismo moderno, que a luta e a organização de massas dos explorados e oprimidos é o único meio seguro e eficaz para alcançar vitórias substanciais contra nossos inimigos — os fascistas, em particular, e a burguesia, de um modo geral.
Os governos de conciliação (e as direções majoritárias) alimentam e reforçam no povo trabalhador e oprimido a (falsa) consciência de que é necessário estar junto com setores da burguesia para governar e mudar as coisas. Quando é justamente o contrário. Acontece que as amplas massas (e mesmo a esmagadora maioria da vanguarda) têm confiança e expectativas em Lula e seu governo, numa situação política em que a extrema direita neofascista é poderosa e conforma a principal oposição, além de não haver um cenário de ascenso de lutas.
Sem levar em conta essas condições concretas (nível de consciência e quadro geral da luta de classes), a política diante do novo governo será sectária, com consequências desastrosas. É preciso respeitar o ritmo de experiência das massas e da vanguarda, disputando o seu sentido político. Por isso, é chave combater a conciliação de classes com inteligência tática, para não romper o diálogo com setores de massas e a vanguarda ampla.
No atual momento, é fundamental priorizar as exigências (apresentando-as sem arrogância e ultimatismo) em torno das demandas concretas de combate à extrema direita e pelas pautas econômicas, sociais e democráticas (temas abordados nos dois pontos anteriores). No que se refere às medidas progressivas adotadas pelo governo, é preciso saudá-las quando anunciadas, mas sempre colocando a necessidade de um passo a mais (além das intenções do governo) e colocando suas contradições e limites, sempre que elas estejam colocadas. Não apoiar as medidas progressivas (geralmente atacadas pela extrema direita) é um erro sectário importante. Por outro lado, se restringir apenas ao apoio a elas, sem colocar a necessidade de mais (ou apontando eventuais limites e contradições), é um erro oportunista.
As críticas ao governo devem se dar sempre em torno de problemas concretos e evidentes (por exemplo, a recusa do ministério da Educação em revogar a reforma do ensino médio), e precisam se concentrar, ao menos nesse primeiro momento, na ala direita do governo (defesa da demissão do Múcio, por exemplo).
Lula acabou de tomar posse e a extrema direita é forte, de modo que é um desastre parecer diante de setores de massas e da vanguarda como quem quer que o governo dê errado. Em que sentido queremos que o governo dê certo? No sentido de realizar as promessas de campanha, de enfrentar pra valer o fascismo, de realizar mudanças de fundo no país para melhorar a vida do povo. Para tanto, é necessário construir a governabilidade nas ruas “à quente”, e não com o Centrão, para mudar para o país de verdade e varrer o fascismo. É preciso enfrentar os privilégios seculares das classes dominantes para combater as desigualdades, o racismo, o machismo e a LGBTfobia.
Não consideramos que o governo esteja em disputa do ponto de vista estratégico. Temos a caracterização de que governar junto com setores da burguesia e do imperialismo é parte central do programa da direção majoritária do PT e de Lula — e que não há possibilidade deles abandonarem essa estratégia. Portanto, a linha de propaganda — de defesa de um governo Lula sem a direita e o Centrão, que governe “à quente” em base à força do povo trabalhador e oprimido em luta — diz respeito a uma tática especial para disputar a consciência para a necessidade da independência de classe e da mobilização social para vencer o fascismo e abrir caminho para mudanças estruturais no país.
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